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    Os muros do Salão Branco não eram muito altos, mas ofereciam uma boa vista do horizonte.

    Em Vila Nova, os moradores levantavam junto ao sol para outro dia de trabalho no campo. Famílias inteiras de camponeses; dos pais às crianças. Se você tinha mais de cinco anos, o seu lugar era na horta.

    Ainda mais além, Siegfried pôde vê-los…

    Dezenas de refugiados vindos do norte, tal como o soldado havia lhe dito. Alguns haviam chegado ao vilarejo e começado a mendigar comida; mais eram aqueles que simplesmente continuaram em frente, seguindo cada vez mais para o sul.

    “A maré virou.”

    Até agora, estiveram sempre no ataque. Primeiro na Torre da Justiça, depois no Castelo Silvergraft e então o Salão Branco. Mas isso mudou. Seja lá o que aconteceu na Vila do Lobo, os colocou na defensiva.

    Segundo o soldado havia lhe dito, já faziam horas desde que os refugiados começaram a chegar do norte. Quando questionou Ermin do motivo para não tê-lo informado antes, o capitão lhe deu uma desculpa meia-boca:

    — Imaginei que não gostaria de ser interrompido. Uma garota como aquela deve deixá-lo exausto.

    Uma mentira óbvia.

    Ermin tinha sido rápido em mandar seus homens capturarem alguns refugiados para interrogatório. A essa altura já sabia muito mais do que ele. Não seria difícil imaginar que também tivesse mantido uma ou outra informação em segredo. Isso já era ruim o bastante por si só, mas o fato de ninguém tê-lo avisado parecia ainda pior.

    Pelas últimas seis horas, Ermin fez exatamente o que quis e nenhuma palavra chegou aos ouvidos de Siegfried até que ele deu a ordem.

    Sempre soube que não podia confiar nos homens que o barão Kessel lhe deu, mas era mais do que isso. Para eles, escolher entre Ermin ou Siegfried não era um dilema. Ermin era o seu comandante e ponto-final.

    Não podia tolerar isso.

    “Uma ordem dele e a minha cabeça vai estar em um espeto antes do almoço.”

    Siegfried acariciou o punho da espada com o seu polegar, deu uma última olhada no horizonte e se virou para o soldado ao seu lado:

    — Quero ver os homens que capturaram!

    — Sim, senhor. Por aqui.

    A prisão estava ocupada com os antigos guardas do barão Whitefield, por isso os refugiados foram acorrentados na parte de trás da fortaleza. Longe de olhos curiosos.

    “Escondidos de mim.”

    Eram três ao todo.

    O mais velho tinha cinquenta anos, barba cheia e parecia um pouco pálido de fome. O garotinho ao seu lado tinha nove anos e as roupas cobertas de sangue seco, embora não estivesse ferido. Mas a garota era aquela em pior estado; tinha quatorze anos, um olho roxo, queimaduras de sol, lábios rachados e provavelmente dúzias de hematomas por baixo do manto cinza que havia recebido dos guardas.

    Todos tinham cabelos castanhos e olhos escuros, por isso pensou que fossem parentes. Não era o caso. Aparentemente, nenhum deles se conhecia até serem capturados e trazidos para a fortaleza.

    — Me digam o que sabem! — ordenou Siegfried.

    — É como dissemos ao outro, milorde. — A voz do velho era fraca e rouca. — V-vieram do nada. Centenas deles… Mataram todo mundo.

    — Não! — disse o garoto. — Todos não. Aquele covarde se escondeu no castelo.

    — Cala boca, moleque! Quer perder a língua!?

    — Do que está falando? — perguntou Siegfried.

    — Do Kessel! — disse e cuspiu, como se o nome fosse um catarro preso na sua garganta. — Esse fidalgo de merda. Ele sabia que estavam vindo e não fez nada! A gente acordou uma bela manhã e todos os soldados tinham sumido. Só deixaram pra trás aquelas catapultas quebradas. Levou um dia inteiro pra descobrir que aqueles desgraçados tinham se escondido dentro do castelo. Pegaram toda a comida e um punhado de ferreiros. Aposto que ficaram também com algumas garotas. Mas o resto da gente? Ele nem deu a mínima.

    — E os homens que atacaram vocês? Eram as tropas do conde Essel?

    — Foi mal, esqueci de perguntar enquanto eles incendiavam tudo.

    — Quando foi isso?

    — Sei lá. Uns três dias?!

    — Quatro — corrigiu a garota, encolhida em volta do seu manto, enquanto encarava o chão. — Faz quatro dias. Os escravos… E-eles se soltaram no meio da confusão…

    De repente, ela começou a chorar. Mas era ódio o que tinha em seus olhos.

    — Devíamos ter matado eles quando tomamos o vilarejo! Todos eles! Aqueles animais. São piores que os selvagens.

    No fim, eles sabiam bem pouco.

