Capítulo 0091: Vergonha
A taverneira apareceu uma hora antes do sol, tal como lhe havia dito para fazer.
— Milorde — disse a mulher, trazendo a bandeja com o desjejum: mingau de aveia e leite. Ela pôs a comida em cima da escrivaninha, abaixou bem a cabeça em uma reverência e então se retirou.
“Ela me odeia”, notou. “E como não? A essa altura, vai saber o que sua filha disse sobre mim.”
Siegfried nunca quis atacar a garota.
Ela estava assustada. O rapaz tinha-lhe dito para ir embora logo depois de quebrar o espelho, mas ela não se mexeu e, quando arrancou os lençóis para tirá-la da cama, não pôde ignorar como era bonita. Toda garota era perfeita por baixo das saias.
“Não devia ter feito aquilo.”
Ainda podia ouvir os gritos dela, quando a pôs de bruços na cama, nua e tremendo. O choro meio abafado depois que Siegfried empurrou a cabeça da garota contra os travesseiros para forçá-la a ficar quieta. Seus dedos enrolados em cabelo negro.
“Não devia ter feito aquilo.”
Ficava duro só de lembrar da sensação quando a encoxou, esfregando o seu pênis contra a bunda dela; fazendo a cama ranger com cada empurrão. Tão quente e macia que o rapaz sentiu como se fosse explodir a qualquer momento, bem ali nas costas dela.
Mas quando se aproximou para beijá-la na nuca, viu seus olhos vermelhos e cheios de lágrimas; o terror que sentia. Foi então que a vergonha veio e tomou conta dele. Nunca tinha violado uma única garota antes. Pelo menos esse voto manteria.
E se afastou dela antes que fosse tarde demais. Ou talvez não cedo o bastante.
Nunca chegou a penetrá-la de fato, mas sabia que isso devia ser pouco conforto para a garota e ainda menos para a mãe; nem podia imaginar como ela deve ter se sentido quando teve de vir buscar a própria filha nua e aos prantos na cama que ela mesma lhe ofereceu.
“Retribuí a gentileza dela atacando sua filha.”
Siegfried não conseguiu voltar a dormir naquela noite. Não mais do que alguns minutos. Sempre que caía no sono, sonhava com o que tinha feito; às vezes era a filha da taverneira, outras vezes a garota do lago, até mesmo Brynna, Lura, Dara… Gwen. Todas as garotas que já conheceu. Todas elas chorando e implorando.
— Por favor — diziam. — Está me machucando.
Então havia um brilho e acordava tremendo.
Não sabia dizer quando seus olhos voltaram ao normal, mas voltaram. Notou isso da última vez que acordou. Tinha decidido que já era tarde o bastante e queria ir embora antes que tivesse de encarar a taverneira e suas filhas novamente.
Estava vestindo a brigantina quando pisou em um pedaço de espelho quebrado e viu o seu reflexo. Dessa vez, seus olhos estavam castanhos, como deveriam. A taverneira apareceu com o desjejum alguns minutos depois, quando já se preparava para sair.
Siegfried esperou até que ela fosse embora e deu uma boa olhada no mingau de aveia e no copo de leite, se perguntando em qual deles estaria o veneno. Talvez em nenhum, mas preferiu não arriscar. Pôs o baú com a armadura no ombro e saiu do quarto.
Encontrou uma das filhas da taverneira no corredor e outra lá embaixo com a mãe; as de quatorze e onze anos. A mais velha abaixou a cabeça e fugiu de fininho, mas a mais nova o encarou com raiva primeiro.
Pretendia ir embora mais cedo, antes que tivesse de encará-las; como isso não aconteceu, esperava pelo menos ter a chance de se desculpar com a irmã delas, mas essa não apareceu, por isso deu uma moeda de prata à taverneira como pedido de desculpas e foi até os cavalos.
Lá fora, a chuva finalmente deu uma trégua e o céu cinzento estava sem nuvens.
Tinha acabado de selar a sua égua, quando Lydia apareceu trazendo suas roupas secas. O rapaz agradeceu e guardou tudo em uma bolsa de pano presa ao lombo da mula, mas a garotinha não fez menção de ir embora e permaneceu parada onde estava, o observando em silêncio.
— O que foi?
— Minha mãe diz que o senhor tentou machucar a Beth.
