Capítulo 0104: Aparências
O quarto de Siegfried cheirava a lavanda.
Dizer que as garotas tinham ‘arrumado’ o Dragão Assado era um eufemismo. Não havia sinal de pó em parte alguma, os traços de mofo crescendo nas paredes tinham desaparecido, novas cortinas de veludo vermelho foram postas, um belo tapete bordado escondia os defeitos no piso e isso era só o começo.
O quarto de antes já não existia mais.
Os móveis velhos foram substituídos por outros, de casas próximas. Um grande armário para suas roupas novas, uma escrivaninha e até mesmo um espelho redondo em outro canto.
De algum modo, Ethel conseguiu deixar a cama mais macia e o rapaz levantava menos vezes de noite graças a ela.
Quando acordou aquela manhã, estava enrolado em lençóis de lã suaves e Lavina arrumava seus trajes do dia: uma túnica vermelha com calças de lã negra, botas de couro e um manto simples. Ao ver que Siegfried estava acordado, ela se virou e veio até ele:
— Milorde. Aqui, vou ajudá-lo.
Ethel se mostrou uma mulher competente. Foi ela quem tomou o controle da situação e organizou a casa, fazendo as garotas obedecerem. Allane era tão selvagem quanto podia esperar, mas também era esperta e dificilmente causava problemas fora o seu hábito de fugir das tarefas. Elsa chorava ao ver Siegfried, mas era esforçada quando o rapaz não estava por perto, segundo Ethel.
Lavina era diferente.
Pensava que seria desafiadora e arrogante, mas não foi o caso. A garota se revelou a mais mansa e prestativa de todas, embora seu objetivo fosse bastante óbvio…
Quando o rapaz se levantou, ela se apressou em lhe tirar as roupas. Estava deslizando sua camisa pela cabeça quando começou a sua rotina diária de fofocas:
— Mal consegui dormir essa noite. Aquela poste da Elsa não para de chorar. Uma semana! Dá pra acreditar?! Aquela garota vai morrer desidratada. Acho que alguns soldados abusaram dela no dia que o milorde e seus homens tomaram o vilarejo. Aposto que tá prenha. Todo mundo sabe que as mulheres ficam mais sensíveis quando acontece. Deve tá carregando o bastardo de meia centena naquela barriguinha lisa dela.
— Não vou machucá-la.
— Foi o que eu disse, senhor. Mas ela queria me escutar?! Não. E ainda tem medo de entrar nesse quarto, sabia? Vive tremendo, achando que uma noite qualquer o milorde vai mandar chamar ela e terminar o que os outros soldados começaram.
— Mas você não?
— Claro que não! Na verdade, seria ótimo poder dormir só uma noite sem ter que escutar o choro dela. Pode me chamar quando quiser.
Siegfried terminou de pôr a nova muda de roupas e desceu para o primeiro andar, enquanto Lavina ficava para arrumar o quarto. Mas não resistiu em dar uma última olhada na garota antes de sair.
Ela sempre se inclinava na cama para arrumar os lençóis e o rapaz podia ver a marca da cinta-liga e meias por baixo do seu vestido de lã branca. As ancas largas dela faziam o tecido se ajustar tanto ao corpo que até podia ver a sua…
Siegfried fechou os olhos depressa e se virou de costas.
Nem mesmo o que aconteceu com a Anna tinha sido o suficiente para acabar com seus impulsos irritantes. Mas agora, quase duas semanas após a brincadeira dos seus patrulheiros, tudo de que se lembrava era a sensação de estar dentro dela.
Da sua boca…
“Não pensa nessa merda!”
Talvez as garotas tenham sido má ideia. Pensava que isso acabaria com os rumores a seu respeito — o que de fato aconteceu. Agora só falavam sobre as quatro lindas escravas que Siegfried tinha feito de ‘amantes’ depois da sua ‘primeira’ vez.
