Capítulo 0143: Uma longa jornada
Siegfried podia sentir a palma de suas mãos em carne viva. O cabo do machado lhe esfolando a pele até sangrar. Mas não parou.
Segurou firme e desceu a lâmina afiada em uma pequena tora de madeira, que se dividiu em dois pedaços mais ou menos irregulares.
— Merda!
Agora não havia mais o que fazer. Atirou as toras de madeira junto às outras, em uma pilha de lenha deformada ao seu lado, e continuou o serviço.
O sol já lhe fugia no horizonte e o ar frio da noite começava a soprar, mas o rapaz estava molhado de suor após um dia inteiro de trabalho. O cheiro de madeira impregnado em suas roupas. Trabalhar era difícil. Tinha se esquecido disso.
Comandar podia ser exaustivo, mas cortar lenha sem descanso durante cinco dias era pior.
Hoje fazia exatamente duas semanas desde que o trio deixou o Salão Branco. E tinham recebido o suficiente para não mais do que uma semana de viagem.
— Refugiados não andam por aí com carroças de suprimentos — explicou a baronesa Whitefield. — E mesmo que andassem, alguém roubaria vocês. Todo mundo roubaria vocês.
Ela tinha razão, por isso o rapaz não questionou a decisão na época.
Mas a guerra havia tornado a caça escassa. Sua última porção terminou enquanto atravessavam a Floresta das Aranhas e não havia nada que eles pudessem fazer a respeito disso. Por sorte, levou apenas mais dois dias até chegarem ao povoado, onde Ethel rapidamente lhes arranjou comida e abrigo.
O Castelo Essel ficava ao norte; e o povoado, ao sul. Mas não houve qualquer protesto contra sua decisão na questão da rota.
Embora não pudessem ver os espiões, ninguém duvidava de que estavam à espreita. E era pouco provável que deixassem de notar a partida deles. Se fossem direto para o norte, seriam delatados e a missão, exposta. Mas o sul era deles. Território hostil para qualquer espião.
Quem quer que tentasse segui-los, acabaria por se destacar facilmente. Os riscos eram altos. Além disso, por que tentar?
Para qualquer um que os visse, Siegfried, Ethel e Dalkon não passavam de três viajantes com uma mula. Mesmo Dalkon havia tido o bom senso de deixar seus trajes mais espalhafatosos para trás. E supondo que alguém pudesse reconhecê-lo ou suspeitar de suas origens nobres… Bem, não era uma boa ideia pensar nisso. Além de ser pouco provável.
Um grupo de jovens seguindo para o condado de Gaelor. Talvez mensageiros. Era como deveriam parecer. E poucos espiões arriscariam o pescoço seguindo qualquer bando maltrapilho, ainda mais em território hostil.
Talvez por isso não tenham visto ninguém.
“Será que fui cauteloso demais?”
Pretendia seguir para o sul, do Salão Branco até a fronteira com o condado de Gaelor. A Floresta das Aranhas serviria para ocultar o rastro deles e despistar qualquer espião. Uma vez que tivessem atravessado, virariam para leste, dando a volta na Floresta das Aranhas até o condado de Donoghan e, de lá, seguiriam para o norte.
Chamariam menos atenção seguindo essa rota. O conde Donoghan era aliado ao príncipe Helmut Graylock, mas não foi em auxílio ao conde Essel quando as suas terras foram invadidas. Talvez a relação deles não fosse tão boa. Ou sua lealdade estivesse vacilando. Fosse como fosse, seria fácil passar despercebido… Provavelmente.
Mas significava um desvio de um mês inteiro. Talvez dois. Tempo do qual não dispunham.
“E mesmo assim, aqui estou. Cortando lenha, ao invés de seguir em frente.”
Sem mantimentos, tinham pouca escolha senão conseguir mais no povoado que ficava em frente à Floresta das Aranhas. O mesmo onde Siegfried conheceu Beth.
