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    O céu ainda estava cinzento quando Siegfried se levantou e abriu a janela, mas pelo menos tinham acabado as chuvas.

    “E só levou três dias”, brincou.

    Uma semana havia se passado desde o ataque inicial. Nesta altura, todos os cadáveres já tinham sido removidos e a primeira catapulta havia sido terminada ontem; não que pudesse vê-la da sua casa. A taverna tinha apenas dois andares e ficava em uma ruela isolada. Só o que via da sua janela era o prédio três metros à frente e as ruas lamacentas lá embaixo.

    Estava observando dois patrulheiros em sua rota, quando sentiu Lili abraçá-lo por trás e beijar a sua nuca com lábios carnudos:

    — Eu te disse que devíamos ter escolhido aquela alfaiataria na outra rua. A gente ia poder ver a vila toda de lá. Aqui é tão pequeno. Ou será que você gosta disso? Gosta de ficar aqui sozinho comigo? Só nós dois. Escondidinhos. É o que você gosta, né?

    Siegfried se virou e foi embora.

    Lili tinha se tornado estranhamente amigável nos últimos tempos. Quando decidiu fazer de Will seu escudeiro, tudo o que ela disse foi:

    — É um bom garoto e tem muito a aprender com você. Fico feliz que estejam se dando bem.

    Não que a opinião dela importasse, mas ainda o deixava estranhamente inquieto vê-la tão calma, atenciosa e compreensiva. Embora não estivesse errada desta vez. O garoto era agressivo, mas servia bem; aprendia rápido e depressa entendeu o seu lugar. Sem dúvidas que ainda se ressentia pela morte do pai, mas já não tentava mais matar Siegfried.

    Não desde que o deixou três dias na prisão com os outros escravos e prometeu que da próxima vez não voltaria para buscá-lo.

    Quando saiu do quarto, lá estava ele, sentado do lado de fora como um cachorrinho esperando por seu dono. Tão logo o viu, o garoto se pôs de pé e fez uma pequena reverência. Usava a sua coleira de escravo, com o nome de Siegfried gravado em letras rudes feitas com um cinzel de ferro, mas as suas roupas novas eram melhores que os trapos velhos que vestia; botas de couro, com uma calça de lã marrom e uma túnica cinzenta; peças novas e limpas, adequadas a uma criança da sua idade.

    Deu um rápido bom-dia ao seu escravo-escudeiro e desceu as escadas até o primeiro andar. Levou não mais que alguns dias para montar uma rotina de tarefas diárias; uma vida inconsequente pouco lhe agradava.

    Como não poderia ser diferente, a primeira tarefa do dia era sempre exercício físico. Preferia treinar ao ar livre, mas como estava distante demais das áreas abertas, transformou o primeiro piso da sua taverna em um pequeno campo de treinamento; o que se provou uma ótima ideia quando passaram os últimos três dias sob uma forte chuva.

    Depois tinha o desjejum e pegava o seu relatório dos patrulheiros:

    — Nenhuma alteração, senhor comandante — era o que sempre diziam.

    O barão Kessel também exigia os seus próprios relatórios, por isso Siegfried dava uma volta pelo seu território de qualquer modo.

    Muitos seguidores de acampamento já haviam se estabelecido nas novas casas desocupadas, com alguns até mesmo abrindo os próprios negócios e comerciando seus produtos para os soldados; em sua maioria ferreiros e lenhadores, já que as suas principais necessidades eram pontas de flechas e madeira para construir as armas de cerco.

    Lenhadores eram especialmente requisitados nos últimos dias. Os soldados tinham pouco interesse em perder um dia inteiro derrubando árvores e os escravos foram proibidos de deixarem os limites do vilarejo. Como resultado, qualquer garoto com idade o bastante para segurar um machado tinha se tornado um lenhador.

    Para as mulheres, as opções eram bem poucas e a maioria teve de aprender a confeccionar pontas de flechas ou cuidar da casa de seus amantes. O que mais poderiam fazer? Algumas eram até que boas cozinheiras, mas a comida era racionada e não podia ser vendida; trabalhos de artesanato e decoração eram inúteis ali; e as escravas já eram mais do que o bastante para lavar as roupas dos soldados e aquecer suas camas à noite.

    Poucos dos seguidores de acampamento haviam se mudado para o seu distrito; as rameiras que já não tinham mais um trabalho, velhos e párias em geral. Mal chegavam a trinta.

