Capítulo 0139: Vigília
O Salão Branco não contava com uma capela, por isso Siegfried passou a sua vigília de armas do lado de fora.
Embora os costumes de Thedrit não o obrigassem, decidiu passar pelo processo usando uma calça de lã e nada mais. A noite fria lhe beijando o corpo e rasgando a sua pele a cada brisa. Ao estilo dos Guerreiros de Qaredia.
Os anões não possuíam cerimônia de investidura — o mais próximo disso era quando um jovem guerreiro matava o seu primeiro inimigo em batalha e ganhava o direito de forjar a sua própria arma. Uma tradição tão sagrada para eles como a cavalaria era em Thedrit. Mas a privação e a meditação não lhe eram estranhas. Em Qaredia, elas apenas tinham um significado diferente…
Expiar seus pecados.
Fosse no topo de uma montanha, no coração da floresta ou numa planície qualquer. Não importa, desde que a fúria dos deuses possa alcançá-lo. Por um dia, uma semana ou um ano. Isso caberia a você decidir. Mas ninguém se atrevia a retornar antes de estar à beira da morte.
Para o povo de Dragoslav, essa era uma tradição sagrada. Para os Guerreiros de Qaredia, ia muito mais além: era um renascimento. E nenhum anão faria pouco disso.
Mas será que não era exatamente o que Siegfried estava fazendo?
Observou a pequena estatueta de madeira à sua frente. Um cavaleiro de dezoito centímetros, com armadura completa e uma espada longa. O rosto exposto sem o elmo e uma coroa em sua cabeça. Elyon Graylock, o Único — fundador do reino de Thedrit e divindade padroeira daquele país.
Será que estaria traindo também aos deuses por rezar a Elyon? Não sabia dizer. Esperava que a Irmã Serena viesse até ele. Que ela o perdoasse ou o acusasse de blasfêmia. Que lhe dissesse o que havia feito de errado e o que deveria fazer para reparar isso. Mas se ela viu o que estava fazendo, não deu importância.
E por que deveria?
Já não havia sequer um único voto que Siegfried não tivesse quebrado. Não ficaria surpreso se ela o abandonasse. Dragoslav certamente o havia.
“Será que Elyon seria mais compreensível?”
Se os deuses anões haviam-no esquecido, talvez um novo deus o acolhesse. Um deus humano. E por que não? Adotou os deuses de Qaredia após seu vilarejo queimar, por que não poderia fazer o mesmo agora?
Essa não foi a primeira loucura que o acometeu naquela noite, tão pouco a maior.
A batalha pelo Salão Branco havia acontecido há três noites. O seu jejum começara há duas e não deveria ter durado tanto; apenas um dia. Este era o esperado de um escudeiro. De fato, a baronesa Whitefield, Lavina e até mesmo Ethel vieram para parabenizá-lo pela sua conquista naquela manhã, mas Siegfried as mandou embora:
— Minha expiação ainda não terminou.
Nessa altura, já tinha a garganta seca e suava de forma profusa. Seu estado piorou bastante desde então. Agora, o coração batia acelerado e sentia a vista nublada. Sua mente, lenta e confusa.
— Posso torná-lo um cavaleiro — havia lhe dito a baronesa Whitefield. A mais doce das promessas. — Não será mais um mercenário, mas sim ‘Sir. Siegfried, o Valente’.
E o rapaz aceitou.
Como cavaleiro, poderia liderar as tropas da casa Whitefield e conquistar o seu próprio castelo. Um lugar para chamar de seu. Não faria dele um rei, mas…
Estava desistindo?
Veio à Thedrit para conquistá-la. Se tornar um rei e então retornar à Qaredia, onde finalmente seria digno o bastante de pedir a mão da princesa Lura em casamento. Mas agora que pensava nisso…
“Foi um sonho infantil.”
Quando chegou à Thedrit pela primeira vez, não planejava nada além de fazer um pouco de ouro como mercenário, até que tivesse o bastante para formar a sua própria companhia. Eles cresceriam até que se tornassem um exército de verdade e então conquistariam o país inteiro. Eradan Lancaster devia ser apenas o primeiro de muitos contratos. Mas isso não deu certo.
A serviço do conde Gaelor, se deixou convencer de que haveria uma recompensa esperando por ele. Terras e títulos. Como um nobre, teria poder para formar alianças e aumentar as suas forças através da vitória no campo de batalha. Mas agora o conde Gaelor estava morto e não haviam recompensas esperando por ele.