Quando fechava os olhos, ainda podia ver o seu corpo nu. Lembrar da sensação da bunda macia dela quando a encoxou… Ouvi-la aos prantos.
“Não devíamos estar aqui.”
Mas precisavam de mantimentos.
O outono havia chegado e o povoado não tinha o suficiente para comerciar. Podiam conseguir uma refeição quente na taverna, mas não duraria nem um dia na estrada antes de estragar. Precisavam de carne seca, biscoitos de sal e coisas do tipo; o que era bem mais difícil de encontrar.
Graças a Ethel, eles conseguiram abrigo na casa de um casal de idosos em troca de um pouco de trabalho braçal. A princípio, o velho parecia animado por ter a ajuda de dois jovens saudáveis como Siegfried e Dalkon.
— Todos os garotos da vila foram pra guerra. Dá pra acreditar?! Bando de moleques remelentos. Todo mundo quer ser herói, mas ninguém quer cortar lenha. Bom, é essa lenha que vai manter a gente aquecido no inverno. Que acham disso?!
Falava-se de uma ou duas moedas de prata no final — embora Dalkon achasse pouco. Mas isso foi só até começarem a trabalhar de verdade. Até então, Siegfried não fazia a menor ideia de que era possível cortar lenha ‘errado’, mas, aparentemente, havia realizado tal proeza.
Não seriam pagos, afinal, estragaram madeira de boa qualidade; que agora teria de ser vendida por um preço bem menor do que o esperado. O velho provavelmente os teria mandado embora se não fosse pelo respeito que tinha por Ethel como uma sacerdotisa de Elyon.
E, por cinco dias, tiveram um teto sobre a cabeça e uma tigela de sopa quente duas vezes por dia. Até hoje.
O sol finalmente se pôs e o céu escureceu, então Siegfried terminou de juntar a lenha disforme em uma carroça e a levou até um pequeno galpão, onde as empilhou para secar.
Já estava na metade, quando Dalkon entrou com a sua própria carroça de lenha deformada e deu início ao seu ritual diário de reclamações. Embora não gostasse de Siegfried — e o sentimento fosse mútuo —, o garoto parecia esquecer disso quando precisava de alguém para escutá-lo.
— Esses velhos egoístas. Eles tão fazendo a gente trabalhar feito cães, enquanto não fazem nada o dia todo! Quem eles pensam que são!?
— Os donos dessa casa. Que estão deixando a gente morar aqui.
— Eles só moram aqui porque nós protegemos eles! Se não fosse pela gente, o conde Essel já teria passado esse lugar inteiro na espada. Eles deviam ser gratos e matar um ou dois daqueles leitões pra gente comer, não ficar servindo água suja! Eles lavam um pouco de repolho na tigela e chamam isso de sopa de vegetais. Se não tem repolho na tigela, eu chamo de água!
“Ele fala como o Dorian.”
Siegfried terminou de empilhar as toras e foi embora, deixando o garoto sozinho.
Não houve qualquer incidente.
Apesar de suas reclamações incessantes, Dalkon fez todas as tarefas que lhe foram impostas e não chamou mais atenção do que devia. De um certo modo, parecia mais jovem do que seus dezesseis anos indicavam; como uma criança tentando lutar contra a vontade dos pais.
Ethel havia se tornado bastante popular entre os moradores. Suas preces e conhecimento médico foram o motivo de terem conseguido alguns pães e biscoitos de sal para a viagem. Mas também foi discreta e não chegou a usar magia.
Siegfried permaneceu a maior parte do tempo na casa dos idosos, temendo reencontrar Beth ou as suas irmãs por acaso. Isso não aconteceu. Devia ir até lá e pedir desculpas? Não. Isso só causaria ainda mais problemas. A família provavelmente já havia seguido em frente e seria um baque se ele voltasse de repente.
“Vai ser melhor se esquecerem que eu existo.”
E partiram na manhã seguinte.
Sem incidentes.
Não até depois de deixarem o povoado.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.