    A maioria deles preferia se estabelecer no distrito do barão Whitefield ou do lorde Kessel, mas até o Adrien tinha mais moradores do que Siegfried por algum motivo que ainda lhe era desconhecido.

    “Talvez os outros distritos sejam mais bonitos. Ou pode ser que eu seja um péssimo administrador e todos já perceberam isso.”

    Não que houvesse muito para se administrar.

    E a vida deles não era nada diferente daquela em outras áreas. Pouco faltava aos novos moradores da Vila do Lobo. Comida, abrigo e respeito. Para as mulheres livres, os casos de estupro já tinham sido reduzidos a zero e algumas até conseguiram um noivo para depois da guerra.

    A vida dos escravos era bem mais dura.

    Idosos e crianças muito pequenas morriam sem descanso todos os dias. A maioria por causa do calor; viviam em porões abafados e lotados, tão cheios que mal se podia sentar. Além disso, sua alimentação era precária, para dizer o mínimo.

    Alguns escravos tinham permissão para deixar a prisão e trabalhar. Praticamente qualquer mulher que estivesse disposta a se tornar uma rameira e agradasse os olhos dos guardas podia fazer isso. Os outros tinham menos opções; voluntários para os piores tipos de trabalho que se podia imaginar, como os limpadores de latrina e os assistentes de ferreiro.

    Esses eram os sortudos.

    E se alguma das garotas se arrependesse da sua decisão ou um voluntário qualquer achasse a sua tarefa ‘humilhante demais’, sempre havia alguém no porão que estava ansioso por tomar seu lugar.

    O que são algumas doenças venéreas e dedos em falta perto da oportunidade de respirar ar fresco e ter a barriga cheia?

    “Podiam ter sido poupados de muito disso se o barão Silvergraft tivesse rendido o castelo.”

    Não que alguém realmente esperasse que ele o fizesse. Até hoje, nunca tinha visto um lorde que de bom grado desistisse das próprias terras para proteger seu povo. Não que isso lavasse as mãos do barão Silvergraft para o que estava sendo feito às pessoas que ele abandonou.

    O homem era um covarde.

    Tanto melhor. Um homem corajoso não assistiria sentado enquanto os seus inimigos constroem as armas de cerco que logo derrubarão seus muros.

    Siegfried estava explorando uma ruela qualquer e tomando anotações dos prédios que precisavam ser restaurados, quando viu Anna esperando por ele na porta de uma alfaiataria. Parecia cansada, mas se animou assim que o viu:

    — Milorde!

    Como tinha pouco o que fazer, Siegfried criou um hábito de conversar com moradores, tal como lhe havia ensinado o conde Gaelor. Às vezes se dava ao trabalho de arranjar um escravo para reparar a casa de algum deles ou realizar outras atividades domésticas tediosas.

    Mas vez ou outra resolvia ele mesmo o problema, se fosse algo pequeno.

    E uma das rameiras aposentadas parecia sempre ter um ‘pequeno problema’ quando falava com ela em sua patrulha. Uma jovem de dezenove anos e cabelos cor de areia cacheados que caíam até os ombros, de quadril largo e cintura fina.

    Hoje ela o tinha recebido usando um vestido leve de seda com decote cigano que lhe desnudava o pescoço e os ombros, com um corpete que cobria apenas a parte de baixo dos seios até a cintura e uma gargantilha negra que combinava com o seu vestido azul. Quando o rapaz se aproximou, ela o beijou no canto da boca, deixando uma marca de batom no seu rosto:

    — O senhor chegou bem na hora.

    — O que houve?

    — Acho que tem um rato aqui em casa, ele anda correndo por todos os lados quando tô dormindo. Já devorou metade das minhas roupas e eu acho que tá tentando me comer também.

    — …

    — Por favorzinho. Só posso confiar no senhor pra fazer isso.

    Siegfried deixou escapar um suspiro e seguiu ela para dentro de casa, com Will logo atrás dos dois, mas quando atravessaram a porta que dava para a parte dos fundos da alfaiataria, alguém pôs um saco na sua cabeça.

    O rapaz tentou se soltar, mas outros dois homens seguraram seus braços e o derrubaram no chão, enquanto um terceiro amarrava suas mãos atrás das costas.

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