Não tocava nas garotas, mas vez ou outra tinha de alimentar os rumores levando Ethel nas patrulhas ou fazendo-nas servirem os raros convidados que apareciam vez ou outra. Apenas um teatro. Todas elas sabiam.
Mas Lavina era ousada demais.
Ela fazia isso de propósito e o rapaz sabia, mas ainda precisou de dez segundos para acalmar o coração e seguir em frente a passos lentos. Não devia pensar mal da garota. Sua casa tinha sido tomada por invasores estranhos e vai saber que tipo de pesadelo deve ter vivido nas quase duas semanas de ocupação antes dele trazê-la para a sua casa.
Todos precisam sobreviver de alguma forma. Os homens têm as suas espadas. As mulheres têm os homens.
“E um certamente é melhor que uma centena…”
O primeiro piso também havia sido reformado. As garotas não sabiam nada de carpintaria, então os buracos nas paredes e assoalho foram reparados pelo próprio Siegfried, mas o resto foi obra delas.
Uma bela mesa retangular com oito lugares tinha sido posta perto do antigo balcão, com tapeçarias e quadros das batalhas de Elyon decorando suas paredes. Um tanto espalhafatoso, mas servia ao seu propósito e desviava a atenção das tábuas e rachaduras.
Ainda estava descendo as escadas quando sentiu um cheiro doce no ar. Mingau de aveia com geleia de morango e leite. O desjejum estava sendo servido. Allane podia ser a mais nova e a mais selvagem, mas também era a melhor cozinheira.
“Mas não vou comer nada que ela não sirva pras amigas primeiro.”
Foi encontrá-las rindo e conversando, todas elas sentadas à mesa. Ethel comia uma colherada de cada vez, limpando a boca com um guardanapo, tal como uma dama refinada; Allane comia rápido e bebia bastante leite, limpando a boca na toalha de mesa para o terror de Ethel; Elsa tinha Will no colo, ajudando o garotinho a comer enquanto ria da Allane.
Uma tábua solta rangeu por baixo de Siegfried e de repente a felicidade morreu quando o notaram se aproximar.
— Bom-dia, milorde — disse Ethel, sorrindo.
Will também o saudou. Elsa abaixou a cabeça e murmurou para si mesma. Allane fungou e nada disse, voltando para a sua comida, mas agora já não parecia comer com tanto vigor como antes.
Ethel e Allane estavam sentadas uma ao lado da outra em um canto da mesa, com Elsa e Will bem na frente delas. Havia bastante espaço livre, mas escolheu a cadeira da ponta mais afastada, como de costume.
Ethel levantou depressa e voltou quatro minutos mais tarde, com mingau quente, geleia e leite. O rapaz agradeceu e foi a última vez que alguém à mesa abriu a boca.
Quando terminaram, Siegfried levou Ethel para a patrulha.
As construções estavam sendo restauradas e os moradores haviam crescido; agora eram quarenta e poucos graças às pregações de Ethel. A garota tinha criado o hábito de recitar orações e oferecer palavras de conforto aos solitários, o que parecia atrair muitas pessoas.
Vez ou outra o rapaz tinha de parar e permitir que ela fosse até algum morador. Uma velha solitária que perdeu os filhos, um mendigo bêbado e cheio de histórias tristes da sua época como soldado. E até mesmo os escravos que passavam por perto; pessoas com quem conviveu antes da invasão.
— Não aguento mais isso, irmã Ethel — disse um escravo qualquer. Um garoto de treze anos com o rosto castigado pela doença e desnutrido. Era um dos construtores que Siegfried arranjou. — O que fizemos pra merecer esse Inferno?
— Shhh! — Ela o abraçou. — Eu sei. Confie em Elyon. Você é mais forte do que isso. Sei que é.
Siegfried observou em silêncio, enquanto os dois rezavam. O único conforto que lhes restava. Mas de pouco serviria. Quatro dias mais tarde, a última arma de cerco foi finalizada.

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