Índice de Capítulo

    Siegfried foi o primeiro a ver o conde ser atingido e o primeiro a alcançá-lo. Antes mesmo do lorde perder o equilíbrio, já havia desmontado e corrido em sua direção, deslizando na lama escorregadia e parando ao seu lado, exatamente no momento em que ele chegou ao chão.

    O conde não usava armadura além da sua cota de malha e uma seta havia perfurado seu peito, rompendo os elos de metal e se alojando entre o coração e o pescoço, mas não chegou a atravessar completamente, ficando presa lá dentro.

    Não tinha visto quem a disparou.

    Ninguém viu.

    Então tudo saiu de controle.

    Os moradores foram os primeiros a entrarem em pânico, atropelando os soldados esqueletos em sua fuga desesperada. Os mortos-vivos mataram alguns com suas espadas, mas estavam em menor número. Ao perceberem a confusão, os recrutas também se desesperaram; alguns foram atrás dos moradores, outros correram de volta ao acampamento, mas a maioria congelou e ficou onde estava.

    — Siegfried! — chamou o barão Kessel, montado em seu cavalo. Tinha também uma flecha em seu ombro direito e erguia um escudo com o braço esquerdo, mas ao contrário do conde, podia se mover. — Leve sua graça de volta ao acampamento! Agora!

    Sem esperar por uma resposta, o lorde Kessel virou sua montaria e ergueu a espada o mais alto que seu ombro machucado permitia:

    — Homens! Comigo! Matem todos os rebeldes!

    Mas naquele momento, ‘rebeldes’ queria dizer ‘qualquer um que não seja um de nós’.

    Viu uma mulher de trinta e poucos anos ajudando uma idosa a fugir da confusão, mas não rápido o bastante; um soldado atravessou a garganta da velha com a ponta da lança e outro fez o mesmo com a filha. Mesmo depois das duas caírem, eles se limitaram a perfurá-las mais algumas vezes, para garantir que estivessem mortas.

    Uma cena que se repetiu várias e várias vezes. Idosos, crianças e covardes que se renderam; qualquer um que não fugisse rápido o bastante era morto no local.

    Algumas das mulheres mais jovens pegaram as espadas dos soldados mortos-vivos que caíram e agora atacavam os recrutas, ganhando tempo para que os outros moradores fugissem, mas eram poucas e morreram cercadas.

    “Não importa”, disse a si mesmo. “Isso é guerra. É com isso que ela se parece.”

    Siegfried colocou um braço do conde em volta do seu pescoço e o ergueu. Ou melhor: tentou. Não era fraco, mas o lorde Gaelor era alto como um cavalo de guerra e tão pesado quanto. Por sorte, o conde era também duro na queda e fez a maior parte do trabalho sozinho; desde que Siegfried não o deixasse cair, era capaz de andar.

    Não achou o seu corcel negro, provavelmente o animal fugiu durante a confusão, mas o andaluz branco do conde era mais corajoso e muito bem treinado; mesmo o cheiro de sangue, a seta e a confusão não foram o bastante para fazê-lo fugir e o animal continuava parado no mesmo lugar em que estava quando a seta atingiu seu cavaleiro.

    Siegfried ajudou o lorde a montar, então subiu na sela, agarrou as rédeas e enfiou os pés nos estribos, incentivando o animal em um galope acelerado.

    A lama estava escorregadia e a chuva certamente não ajudava, mas o cavalo tinha um passo firme e os levou até a tenda do seu mestre quase que praticamente sozinho.

    “É mais inteligente do que a maioria dos soldados que já conheci.”

    Levaram menos de cinco minutos para chegar até o local, passando pelo barão Dalton, que gritava ordens para os recrutas pegarem suas lanças e correrem até a Vila do Lago. O velho lorde estava tão concentrado na tarefa que nem os notou.

    — Andem logo, seus idiotas! — dizia o barão. — Dez moedas de prata pra quem me trouxer mais cabeças de rebeldes!

    O rapaz o ignorou e seguiu em frente.

    A dupla de soldados esqueletos que guardava a entrada da tenda permanecia no local. Imóveis. Completamente indiferentes à confusão ao seu redor, enquanto os recrutas corriam de um lado ao outro, sem saber exatamente o que fazer.

    Um soldado sem ordens podia ser tão útil quanto um falcão sem asas.

    Quando ajudou o conde a desmontar, viu que as veias do seu pescoço estavam enegrecidas e ele ardia de febre, por isso quase não conseguiu segurá-lo quando caiu e precisou arrastá-lo para dentro.

    — Siegfried? — disse Adrien, parando o cavalo em frente a tenda. — O que aconteceu?

    — Me ajuda aqui!

    O rapaz desmontou e obedeceu, segurando cada um em um braço e arrastando o conde até a sua cama. A essa altura, ele já mal conseguia ficar de pé ou falar, apenas puxar o ar pela boca com dificuldade, tremer e suar.

    Siegfried o deixou ali e correu até o baú.

    — Merda! — disse Adrien, finalmente notando a seta cravada no peito do conde. — Quem–?

    — Não toca! — gritou Siegfried, procurando entre as roupas do lorde.

    — Temos que tirar ela. Acho que não atingiu o coração.

    — Tá envenenada!

    — …

    — Se a gente puxar, o veneno vai se espalhar. Pode até cortar uma artéria ou sei lá.

    — E-então temos que chamar um médico.

    — Achei!

    Siegfried ignorou Adrien e correu de volta até a cama com o elixir:

    — Me ajuda a puxar a seta!

    — Mas você disse–

    — Eu sei o que eu disse! Agora anda logo!

    Mesmo em dupla, foi difícil arrancá-la. O conde já não tinha forças para se levantar, mas ainda era forte o bastante para derrubá-los duas vezes; na terceira, Siegfried pôs o joelho em seu ombro em busca de apoio e puxou a seta.

    Podia sentir a haste de madeira endurecer, presa entre os músculos contraídos do peito do conde. Era como se alguém a estivesse segurando toda vez que tentava puxar. Alguém muito maior e mais forte.

    Quando finalmente conseguiu arrancá-la, o lorde parou de se mexer e Siegfried teve certeza de que estava morto, mas o forçou a engolir o elixir assim mesmo, abrindo a sua boca e fazendo o líquido escorrer pela sua garganta.

    Era um frasco pequeno, do tamanho do seu polegar, e o único que encontrou, mas mesmo depois que o esvaziou, o conde não se moveu.

    — E-ele tá morto? — perguntou Adrien.

    Siegfried não respondeu.

    O rosto do conde estava pálido e molhado de suor; as veias do seu pescoço, negras como carvão; seus lábios, azuis. E ele não se moveu, nem para tremer, nem para puxar o ar com a boca. Estava tão imóvel quanto os soldados esqueletos lá fora.

    “Acabou.”

    Por um momento, não soube o que fazer.

    “Ele morreu.”

    Sentiu seu coração disparar.

    Adrien estava ao seu lado, gritando alguma coisa, mas não conseguia escutá-lo; era como se seus ouvidos estivessem cheios de algodão. Não tinha ideia do que dizia e, a bem da verdade, não dava a mínima.

    “É culpa delas”, sussurrou algo dentro dele. “É tudo culpa delas.”

    Lá fora, o acampamento ardia.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota