Capítulo 0133: Traição
O desjejum foi tão extravagante quanto era de se esperar.
Nada do mingau de aveia com o qual Siegfried se acostumou após tantas semanas. Ao invés disso, serviram empadas recheadas com queijo, geleias de morango, omeletes e, acima de tudo, cerveja. As servas não falhavam em manter os copos dos convidados cheios a todo momento.
Tudo para agradar ao novo castelão do Salão Branco.
“Ele não merece isso”, sussurrou Lili.
Mal havia se passado uma hora desde que o barão Lawgard pisou na fortaleza, mas teria sido impossível dizer isso pela forma como se portava. Sem o menor pudor, roubou o assento à cabeceira da mesa — o assento de lorde do Salão Branco — e formou seu próprio círculo interno.
À sua direita, na posição mais honorável, estava a baronesa Whitefield, com Alethra Gaelor e seu filho, Salazar, sentados ao seu lado. À esquerda, Adrien Lawgard e Astrid Whitefield.
Siegfried recebeu o assento ao lado da condessa Alethra. Uma cortesia vazia. Mesmo que o rapaz estivesse entre eles, não era um deles. Não tinha qualquer papel na conversa acalorada do barão e da baronesa; algo sobre novos impostos e outros meios de arrecadação. Tão pouco havia algo que pudesse ser feito em relação a Alethra — a garota se limitava a alimentar o filho e ficar em silêncio.
No entanto, o que mais incomodou foi Astrid.
Conhecia ela há exatamente trinta e quatro dias. Uma garota selvagem e distante, que assustava as servas e não respeitava qualquer soldado. De certa forma, lhe lembrava Gwen, embora a Astrid não sorrisse…
Exceto hoje.
Mesmo sem ter completado seus dezesseis anos, ainda era dois anos mais velha que Adrien — um fedelho de peito liso e cinco centímetros a menos do que ela. Não conseguia entender como aquele poderia ser o tipo de ‘homem’ que lhe chamava a atenção, mas de alguma forma era.
Não que o sentimento fosse recíproco.
Embora Adrien agisse de modo cortês, era evidente o quão pouco se interessava pela donzela Whitefield. Enquanto ela sorria, tentando puxar assunto, ele parecia mais interessado em terminar a empada de queijo esfriando no seu prato.
“Ainda é novo demais.”
No fim das contas, foi uma refeição tranquila…
Então anoiteceu.
♦
Siegfried acordou de repente e sua mão buscou instintivamente pela espada ao lado da cama. O coração pulsando acelerado, feito um tambor de guerra.
Nada.
O quarto estava vazio.
Lavina dormia pacificamente ao seu lado, suada e despida. O cheiro de sêmen ainda impregnado ao seu corpo macio e delicado. Mas fora ela, não havia mais ninguém no alojamento. Nada além de silêncio e sombras.
Então eles vieram.
A porta do quarto estava trancada e Siegfried era o único que tinha a chave, mas de alguma forma a porta se arreganhou e cinco soldados Lawgard invadiram. Cota de malha e lanças.
“Eu disse”, sussurrou Lili em seu ouvido. “Você nunca devia ter confiado neles.”
Ao seu lado, Lavina acordou assustada com o barulho e deu um grito curto, antes de se agarrar aos lençóis, cobrindo a própria nudez.
Siegfried a ignorou e pôs-se de pé:
— O que estão fazendo aqui!?
— Sua graça exige sua presença! — disse o mais velho dos soldados. Um homem de feições duras, barba espessa e braços grossos como toras. Sua lança decorada com um lenço rosa desbotado na ponta. Um tenente. — Abaixe a espada e venha conosco!
— E se eu recusar?
— Você está!?
Enquanto falava, os outros soldados se moviam cada um para uma ponta do quarto, formando um perímetro ao redor do mercenário.
Siegfried podia sentir o sangue fervendo. Mesmo nu e cercado, sabia que podia vencê-los. E como não? Um velho e seus quatro garotos-soldados. Que chance tinham?
— Esse é o seu último aviso — disse o tenente. — Venha conosco em paz, ou iremos arrastá-lo! Acorrentado e ensanguentado, se tiver de ser.
“Eles vão matá-lo”, disse Lili. “O que mais poderia ser?! Se for com eles, a sua cabeça vai decorar os muros desta fortaleza. Eu disse que não podia confiar neles.”
E não podia.
Por isso atacou.
O tenente era claramente um veterano de várias batalhas, mas ainda assim um velho. Seus olhos viram Siegfried avançar, mas de nada adiantava. Era pesado e lento demais para interceptá-lo.
O aço anão trespassou suavemente os anéis de metal da cota de malha e abriu-lhe o ombro sem qualquer dificuldade. O sangue escorreu, o osso trincou e os anéis ensanguentados tilintaram ao cair no chão.
Mas ao invés de entrar em pânico e recuar, o tenente firmou os pés no chão e jogou o ombro direito — que não estava ferido — contra o peito de Siegfried. O impacto empurrou o rapaz para trás e foi apenas por muito pouco que não tropeçou e caiu no chão.