Pior ainda, realmente acreditou que seria capaz de se casar com Dara e reivindicar o condado de Essel, junto com todos os seus domínios e votos de vassalagem.
Cada vez mais ambicioso, cada vez mais impossível.
Haviam dois reis em Thedrit e nenhum deles era Siegfried. Nem ao menos tinha certeza de ainda amar Lura. Não desde que tomou Dara. Embora também já não estivesse tão certo quanto a ela. O barão Kessel havia deixado bem claro: Dara Essel não era uma opção! E a cada dia que passava, se conformava com o fato de que ela também nunca seria sua.
Não amava Lavina, mas era a única que restava. Gentil, leal e bonita o bastante. Uma vez que ele se tornasse um cavaleiro e conquistasse algumas terras, poderia tomá-la como esposa. Colocar um ou dois bebês em sua barriga e viver em Thedrit; não como um rei, mas como um fidalgo.
Para um filho de fazendeiros como ele, não seria tão ruim. Sua mãe gostaria. Uma vida tranquila e uma boa família. Nada de guerras. E morreria de velhice em sua cama, não sangrando na lama em uma batalha qualquer.
“É isso o que quer?”, pensou ter ouvido a voz da Irmã Serena, mas também poderia ser apenas a sua mente delirante.
Se imaginou em um pequeno salão. Sentado em seu trono de madeira, com Lavina ao seu lado e algumas crianças descalças correndo por aí — os garotos se pareciam com ele e as garotas, com ela. Thrarim e outros amigos de Qaredia também estariam lá, vindo para visitá-lo, trocar histórias e elogiar sua família. Seus campos seriam verdes e o povoado, pequeno, mas próspero. Sua espada, esquecida como uma mera decoração atrás do trono.
Todos felizes. Exceto ele. A única coisa que sentia era um vazio no peito.
Não queria um pequeno salão, queria um castelo! Queria Thedrit! E aquela visão o enfureceu.
Sombras chegaram montadas em cavalos negros como a noite, carregando chamas brancas. O seu campo verdejante tornou-se árido, o povoado se desfez em cinzas e Lavina foi morta, assim como os seus filhos e os convidados. Mas quando chegaram até ele, as sombras pararam e tornaram-se uma só…
Um cavaleiro negro em uma armadura de espinhos.
A criatura nada disse, mas Siegfried viu como ela o olhava de cima e soube que zombava dele. Em sua força, o cavaleiro negro sentia-se superior ao rapaz em sua frente. Foi só quando tentou se levantar que percebeu a razão: estava velho.
Não sabia dizer como aconteceu, mas tinha uma longa barba grisalha e sentia as suas roupas de lã pesarem nos ombros. Estava fraco. E quando tentou pegar sua espada, ela lhe queimou as mãos, como se o rejeitasse.
Velho, fraco e indefeso.
♦
Siegfried acordou em sua cama.
A primeira pessoa que viu foi Lavina, usando um pano úmido para limpar o seu rosto suado. Assim que a garota notou que havia aberto os olhos, se apressou em abraçá-lo e dizer qualquer coisa, antes de correr até a porta e voltar com Ethel.
Seu estado era bem pior do que teria julgado em um primeiro momento. Quando lhe fizeram beber um copo d’água, sentiu-na rasgar a sua garganta até sangrar. Por um instante, pensou que talvez estivessem tentando matá-lo. Que fosse veneno ou coisa pior. Mas o obrigaram a beber um copo após o outro, até que finalmente a dor se tornou alívio e o rapaz percebeu que era apenas água e nada além disso.
Levou quase uma hora até que Siegfried tivesse forças para se sentar e perguntar:
— Quanto tempo eu dormi?
— Algumas horas — respondeu Ethel. — Lavina o encontrou desmaiado lá fora. Devia agradecer. Nem os guardas notaram e já estávamos todos dormindo. Se tivesse ficado lá até agora… Bem. Foi muita sorte.
Depois disso, Ethel enfeitiçou quatro maçãs para que emitissem um brilho prateado e mandou que o rapaz as comesse. Quando terminou, não tinha mais fome ou sede. Sentia-se revigorado.
— Elyon deve amá-lo muito — disse Ethel. — As preces que ele me tem atendido em seu nome…
A cerimônia de investidura começou ao anoitecer.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.