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    Era noite e Siegfried estava perdido.

    A Vila do Lobo era um labirinto de casas e becos estreitos que levavam a outros ainda menores ou a lugar nenhum. Não havia sinal de soldados em parte alguma, nem dos moradores.

    Estava sozinho.

    Só ele e os cadáveres.

    Tinha acabado de sair de uma ruela e entrado em outra quando encontrou o primeiro; um velho com a garganta aberta até o osso. Sua pele era pálida com manchas amareladas, tão enrugada como a bunda de um elefante. Pelo seu estado, já estava morto há meses e agora era mais vermes do que homem.

    Não podia feri-lo, mas um instinto qualquer o fez buscar pela espada, apenas para encontrar o seu cinto vazio.

    “Preciso achá-la.”

    Então seguiu em frente.

    Cinco minutos mais tarde, passou ao lado de um velho bordel abandonado onde três soldados sem rosto tinham sido pendurados, embora não soubesse dizer se tinham sido retalhados pelos corvos ou pelos homens que os enforcaram.

    Três minutos depois, outros cinco.

    Estavam enfiados em um vão estreito entre duas casas, como se alguém tivesse tentado esconder os corpos. Viu o crânio partido de um velho, meio caído por cima de um rapaz degolado, mas podia ver bem pouco dos outros; por baixo do velho e o garoto estavam dois homens, um dos quais tinha sido decapitado e não se podia ver a sua cabeça em parte alguma; abaixo de todos eles estava um enorme gordo.

    Quanto mais andava, mais cadáveres encontrava.

    Um soldado bêbado degolado e outro decapitado estavam largados como sacos de bosta em uma poça de lama e mijo. Três crianças em uma ruela qualquer: uma partida ao meio, outra decapitada e a última com um buraco no peito; tinham cinco, nove e sete anos, respectivamente. Reconhecia os cadáveres, mas não lembrava de onde.

    Foi só quando viu Thorbert que entendeu.

    “São as pessoas que eu matei.”

    Então foi como se eles brotassem do nada. Uma avalanche de corpos enchendo as ruas. Garotas, homens e crianças. Nem todos estavam mortos. Encontrou Beth olhando para ele da janela do seu quarto no Guerreiro do Amanhecer. Escravos arrastando os pés acorrentados pelas ruelas.

    E outros. Muitos outros.

    Então correu.

    “Preciso da minha espada!”

    De repente a vila se encheu de vida. Agora podia escutá-las dentro de suas casas. Garotas. Muitas e mais ainda. Todas elas chorando, enquanto os homens riam e as camas rangiam. Uma delas lhe parecia estranhamente com Izzie, mas não parou.

    Até que encontrou a cabana.

    Assim que entrou e trancou a porta, tudo acabou. Não se ouvia mais gritos, nem o cheiro de carne podre ou o que fosse. Lá dentro era limpo, quente e aconchegante. Um refúgio seguro.

    Foi onde a encontrou; a mulher mais bonita que Siegfried já tinha visto. Não devia ter mais de 26 anos, com cabelos negros lisos e brilhantes que lhe caíam até às costas e olhos castanhos doces como mel.

    Estava preparando a mesa para um jantar, mas quando o viu, parou e sorriu:

    — Ora! Chegou cedo. O que aconteceu?

    — E-eu…

    Tudo ficou escuro por um momento e quando as luzes voltaram, ela estava morta. O corpo mole e estirado no chão como um fantoche de madeira que teve as cordas cortadas, mas a cabeça tinha desaparecido.

    Só então Siegfried notou a espada em sua mão. A lâmina ensanguentada e brilhando.

    — Não…

    Acordou empapado de suor e com uma pontada de dor em seu peito. Tinha o coração acelerado, a respiração pesada e o gosto de sangue na boca.

    “Um sonho”, disse a si mesmo. “Foi só a droga de um sonho!”

