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    Quando se viajava sozinho pela Floresta dos Ingênuos, a noite parecia mais fria e a escuridão mais profunda, mas Siegfried não se importava. Depois de enviar os seus homens de volta ao Salão dos Poucos com os feridos, havia apenas um ritmo: o seu.

    A segunda noite de descanso foi ainda mais curta que a anterior. Sem seus homens para revezar na vigília, tinha de estar alerta o tempo inteiro, por isso não dormiu de verdade, apenas descansou os olhos até que o frio se tornasse insuportável e o forçasse a retomar suas buscas, ainda no escuro.

    Não tinha notado antes, mas a floresta parecia morta.

    Não haviam animais ou traços humanos. Nada além do som das árvores se agitando ao vento e o barulho que sua montaria fazia ao cavalgar por entre elas. Mesmo para o inverno, isso não era normal; e também não se lembrava de ter visto mais que alguns pássaros e roedores no outono.

    “O custo da magia negra”, sabia.

    — Os humanos não são os únicos que temem a magia — o sacerdote tinha lhe dito, tempos atrás. Era o tipo de homem que parecia apreciar o som da própria voz. — Os animais podem senti-la no ar, tem um gosto doce se você prestar bem atenção. O sabor os assusta, por isso migram pra longe.

    — Então cê devia parar com essa merda. A menos que seja capaz de conjurar carne com a sua magia… E eu não tô falando de cadáveres.

    — Hahaha. O conde disse a mesma coisa. Não é à toa que a condessa te odeia tanto, vocês dois são tão parecidos. Mas não se preocupe, não faltará carne fresca. Temos um comércio próspero na Vila da Truta. De qualquer forma, essas florestas voltarão a se encher de vida em breve, disso não tenha dúvidas. E as criaturas que vierem serão as mais destemidas que você jamais verá. Lobos comedores de gente, morcegos-dragão, talvez até fadas, se tivermos sorte. E então a mata não será mais o esconderijo de ladrões, e sim sua sepultura.

    Siegfried não encontrou nenhum lobo e muito menos fadas, mas vez ou outra os seus olhos o enganaram e o rapaz pensou ter visto os fantasmas das rebeldes que havia matado. Mais quatro para a sua lista.

    “Como se eu já não tivesse fantasmas o bastante.”

    O terceiro dia de buscas estava quase no fim e o sol já tinha se posto, quando viu as sombras e ouviu o barulho. Os rebeldes tinham levantado o acampamento e agora estavam conversando tão desleixadamente que nem puseram vigias para garantir o perímetro.

    “Um. Dois… Três. Achei.”

    Não tinham acendido uma fogueira, por isso era difícil distinguir as formas, mas tinha certeza que viu Dara amarrada a uma árvore, com os três raptores ao seu redor.

    Talvez devesse ter trazido seus homens.

    Esperava encontrá-los na estrada. Nunca pensou que seria capaz de surpreendê-los à noite. Se não tivesse deixado dois homens para tomar conta de Dorian, poderiam ter matado um rebelde cada e resgatado a garota sem qualquer incidente. Mas agora…

    “Merda!”

    Estavam a meio caminho do Forte dos Demônios. Se um deles escapasse ou Eradan enviasse seus batedores para encontrá-los…

    “Porra!”

    Cerrou os punhos e respirou fundo, se acalmando.

    Estava escuro e seus inimigos distraídos. Não haviam melhores condições para um ataque surpresa. Tudo o que tinha de fazer era esperar até que dormissem e…

    Um arrepio gelado subiu pelas suas costas quando o frio da morte beijou seu pescoço, mas Siegfried puxou a espada e aço encontrou aço no meio da escuridão; faíscas saltaram e, apenas por um instante, viu o rosto de um rapaz alguns anos mais velho o encarando de volta.

    “Eram quatro!”

    Seu cavalo relinchou e os rebeldes se agitaram, mas conseguiu rasgar a garganta do vigia antes que tivesse tempo de alertar os outros. Pouca diferença fez, pois eles já estavam de pé.

    Não tinha opção.

    Siegfried montou e realizou uma carga contra o acampamento.

    Uma garota mais ou menos da sua idade estava mais adiantada que os outros, chamando pelo seu amigo morto, por isso foi a primeira vítima. A atropelou com tudo e ela caiu em cima de uma pedra que antes usava de assento; suas costas fizeram um som parecido com o de galhos secos se partindo e então ela gritou.

