Capítulo 0081: Rebeldes
Siegfried foi o primeiro a ver o conde ser atingido e o primeiro a alcançá-lo. Antes mesmo do lorde perder o equilíbrio, já havia desmontado e corrido em sua direção, deslizando na lama escorregadia e parando ao seu lado, exatamente no momento em que ele chegou ao chão.
O conde não usava armadura além da sua cota de malha e uma seta havia perfurado seu peito, rompendo os elos de metal e se alojando entre o coração e o pescoço, mas não chegou a atravessar completamente, ficando presa lá dentro.
Não tinha visto quem a disparou.
Ninguém viu.
Então tudo saiu de controle.
Os moradores foram os primeiros a entrarem em pânico, atropelando os soldados esqueletos em sua fuga desesperada. Os mortos-vivos mataram alguns com suas espadas, mas estavam em menor número. Ao perceberem a confusão, os recrutas também se desesperaram; alguns foram atrás dos moradores, outros correram de volta ao acampamento, mas a maioria congelou e ficou onde estava.
— Siegfried! — chamou o barão Kessel, montado em seu cavalo. Tinha também uma flecha em seu ombro direito e erguia um escudo com o braço esquerdo, mas ao contrário do conde, podia se mover. — Leve sua graça de volta ao acampamento! Agora!
Sem esperar por uma resposta, o lorde Kessel virou sua montaria e ergueu a espada o mais alto que seu ombro machucado permitia:
— Homens! Comigo! Matem todos os rebeldes!
Mas naquele momento, ‘rebeldes’ queria dizer ‘qualquer um que não seja um de nós’.
Viu uma mulher de trinta e poucos anos ajudando uma idosa a fugir da confusão, mas não rápido o bastante; um soldado atravessou a garganta da velha com a ponta da lança e outro fez o mesmo com a filha. Mesmo depois das duas caírem, eles se limitaram a perfurá-las mais algumas vezes, para garantir que estivessem mortas.
Uma cena que se repetiu várias e várias vezes. Idosos, crianças e covardes que se renderam; qualquer um que não fugisse rápido o bastante era morto no local.
Algumas das mulheres mais jovens pegaram as espadas dos soldados mortos-vivos que caíram e agora atacavam os recrutas, ganhando tempo para que os outros moradores fugissem, mas eram poucas e morreram cercadas.
“Não importa”, disse a si mesmo. “Isso é guerra. É com isso que ela se parece.”
Siegfried colocou um braço do conde em volta do seu pescoço e o ergueu. Ou melhor: tentou. Não era fraco, mas o lorde Gaelor era alto como um cavalo de guerra e tão pesado quanto. Por sorte, o conde era também duro na queda e fez a maior parte do trabalho sozinho; desde que Siegfried não o deixasse cair, era capaz de andar.
Não achou o seu corcel negro, provavelmente o animal fugiu durante a confusão, mas o andaluz branco do conde era mais corajoso e muito bem treinado; mesmo o cheiro de sangue, a seta e a confusão não foram o bastante para fazê-lo fugir e o animal continuava parado no mesmo lugar em que estava quando a seta atingiu seu cavaleiro.
Siegfried ajudou o lorde a montar, então subiu na sela, agarrou as rédeas e enfiou os pés nos estribos, incentivando o animal em um galope acelerado.
A lama estava escorregadia e a chuva certamente não ajudava, mas o cavalo tinha um passo firme e os levou até a tenda do seu mestre quase que praticamente sozinho.
“É mais inteligente do que a maioria dos soldados que já conheci.”
Levaram menos de cinco minutos para chegar até o local, passando pelo barão Dalton, que gritava ordens para os recrutas pegarem suas lanças e correrem até a Vila do Lago. O velho lorde estava tão concentrado na tarefa que nem os notou.
— Andem logo, seus idiotas! — dizia o barão. — Dez moedas de prata pra quem me trouxer mais cabeças de rebeldes!
O rapaz o ignorou e seguiu em frente.
A dupla de soldados esqueletos que guardava a entrada da tenda permanecia no local. Imóveis. Completamente indiferentes à confusão ao seu redor, enquanto os recrutas corriam de um lado ao outro, sem saber exatamente o que fazer.
Um soldado sem ordens podia ser tão útil quanto um falcão sem asas.
Quando ajudou o conde a desmontar, viu que as veias do seu pescoço estavam enegrecidas e ele ardia de febre, por isso quase não conseguiu segurá-lo quando caiu e precisou arrastá-lo para dentro.
— Siegfried? — disse Adrien, parando o cavalo em frente a tenda. — O que aconteceu?
— Me ajuda aqui!
O rapaz desmontou e obedeceu, segurando cada um em um braço e arrastando o conde até a sua cama. A essa altura, ele já mal conseguia ficar de pé ou falar, apenas puxar o ar pela boca com dificuldade, tremer e suar.
Siegfried o deixou ali e correu até o baú.
— Merda! — disse Adrien, finalmente notando a seta cravada no peito do conde. — Quem–?
— Não toca! — gritou Siegfried, procurando entre as roupas do lorde.
— Temos que tirar ela. Acho que não atingiu o coração.
— Tá envenenada!
— …
— Se a gente puxar, o veneno vai se espalhar. Pode até cortar uma artéria ou sei lá.
— E-então temos que chamar um médico.
— Achei!
Siegfried ignorou Adrien e correu de volta até a cama com o elixir:
— Me ajuda a puxar a seta!
— Mas você disse–
— Eu sei o que eu disse! Agora anda logo!
Mesmo em dupla, foi difícil arrancá-la. O conde já não tinha forças para se levantar, mas ainda era forte o bastante para derrubá-los duas vezes; na terceira, Siegfried pôs o joelho em seu ombro em busca de apoio e puxou a seta.
Podia sentir a haste de madeira endurecer, presa entre os músculos contraídos do peito do conde. Era como se alguém a estivesse segurando toda vez que tentava puxar. Alguém muito maior e mais forte.
Quando finalmente conseguiu arrancá-la, o lorde parou de se mexer e Siegfried teve certeza de que estava morto, mas o forçou a engolir o elixir assim mesmo, abrindo a sua boca e fazendo o líquido escorrer pela sua garganta.
Era um frasco pequeno, do tamanho do seu polegar, e o único que encontrou, mas mesmo depois que o esvaziou, o conde não se moveu.
— E-ele tá morto? — perguntou Adrien.
Siegfried não respondeu.
O rosto do conde estava pálido e molhado de suor; as veias do seu pescoço, negras como carvão; seus lábios, azuis. E ele não se moveu, nem para tremer, nem para puxar o ar com a boca. Estava tão imóvel quanto os soldados esqueletos lá fora.
“Acabou.”
Por um momento, não soube o que fazer.
“Ele morreu.”
Sentiu seu coração disparar.
Adrien estava ao seu lado, gritando alguma coisa, mas não conseguia escutá-lo; era como se seus ouvidos estivessem cheios de algodão. Não tinha ideia do que dizia e, a bem da verdade, não dava a mínima.
“É culpa delas”, sussurrou algo dentro dele. “É tudo culpa delas.”
Lá fora, o acampamento ardia.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.