Capítulo 0073: Ragnar Kessel
Mal havia entardecido, quando o conde deu a ordem para levantar acampamento.
— Estamos um pouco atrasados, mas esse é o lugar. Vamos esperar até amanhã e depois partimos. Pode ser que não sejamos os únicos tendo problemas com ratos.
Estavam a cinco dias da Torre da Justiça. Talvez seis. Mais ou menos a metade do caminho. Bem no meio do nada. Não haviam vilarejos por perto, nem estalagens ou o que fosse, apenas árvores de um lado e planícies do outro; quilômetros e mais quilômetros de vegetação rasteira, interrompidas por um pequeno rio que corria ali.
Não era uma posição ruim.
Se bandidos viessem da floresta, bastava que os atraíssem para fora; se tropas atacassem pelas planícies, tudo o que tinham que fazer era recuar para as árvores. E o rio era um obstáculo natural muito bem-vindo.
Um lugar estratégico.
Mas a única coisa que os recrutas viam era grama, sol e um dia de folga. Não levou mais do que algumas horas para que o acampamento se transformasse quase em um festival; havia dança, música e risos por todos os lados, com cheiro de sopa e álcool para encher os narizes de todos.
Tinham se esquecido completamente do assassino.
Aquela foi a primeira manhã em vários dias que ninguém desapareceu. Também teria sido a primeira sem nenhuma morte, se não tivesse enforcado os traidores.
“Pelo menos estão se divertindo.”
Temia que as execuções pudessem afetar a moral dos soldados, mas a única coisa que fez foi inspirar medo em todos eles. Ninguém lhe dirigiu a palavra, nem chegou perto demais.
Quando o viam se aproximar, os risos morriam e o silêncio reinava até que estivesse de volta a uma distância segura, por isso teve de acender a própria fogueira, cozinhar a própria comida e ficar tão longe quanto podia, sem deixar o acampamento.
Já era bem tarde da noite e estava arrancando as pedrinhas que entraram entre as ferraduras do seu cavalo, quando viu a nuvem de poeira se aproximando deles.
Então parou o que estava fazendo, montou e deu a volta pelo acampamento:
— Inimigos! — gritou. — Em formação!
Conforme cavalgava, os homens se levantavam atrás dele, meio bêbados e caindo de sono, mas com as armas em mãos.
Quando finalmente parou, estavam todos de pé.
Uma cortina de poeira se ergueu no horizonte, como se fosse uma tempestade de areia. Na sua base, uma única sombra disforme se espalhava por toda a sua extensão. Reconhecia bem uma horda quando a via. Se fosse de manhã, poderia dizer exatamente quantos eram, mas de noite só podia ter certeza de uma coisa: muito mais do que eles.
Estava tão concentrado, que nem viu o conde até que ele parasse ao seu lado e desmontasse:
— Calma. Eles estão com a gente.
O porta-estandarte foi o primeiro a chegar. Dois rapazes magricelas, novos demais até para ter pelo na cara, vinham a pé; um trazia a bandeira branca de paz e o outro, o brasão da casa Kessel: uma cruz negra em fundo partido, meio azul e meio prateado.
Entre eles, o seu lorde.
O barão Kessel tinha uma espessa barba negra, corpo musculoso e quase dois metros de altura. Era tão parecido com o conde, que bem podiam ser irmãos, mas se fossem, ele certamente seria o mais novo. Não era tão alto, tão grande e nem tinha barbas tão longas quanto o lorde Gaelor… Também parecia mais limpo.
Assim que viu seu suserano, o barão desmontou e avançou com um sorriso no rosto:
— Vossa graça!
— Ragnar!
Os dois se abraçaram, riram e trocaram elogios, até que o conde convidou seu amigo para uma cerveja.
A tropa do barão chegou logo depois, passando por Siegfried aos montes e se espalhando em todas as direções; 150 soldados a pé e mais seguidores de acampamento do que se atrevia a contar. Um verdadeiro pesadelo logístico.
Viu famílias inteiras atravessando com carroças abarrotadas de coisas, comerciantes em seus vagões puxados por bois e até alguns soldados trazendo mulas para carregar suas coisas. Mais ainda eram aqueles que vinham de mãos abanando, apenas com a roupa do corpo e nada mais.
“Nem fudendo que vai ter comida pra todo mundo.”
Ainda estavam na primavera. Mesmo que algum camponês tenha sido louco o bastante de plantar algo em uma zona de guerra, levaria meses até a colheita. Estariam todos vivendo à base de sopa d’água quando finalmente chegassem à Torre da Justiça.
Mas tinha pelo menos uma coisa boa…
Se houve algum desaparecimento naquela noite, ninguém deu falta.
Foi dormir tarde e acordou mais cedo do que teria preferido. Cansado e irritado. Tinha voltado a ter pesadelos, mas não conseguia lembrar deles; não com todo o barulho que os homens do barão faziam. Com tanta gente no acampamento, sempre tinha alguém acordado para festejar um pouco alto demais.