    O velho estava entre aqueles que entenderam o que a atitude dos soldados significava e deixaram o vilarejo antes do ataque. O garotinho ficou junto dos seus pais até os soldados inimigos chegarem e acabou escapando no meio da batalha. A única que ficou na Vila do Lobo tempo o bastante para ver o desfecho foi a garota.

    Os soldados fizeram o que sempre faziam, mas o pior foram os ex-escravos libertos.

    As mulheres castraram todos os homens em que puseram as mãos — não apenas os adultos, mas também crianças de cinco anos ou mais. Se você tinha alguma coisa nas calças, elas cortariam fora e depois o fariam comer.

    Os homens foram um pouco mais criativos.

    Algumas de suas vítimas foram penduradas de cabeça para baixo e afogadas em um balde de fezes humanas. Outras foram forçadas a foder com um porco ou cavalo e acabaram morrendo durante o ato ou cometendo suicídio mais tarde.

    Os mais sortudos poderiam ser empalados vivos, esquartejados ou queimados na fogueira.

    — Eles queriam me ver fazer com um cavalo — a garota explicou. — Mas estavam bêbados e eram só alguns metros pra sair da vila, então eu montei nele e fugi. O cavalo morreu, mas me tirou de lá. Espero que tenha um céu pros cavalos. Acho que ele merece.

    Siegfried mandou que fossem alimentados antes de enviá-los embora.

    — A Torre da Justiça fica a dez dias de caminhada pro sul, se andarem depressa. De lá, podem ir pra onde quiserem. Mas não tenho espaço para nenhum de vocês aqui.

    Não demorou para que a notícia se espalhasse e os rumores começassem:

    — O barão Kessel tá morto. O conde Essel pôs o castelo abaixo e enforcou ele.

    — Que nada, foi o lorde Whitefield.

    — Mas ele não tava morto?

    — É, eu também ouvi isso. O barão Kessel não tinha envenenado ele ou algo do tipo?

    — Exatamente. Foi a traição dele que atraiu a ira de Elyon e lançou uma maldição sobre o castelo. Dizem que o fantasma vingativo de sua graça fez uma verdadeira chacina que durou dias. Matando cada homem, mulher e criança dentro dos muros. Mas deixou o barão Kessel por último. Quando o conde Essel finalmente chegou, já estavam todos mortos.

    — Eu ouvi uma coisa parecida, mas tinha sido o lorde Kessel que enlouqueceu e matou todos os seus homens. Quando o conde Essel chegou, o barão era o único vivo e foi enforcado como um traidor.

    — Isso parece mentira.

    — Não. Eu ouvi de um dos refugiados. Ele disse que viu tudo.

    Outras histórias também vieram.

    Alguns acreditavam que o barão Kessel foi morto pelo Sir. Edgar Whitefield, seu filho Hunter ou até mesmo o próprio Draco — que veio vingar o pai.

    A única coisa em que todos pareciam concordar era que o barão Kessel estava morto e o conde Essel marchava para o Salão Branco em seguida.

    Nenhum deles era louco o bastante para dizer em voz alta, mas Siegfried sabia o que pensavam.

    “Eles querem que eu me renda.”

    Não podia fazer isso.

    Mesmo deixando de lado a sua lealdade ao barão Kessel e a mancha da covardia em sua alma, era pouco provável que o conde Essel não lhe desse a corda… Talvez, só talvez, ele estivesse disposto a mantê-lo como um refém e exigir algum tipo de resgate ao Salão dos Poucos.

    Isso lhe daria alguns dias de vida. Talvez uma ou duas semanas. Mas seria morto na mesma assim que a resposta chegasse. Com o conde Gaelor já morto, o governo do condado passava para a sua esposa — e Siegfried era incapaz de imaginar um único cenário onde ela o salvaria.

    Quem sabe ele pudesse arranjar uma carruagem para levar Alethra e o bebê de volta ao Salão dos Poucos. Ainda seria covardia, mas também seria vida. Nem a condessa poderia ignorar o seu feito; mesmo que o mandasse embora, ainda teria que lhe dar um pouco de prata. O bastante para que o rapaz fosse para outro lugar e conseguisse outro trabalho como mercenário.

    Restava saber se Ermin permitiria isso.

    O quão profunda seria a sua lealdade para com o barão Kessel? Até onde estaria disposto a ir para honrar a memória de um homem morto? Morreria por ele? Talvez sim, talvez não. Mas parecia mais do que um pouco provável que estivesse disposto a garantir que Siegfried sim.

    O rapaz era seu escudo.

    Se o conde Essel chegasse, tudo que Ermin tinha de fazer era render Siegfried e abrir os portões. A linha de ação perfeita; seria poupado e se livraria dele — dois coelhos com uma cajadada.

    “Parece que eu não tenho escolha”, sorriu.

    Mas tinha.

    A baronesa Whitefield queria falar com ele.

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