Então viu a lança.
Um corte de quase vinte centímetros rasgou seu peito nu e fez o sangue escorrer. Superficial. Não seria mais que outra cicatriz no corpo marcado do jovem mercenário. Mas o tenente conseguiu o que queria e fez Siegfried recuar demais.
— Não! — gritou Lavina.
Quando o rapaz deu por si, estava cercado pelos três guardas Lawgard. Não. Eram quatro. Mas só lembrou disso quando a lança do último deles — que estava escondido atrás dele — acertou o seu quadril. Por sorte, a ponta de metal atingiu o osso e parou sem rasgar qualquer órgão interno.
“Mate!”, disse Lili.
E matou.
Começou pelo que estava atrás dele. O soldado usava um elmo cônico com proteção nasal e uma touca de malha para proteger as partes expostas, mas pouco bem lhe fez. Quando a espada de aço anão o atingiu, o elmo quebrou e os elos de metal da touca de malha se despedaçaram.
Siegfried o acertou com tamanha ferocidade, que foi possível ouvir um breve estalo quando o seu crânio rachou com o impacto. Já estava morto antes mesmo de atingir o chão.
O segundo guarda ainda estava em choque pela morte do colega, quando a lâmina de Siegfried o abriu do ombro ao umbigo. Os anéis da sua cota de malha se romperam e a própria vestimenta se desfez em milhares de pequenas argolas de ferro que se espalharam pelo chão.
O terceiro fechou os olhos e arremessou a lança, mas passou longe e Siegfried nem sequer precisou se dar ao trabalho de desviar. Cortou a sua garganta com um movimento longo e viu o sangue tingir de vermelho a parede do quarto.
Sem perceber, estava sorrindo.
— POR ASHER!
De repente o tenente avançou e o velho assoalho de madeira começou a ranger sob seus pés. Com o ombro esquerdo mutilado, o veterano não tinha outra escolha senão manter a lança em riste com apenas uma mão, o que deixava a haste trêmula e desbalanceada.
Siegfried aguardou calmamente até que a lança estivesse a menos de trinta centímetros do seu peito, então girou nos calcanhares.
O velho tenente passou reto e sua lança perdeu o alvo. As costas completamente expostas para um contra-ataque. Quando tentou parar e se virar, os seus pés deslizaram no chão escorregadio com o sangue de seus subordinados e argolas de metal despedaçadas. Então perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos.
“Acabou.”
Antes que tivesse tempo de se levantar ou fazer algo a respeito, o aço anão se enterrou nas suas costas, perfurando-lhe o pulmão. A ponta saindo do outro lado, dois ou três centímetros abaixo do seu mamilo direito.
Siegfried torceu o cabo e arrancou a espada.
Devia estar morto.
Por isso o rapaz ficou bastante surpreso quando viu o tenente se levantar mais rápido do que uma pessoa naquele estado devia ser capaz e mordeu o seu pescoço feito um animal raivoso.
Um animal de verdade teria lhe aberto a jugular e matado Siegfried em questão de segundos, mas os maxilares do tenente não eram tão fortes assim. Os seus dentes se enterraram na carne exposta, mas atingiram uma parte onde havia mais osso do que carne. Doeu, rasgou a pele e fez o sangue escorrer, mas isso foi tudo.
Bastou um pouco de esforço para derrubar o seu adversário moribundo. O pescoço ardendo como se tivesse sido marcado em brasas. Só então percebeu que lhe faltava um pequeno naco de carne.
— Merda!
O último guarda avançou com um grito de guerra, mas Siegfried usou a espada para dar um tapinha de leve na ponta da lança e isso foi o bastante. O idiota perdeu o controle e a haste pesada o levou direto até a parede do quarto, onde bateu de cara e se estatelou no chão.
Ao invés de finalizar o guarda caído, Siegfried foi até o tenente moribundo.
O velho estava deitado de bruços em uma poça do próprio sangue, lutando para puxar o ar pela boca — o que parecia bastante doloroso, a julgar pelas lágrimas e o sangue que fluía pelos pulmões.
Siegfried enrolou as mãos no cabelo do tenente e puxou sua cabeça para trás, até que estivesse de joelhos. Quando fez isso, o corpo dele começou a tremer feito a mão de uma velha. Nessa altura, os seus olhos tinham perdido quase toda a cor e seu rosto estava branco como leite. Mas foi capaz de se manter ajoelhado por tempo o bastante…
Siegfried segurou a espada com as duas mãos e decapitou o velho tenente em um único golpe.
Seis metros atrás dele, o último guarda enfim se punha de pé depois da sua investida desastrosa. Esperava que ele fosse tentar fugir ou se render, ao invés disso, o soldado atacou.
— LAWGARD!
Mal devia ter quinze anos. O rosto castigado pelos anos de trabalho no campo e as mãos trêmulas, mas investiu em direção à Siegfried com coragem. E morreu feito um homem quando o aço anão lhe atravessou o peito.
E a batalha terminou.
— M-milorde — chamou Lavina. — O que vamos fazer?
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