    Um dos seus colegas pegou um cinto da espada jogado no chão, mas o rapaz passou por ele sem parar e o decapitou antes que tivesse a chance de usá-la.

    O terceiro havia desaparecido de vista.

    Virou a montaria e deu uma volta, procurando na escuridão, até que ouviu um grito abafado e o encontrou:

    — Não se mexe — gritou o último inimigo, com a faca lambendo o pescoço de Dara —, ou eu mato a garota!

    Um silêncio gélido pairou no ar por um momento, enquanto Siegfried os observava. O homem devia ter cerca de dezoito anos; seu rosto era sujo e coberto com pequenas bolotas vermelhas, a testa brilhando de suor e as mãos trêmulas calejadas. Um camponês.

    — Solta a garota! — disse por fim.

    — Não! E-ela é nossa!

    — Não existe ‘nós’, só você. Solta a garota e eu não te mato.

    — Cala a porra da boca!

    — …

    — Vo-você vai me deixar ir!

    — …

    — T-tá me ouvindo!? E-eu–

    — Tá bom.

    — O quê?

    — Cê pode ir. Eu não dou a mínima. Mas vai deixar ela.

    — N-não! Nós dois! Você vai deixar nós dois irmos!

    — Isso não vai rolar.

    Siegfried fez o cavalo avançar um passo e o rebelde tirou a faca do pescoço de Dara para ameaçá-lo:

    — P-pra trás! S-se chegar mais perto, e-eu vou… E-eu vou–

    — Você não vai fazer nada!

    — …

    — Porque a única coisa mantendo a sua cabeça presa ao pescoço nesse momento, é ela. Seus amigos sabiam quem eu era, então você também deve saber. Acha que um fazendeiro tem chance contra mim? Eu não dou a mínima pra sua vida. Você não é nada. Solta a garota e pode ir correndo pra casa do caralho. Acha que eu vou perder o meu tempo indo atrás de um rebelde qualquer? Matei quatro de vocês no caminho pra cá. Um a mais ou um a menos não faz diferença.

    — E-está mentindo! Eu ouvi as histórias. Eu solto ela e você me mata, ou pior. M-mas eu não sou burro! Cê não vai me tocar. Não enquanto eu tiver ela.

    Ele sorriu e cortou as cordas que prendiam Dara à árvore, agarrando a garota pelo pescoço com o braço esquerdo, enquanto apontava a faca para Siegfried com a direita em uma ameaça vazia.

    — A gente vai embora. Isso. E se você tentar me seguir, eu corto a garganta dela. Abro ela todinha. De orelha a orelha. Tô falando sério.

    Já tinham chegado nos cavalos e o rebelde a forçou a desamarrar um deles, quando Siegfried desmontou e caminhou na sua direção.

    “Dragoslav, senhor supremo, rogo a ti. Olha por mim e guia meus passos. Que esse idiota seja tão covarde quanto penso que é.”

    E era.

    — P-parado!

    O rapaz ignorou a ordem, mantendo um passo lento e firme, enquanto o olhava nos olhos. Isso foi o bastante para deixá-lo desnorteado. Soldados verdes eram todos iguais; bastava uma simples atitude que fosse mais ou menos fora da curva para que os covardes ficassem completamente perdidos.

    — N-não se aproxime! E-eu tô falando sério… Vou matar ela! Eu–

    Tudo acabou em um instante.

    Mediu a distância com os olhos até que seu alvo estivesse dentro do alcance, então brandiu a espada.

    Teve de se aproximar com uma postura desleixada para não alertá-lo, por isso precisou usar apenas uma mão para atacar e o peso dificultou seu controle, fazendo seu ombro estalar e o couro do cabo esfolar a carne dos seus dedos até sangrarem, quando forçou uma parada brusca.

    A lâmina abriu o crânio do rebelde em dois com um único movimento, esmagando os ossos como se fossem galhos secos, mas parou assim que tocou de leve o ombro de Dara.

    O cadáver caiu para trás e a garota de joelhos; as pernas trêmulas não aguentando o próprio peso.

    — Você tá bem? — perguntou Siegfried, mas quando ela o olhou de volta, não foi gratidão o que viu naqueles olhos verdes cheios de lágrimas.

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