Capítulo 0070: Marcha Sangrenta
O sol ainda estava se pondo quando Siegfried levou seu palafrém pelo acampamento.
O cheiro de sopa encheu seu nariz, enquanto os alaúdes tocavam e a lenha crepitava. Eram mais de uma centena — quase duas, se contasse os soldados mortos-vivos — e ocupavam a estrada inteira. Até onde sua vista podia alcançar.
Tinha acabado de passar pelo vagão de um velho comerciante de temperos, quando se deparou com três recrutas atirando pedras em uma família de refugiados que viajava na direção oposta; uma mãe e duas crianças, a caminho do Salão dos Poucos.
— Ciganos desgraçados! — gritou o mais velho dos soldados. — Não queremos vocês aqui!
A mulher foi atingida na cabeça e a pedrada lhe abriu um corte na testa, fazendo o sangue escorrer pelo seu rosto, mas ela não deixou escapar nenhum som, ao invés disso, pegou a mão dos seus filhos, manteve a cabeça baixa e apertou o passo.
Não satisfeitos, os recrutas atiraram mais pedras na família, acertando tanto as costas da mãe, como das crianças.
Até que Siegfried se interpôs entre eles.
O rapaz parou seu cavalo em frente aos soldados e foi atingido no ombro. Não doeu, mas quando perceberam o que tinham feito, eles empalideceram como se tivessem visto um fantasma.
— Voltem pra formação! — disse Siegfried.
Não foi preciso mais do que isso.
Os garotos se viraram e correram, desaparecendo entre a multidão de recrutas que se reuniam para descansar da longa marcha. Só então se permitiu um suspiro desapontado.
Estavam apenas no terceiro dia de viagem e já não aguentava mais esses idiotas; vadiagem, brigas, promiscuidade. Eram como mercenários, exceto que também seriam inúteis no campo de batalha.
O recrutamento tinha sido sua responsabilidade e ver a baixa qualidade dos seus homens o irritava.
Fez o melhor que pôde para selecionar apenas os melhores que o vilarejo tinha a oferecer. Passou dias entrevistando dúzias e mais dúzias de candidatos. Velhos, crianças, bêbados e até mulheres apareceram. Rejeitou todos, mas o que restou não era muito melhor; rapazes verdes, de pouca disciplina e muitos sonhos.
E isso nem era o pior.
Os seguidores de acampamento eram quase uma praga.
Elenor manteve sua promessa e não permitiu que suas garotas os seguissem, mas se havia nesse mundo uma profissão cuja oferta nunca acabava, eram as prostitutas.
Havia exatamente sessenta recrutas.
E uma rameira para cada três deles.
Algumas eram prostitutas de rua, mulheres que já não eram jovens ou bonitas o bastante para um bordel. Mais numerosas eram as outras…
Garotas pobres que viram na guerra uma boa oportunidade de fazer dinheiro. A mais nova não devia ter mais de onze anos, enquanto as mais velhas mal chegavam aos vinte. A maioria nem sequer tinha se deitado com um homem até aquele dia; e as poucas que o fizeram tinham sido abusadas na infância pelos próprios pais ou algum vadio qualquer.
A única coisa que conheciam de sexo, era o que aprenderam sozinhas enquanto se tocavam no fundo de um celeiro ou casa de banho.
Mas nem todas as seguidoras de acampamento eram prostitutas.
Uma centena de fogueiras tinham sido acesas, dando vida a uma pequena comunidade na retaguarda da tropa, com comerciantes vendendo suas coisas, famílias se reunindo e amigos bebendo.
A vigília, bem como a guarda pessoal do conde, eram ambas responsabilidades dos soldados esqueletos, que já patrulhavam os arredores em duplas, mas Siegfried queria ensinar um pouco de disciplina aos seus homens, por isso ordenou a alguns deles que patrulhassem o acampamento para evitar brigas e furtos.
Já era noite cerrada quando finalmente foi se deitar.
Como vice-comandante, Siegfried era uma das duas únicas pessoas a ter sua própria tenda; uma lona simples de pele, mantida de pé por uma estaca de madeira e com espaço o suficiente para não mais do que ele mesmo, mas o bastante para mantê-lo aquecido.
Lá dentro, encontrou uma das rameiras esperando por ele; uma garota de quinze anos, completamente nua por baixo dos lençóis:
— Milorde — ela disse. — Por que demorou tanto?
— Fora!
— …
— Agora!
A garota pegou seu vestido e fugiu depressa, em direção ao acampamento dos soldados.
Tinha sido o mesmo desde que partiram.
Na primeira noite, cinco garotas diferentes vieram até ele. Na seguinte, duas. Se os deuses fossem bons, essa seria a última.