Vestiu sua túnica, afivelou o cinto da espada e, assim que pisou fora da tenda, deu de cara com um grupo de crianças correndo por ali. Estava tão cheio que mal podia enxergar dois metros à frente, sem que a sua vista fosse bloqueada por um grupo qualquer de soldados ou seguidores de acampamento que cuidavam dos seus afazeres.
Ignorou todos eles e foi até o rio, mas mal havia dado dez passos, quando encontrou um soldado que não conhecia, provavelmente um dos homens do barão:
— Siegfried? Sua graça exige sua presença!
— Qual delas?
— As duas!
♦
Oito homens entraram na Floresta dos Ingênuos naquela manhã: o barão Kessel, Siegfried e mais seis recrutas da Cidade Pequena.
— Não podemos ter inimigos na nossa retaguarda! — tinha dito o conde.
E não teriam.
Se mandassem todos os soldados e voluntários, poderiam explorar a floresta inteira, mas o barão insistia que esse era o motivo de não terem tido sorte nas buscas anteriores:
— Nunca caçou antes, rapaz? Mande um exército atrás de um esquilo e vai morrer de fome antes de ver a cor do animal. A única coisa que esses idiotas vão fazer é barulho. Muito barulho. E espantar qualquer rebelde que esteja por perto, ou acha que eles vão ficar parados, esperando você achá-los? Pois é. Oito vão servir.
Mas andaram o dia todo e não acharam nada. Nem rebeldes, nem esquilos. Por isso acenderam uma fogueira e acamparam em uma clareira qualquer que encontraram, assim que a noite caiu.
Os recrutas se divertiram contando vantagem uns aos outros, falando das brigas de bar e feras que mataram, enquanto Siegfried comia uma fatia de pão de alho e o lorde Kessel atiçava o fogo em silêncio, até que parou e disse:
— Ouvi coisas boas a seu respeito.
— Vossa graça?
— Salvou muita gente, prendeu alguns traficantes de escravos e matou um monte de rebeldes. Nada mal.
— Obrigado, senhor.
— Então por que matou aqueles homens?
— Como?
— Vi o que fez lá atrás. Três soldados, servindo de alimento pros corvos. Passamos por eles, quando estávamos vindo pra cá.
— …
— E então? Por que–
— Eram traidores!
— Não foi o que meus homens ouviram. Dizem por aí que você pegou eles dando uma lição em alguns rebeldes e não gostou nada disso… Deixa eu adivinhar, eram seus amigos?
— Não tenho amigos rebeldes!
— Mas tinha, não é mesmo?
— …
— Me pergunto se isso teve alguma coisa a ver com os assassinatos. Quero dizer, seis pessoas em quatro dias? Faz você se perguntar: será que realmente tentaram achar o culpado?
Só então Siegfried notou que os recrutas tinham parado de falar e estavam agora em silêncio, escutando atentamente a conversa dos dois. Olhos frios o observando. De repente ficou bem consciente de que eram todos homens do barão.
— Foi o que aconteceu, não é? — perguntou o lorde. — Não teve coragem de trair o conde, por isso está sangrando as forças dele. Deixando as suas opções em aberto. E se a maré virar, você volta correndo com o rabo entre as pernas pro Eradan e leva todo o crédito. Movimento clássico de mercenários e vira-casacas. E você é os dois.
— Você não sabe do que tá falando!
— Acho que sei sim.
— …
— Não gosto de vira-casacas. Nem de mentirosos. Mas ouvi coisas boas ao seu respeito e por isso vou te dar uma chance, garoto. Só uma! Levanta, dá meia volta e vai pro norte. Tenho certeza de que não vai faltar trabalho pra alguém como você lá. Mas se pisar os pés aqui de novo… Bem, vamos deixar pra sua imaginação.
Quando Siegfried não se moveu, o barão deixou escapar um suspiro e disse:
— Bom, eu tentei.
Não foi preciso mais do que isso.
Os soldados pularam em cima dele tão rápido que o derrubaram no chão antes que pudesse sacar a espada. Até conseguiu soltar um braço por tempo o bastante para socar o rosto de um deles, mas foi só isso e então estava de joelhos, com seis homens o segurando firmemente.
Foi quando o lorde Kessel se levantou e puxou um pedaço de madeira em brasas da fogueira. O mesmo que ele tinha usado para atiçar o fogo.
— Sabe o que eu mais odeio na sua gente? É isso! Essa coisa que vocês fazem. Fingir que são homens de verdade. Saem por aí brandindo suas espadas como se fossem açougueiros e dizem pra todo mundo que são guerreiros. Fingem que têm coragem. Honra. Bom, cadê a sua coragem agora, rapaz?
Siegfried sentiu seu coração disparar e tentou se libertar, mas era inútil. Um dos soldados agarrou seu cabelo e puxou sua cabeça para trás, obrigando ele a olhar nos olhos do barão.
— Mudou de ideia quanto a minha proposta?
— Vai se fuder!
Durou apenas um piscar de olhos, mas enquanto o lorde Kessel aproximava a madeira em chamas do seu rosto, Siegfried lembrou do seu pesadelo. Cabelos esvoaçantes brilhando na escuridão; ora vermelhos, ora dourados.
Sentiu uma lágrima escorrer pela sua bochecha e então o calor lambeu seu rosto.

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