— Foi um acidente! — disse de imediato, mas a voz saiu mais brusca do que pretendia, por isso respirou fundo e se acalmou. — Eu… Não quis machucar ela.
— Eu sei. Foi a maldição. Tentei dizer, mas elas não queriam ouvir. Ainda me tratam como se eu fosse um bebê.
E bateu o pé no chão, para deixar claro o que pensava disso, mas depois hesitou, como se tivesse lembrado de algo. Segurou as saias e abaixou a cabeça, encarando os próprios pés, enquanto dizia baixinho:
— Q-quero ir com você.
— Não quer não. Estou indo pra guerra. Não é lugar pra garotinhas.
Ela abriu a boca e, por um momento, Siegfried pensou que fosse protestar, ao invés disso, ela mordeu os lábios e ficou em silêncio. Ainda era só uma criança. Uma das obedientes ainda por cima. O rapaz deu um sorriso, montou a égua e foi embora sem olhar para trás.
O povoado era pequeno e as ruas começavam a encher conforme os soldados saíam dos bordéis e tavernas em que passaram a noite. Todos a pé, exceto por ele mesmo.
A entrada da trilha comercial ficava bem no final da rua principal; uma estrada de terra sem casas ou obstruções, passando por dentro do povoado, tão larga que praticamente o dividia em dois. Haviam seis guardas locais fazendo a segurança da passagem, com lanças e algumas estacas de madeira que foram removidas para permitir que a tropa passasse.
Siegfried se juntou à marcha e atravessou o arco de madeira e os guardas sem problemas. É claro que eles não cobrariam pedágio dos homens do seu próprio suserano.
♦
A trilha era tão larga quanto tinha o direito de ser. Uma carruagem poderia passar por ali sem muita dificuldade, assim como cinco homens andando ombro-a-ombro, mas a Floresta das Aranhas não parecia diferente de qualquer outra floresta, com árvores, animais e nenhuma aranha-gigante.
Então a noite caiu.
Cabia aos homens do barão Whitefield percorrer a tropa de ponta a ponta, passando por entre as árvores mais próximas da trilha com uma tocha na mão esquerda e uma espada na direita. Nessas horas, até o mais falante deles se transformava em um mudo e os preguiçosos se tornavam mais atentos.
Os outros seguiram o seu exemplo e ficaram em silêncio. Soldados e seguidores de acampamento passaram a dormir juntos para espantar o frio e o medo. Siegfried não foi um deles.
Os barões Kessel e Whitefield faziam a dianteira da tropa, dormindo em suas tendas, enquanto os guardas faziam sua proteção, mas ele se deixou ficar muito para trás quando partiu do Guerreiro do Amanhecer e acabou preso no meio da marcha, dormindo entre os soldados comuns.
Estava se embrulhando em um manto de lã, ao lado do seu baú, quando viu uma garota sozinha se aninhar no chão a pouco mais de três metros, bem no seu campo de visão; devia ter quinze ou dezesseis anos, com cabelos negros e o vestido de linho meio desbotado da viagem.
Já tinha visto ela antes. Era a namorada de um dos recrutas, ou talvez sua irmã, era difícil dizer. Nunca se beijaram, mas pareciam próximos. Exceto naquela noite.
“Cadê ele?”
A garota abriu os olhos de repente e sorriu para Siegfried ao notar que a observava.
— Que frio, né?
— …
— Meu nome é Izzie.
— Siegfried…
— Ah! — Ela se apoiou em um cotovelo, meio deitada, meio sentada. — Foi você que matou o Eradan.
— Não matei–
— Posso dormir com você? Meu irmão não para de beber com os amigos, então sou só eu, mas essa floresta me dá medo e parece até que vou morrer de frio. Me sentiria mais segura dormindo ao lado de um cavaleiro como você.
Ela não esperou por uma resposta, se levantou e veio para junto de Siegfried. O rapaz sentiu o seu coração disparar. Lembrou dos gritos. Da cama rangendo. As lágrimas.
— Não! — disse de repente e a garota parou.
Então deu a ela o seu manto de lã e disse para ir beber com seu irmão. O álcool a manteria quente durante a noite.
A garota aceitou o manto, se virou e foi embora.
“Isso não muda nada”, disse a voz.

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