Não queria admitir, mas começava a sentir falta de Dara e do que ela tinha entre as pernas. Ficava duro só de pensar nisso. E aquelas garotas pareciam cada dia mais tentadoras. Tinha jurado se deitar com apenas uma mulher em sua vida; não era Dara, mas ainda se sentia mal só de pensar em traí-la com uma prostituta qualquer.
“Acho que agora sou dela…”
O sono demorou a vir naquela noite, mas quando veio, sonhou com Lura.
Com a noite em que ela o levou por um caminho secreto até o lado de fora da montanha, para ver as estrelas. Por alguma razão, a garota parecia pensar que ele sentia falta delas; talvez porque ela mesma fosse apaixonada pelo céu. E como poderia ser diferente? Viveu a maior parte da sua vida presa em cidades subterrâneas. E os anões viviam muito tempo.
Mas Siegfried não dava a mínima para as estrelas.
Enquanto Lura olhava o céu, o rapaz olhava para ela, com seus cabelos ruivos despenteados pelo vento, seus olhos verdes brilhando de forma quase sobrenatural na escuridão e seu sorriso. Seus lábios… Sua boca.
— São lindas, né?
— Anham.
Ela riu:
— Mas você nem tá olhando.
— Tô sim.
— Tá nada!
Ela deu um soquinho no seu braço e os dois riram, aproximando o rosto um do outro; tão perto que os seus narizes quase se tocavam.
— Eu te amo — disse Siegfried.
Os cabelos dela se incendiaram, como se fossem feitos de fogo; ora vermelhos, ora dourados. Uma chama brilhando na escuridão. Mas o seu sorriso desapareceu:
— Então por que me traiu?
— O quê?
— Eu esperei por você!
De repente, o ar congelou e o frio arranhou seus pulmões.
As estrelas desapareceram, a montanha caiu em ruínas e braços feitos de sombras o agarraram. Quando tentou escapar, eles o puxaram para baixo e o rapaz afundou no chão, enquanto Lura o observava. A única fonte de luz em um mundo de trevas.
— Você jurou!
A terra o engoliu e esmagou seus ossos, até que não tivesse outra escolha senão gritar, e quando o fez, sentiu a lama enchendo sua boca até que não pudesse mais respirar. Nem enxergar. Nem pensar.
Então acordou, empapado de suor e com o coração a ponto de explodir.
Lá fora, os cavalos relinchavam e os soldados despertavam aos poucos. A manhã havia chegado, mas precisou de mais cinco minutos para se acalmar antes de levantar.
“Foi só um sonho”, repetiu para si mesmo.
Mal tinha terminado de desfazer a tenda, quando foi abordado por um grupo de recrutas. O mesmo que ele tinha feito patrulhar o acampamento na noite passada. Tinham a sua idade, mas se portavam como crianças assustadas:
— M-milorde — disse um deles, tomando a dianteira. — Temos um problema.
— Alguém morreu?
— Não temos certeza, senhor.
“Foi uma piada”, pensou Siegfried, enquanto ouvia o que o soldado tinha a dizer.
— Dois recrutas desapareceram ontem à noite. Pensamos que talvez estivessem com uma das garotas, mas já amanheceu e ninguém mais viu eles.
— Provavelmente só se embebedaram e estão dormindo em um canto qualquer… Tá legal. Você, você e você, comigo. O resto pode ir arrumar suas coisas.
♦
Começaram a procurar pelo último local onde os soldados desaparecidos foram vistos e não levou mais do que meia-hora para encontrarem…
Pouco mais de seis metros floresta adentro, cotas de malha enferrujadas, dois crânios humanos e dúzias de ossos quebrados se espalhavam por todos os lados, meio escondidos pela lama.
Soldados esqueletos não morrem, mas havia outros métodos. Desmembramento era o mais eficaz.
Siegfried sacou sua espada e avançou mais vinte passos, até encontrar um dos recrutas mortos.
Sua garganta tinha sido destruída por presas do tamanho de adagas. Seu estômago, aberto e devorado até não restar nada além de um buraco vazio de costelas quebradiças. Seus braços e pernas marcados por meia centena de golpes de espada.
“Uma luta”, concluiu. “Ele perdeu e os animais vieram se banquetear.”
Pelo menos, devia ser assim.
O recruta não podia estar morto a mais do que oito horas, no máximo, mas quando tocou em seu rosto, a carne apodrecida se desprendeu dos ossos e larvas do tamanho de sanguessugas começaram a rastejar para fora do seu crânio.
Os soldados vomitaram com o cheiro e Siegfried se afastou do cadáver.
— M-milorde, o que vamos fazer?
— Voltem pro acampamento e reúnam todos os homens. Vou falar com o conde. Parece que os rebeldes estão ansiosos por uma batalha, afinal.
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