    A primeira coisa que viu foi uma sombra no fundo do quarto. Ainda tinha a visão meio embaçada do sono, mas depressa voltou a enxergar; as janelas estavam fechadas e o quarto era um breu, mas o rapaz podia ver tão claramente como se estivesse de dia.

    Um garotinho.

    — Sam?

    Não. Tinha os mesmos cabelos negros de Sam, mas seus olhos eram dourados como os de um gato, tão brilhantes quanto ouro derretido recém saído de uma fornalha.

    “Um sobrevivente”, compreendeu depois de um tempo, mas foi só quando tentou se levantar que entendeu o motivo dele estar ali.

    Siegfried tinha uma faca de pão enfiada no peito.

    Estava do lado errado, bem longe do coração. E também não foi muito profundo; o bastante para fazê-lo sangrar, mas superficial demais para um ferimento fatal. 

    Arrancou a lâmina e se levantou.

    A criança mal devia ter cinco anos e parecia mais animal do que humana. Rosnava como um cão e estava de quatro, como se tivesse se esquecido a forma correta de andar.

    — Quem é você?

    Ao invés de responder, ele atacou e Siegfried lhe acertou o estômago com um chute tão forte que o garoto começou a vomitar tudo o que tinha dentro dele; o que incluía um pouco de sangue. Não era a sua intenção. Um reflexo involuntário do qual se arrependeu imediatamente.

    — Merda! Você tá bem?

    E estava. Bem o bastante para fugir, pelo menos. De algum modo o garoto conseguiu se levantar e correr feito um cachorro até a parte de trás de um velho armário. Siegfried empurrou o móvel para o lado e encontrou ali um buraco que levava até um cômodo ao lado, mas quando chegou lá, o garoto já tinha desaparecido.

    Tinha assuntos mais importantes a tratar, por isso deixou de lado o incidente e foi ver como os seus patrulheiros estavam.

    Alguns sobreviventes tinham sido encontrados se escondendo em compartimentos ocultos naquela manhã e foram levados para a prisão. Um rapaz de dez anos, duas garotinhas de seis e um bebê de colo sozinho.

    “O calor abaixou e agora os ratos estão saindo das tocas.”

    O garoto voltou a aparecer naquela mesma noite. Tinha bloqueado o buraco atrás do armário e até procurou por outras entradas, mas isso de pouco lhe serviu; acordou de madrugada com o fedelho andando na sua cama, apenas um instante antes dele cravar uma faca no seu travesseiro. E desta vez teria arrancado um olho se o acertasse.

    Siegfried agarrou o garoto pelo braço e sentiu os dentes dele se fecharem na sua mão quase que de imediato. Ao invés de soltar, trocou de mão e o segurou pelo pescoço, enquanto se debatia.

    — Para com essa merda!

    A única resposta que obteve foi um grunhido sem qualquer significado, então amarrou suas mãos e pés juntos, feito um animal abatido, deixou ele no chão e voltou a se sentar na cama.

    “Que merda eu tô fazendo?!”

    Levou quase uma hora inteira até que o garoto se aquietasse. Os dois trocaram olhares e Siegfried esperou mais dois minutos antes de perguntar:

    — Quem é você?

    — …

    — Eu sei, pergunta idiota, né?! Vi os brinquedos. Essa era a sua casa. E o velho que eu joguei da janela ontem era seu pai.

    Dessa vez o garoto rosnou.

    — Cadê a sua mãe?

    — …

    — Irmãos? Tios? Alguém sobreviveu?

    — …

    — Por acaso você é mudo?

    — …

    — Beleza. Tanto faz. Se você não quer falar, eu não dou a mínima. Tava tentando ser legal aqui. Podia achar o resto da sua família e jogar você na mesma prisão que eles, mas já que não sabe abrir a boca, vou só te enfiar no primeiro buraco que encontrar. Tem vários pra escolher–

    — Will.

    — Hum?

    — Eu sou… Will.

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