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    Siegfried sonhou com a Irmã Serena.

    Ela apareceu diante dele em sua armadura branca; cada placa perfeitamente ajustada cobrindo-lhe o corpo pequeno e forte, deixando à mostra apenas seu rosto — emoldurado por uma longa trança de cabelos dourados que pareciam ter luz própria.

    A pele lisa e suave, como uma boneca. Tão linda quanto imaculada. Mas eram seus olhos verdes que realmente lhe chamavam a atenção…

    Eles o encaravam de forma penetrante e severa, julgando-o. Não havia qualquer traço de simpatia ou compreensão nela, apenas avaliação dura e a sensação de inferioridade que crescia dentro de seu peito.

    — Quem é você!? — ela perguntou.

    Só então percebeu que estavam no topo de uma montanha tão alta que quase tocava as nuvens… Nuvens negras de uma tempestade que tomava o mundo. Trovões explodindo no céu, como que ameaçando derrubá-lo em sua cabeça.

    — Quem é você!? — ela voltou a perguntar. Sua voz em perfeita sincronia com a tempestade. Não. A voz dela era a tempestade.

    — Siegfried — gritou, sua voz se perdendo entre os trovões. — Eu sou Siegfried de Lâmina Feroz!

    Então começou a chover. Os ventos tão intensos que ameaçavam derrubá-lo a qualquer momento. A Irmã Serena não gostou da sua resposta.

    — Quem é você!?

    — E-eu sou um guerreiro de Qaredia!

    E um relâmpago explodiu ao seu lado, destruindo parte da montanha. A serva de Dragoslav estava perdendo a paciência.

    — Quem é você!?

    Mas a voz lhe escapou.

    O brasão das Irmãs Serenas brilhava na placa de metal em seu peito. Duas asas douradas abertas, como se fossem levantar voo. Mas que de algum modo não pareciam tão brilhantes como da última vez que a viu.

    — E-eu… Eu não sei.

    — Dragoslav o acolheu e você o abandonou. Se curvou a um falso deus estrangeiro.

    Não sabia o que dizer, então se manteve em silêncio. Isso só pareceu irritá-la ainda mais:

    — Você não é mais bem-vindo em seus salões!

    A terra se abriu sobre seus pés e Siegfried caiu na escuridão, acordando em sua cama — um velho colchão de palha forrada no chão. O Salão Frost tinha apenas um quarto e, apesar do fedor, era tudo que o protegia do frio.

    Mimosa vinha cuidando de seus ferimentos desde a batalha há cinco dias, mas estava longe de ser tão boa como Ethel. E não a encontraram em parte alguma.

    “Talvez tenha se perdido na floresta.”

    A princípio, pensou em pedir ajuda aos moradores que conheciam melhor a região, mas eles logo se mostraram bem pouco cooperativos. Ao invés de agradecerem por expulsar os bandidos, eles passaram a acreditar que Siegfried havia tomado o controle do bando. Apenas outro criminoso para atormentá-los. Não que houvesse um bando. Mimosa havia se certificado disso; cortou a garganta dos cinco bandidos embriagados que foram deixados para trás antes que acordassem.

    “Não que os moradores precisem saber disso.”

    Era de se esperar que as garotas que salvaram e libertaram teriam melhorado um pouco a imagem da dupla, mas isso não aconteceu.

    No mesmo dia em que o rapaz matou o ogro, um pequeno grupo de cinco homens tentou invadir a fortaleza no meio da noite, enquanto Siegfried se recuperava dos ferimentos.

    Não soube disso até acordar na manhã seguinte.

    Mimosa era mais esperta do que parecia. Fechou os portões e fingiu ser sua comandante, matando um deles com a sua besta e ordenando que lhes trouxessem oferendas ou queimaria suas casas. Foi como conseguiram comida e medicamentos.

    Com tempo e alguns remédios caseiros, Siegfried voltou a enxergar e suas dores de cabeça tiveram um fim. O corpo ainda estava um pouco dolorido, mas nada podia ser feito a esse respeito, além de repousar e esperar.

    “Como tudo deu errado tão depressa?!”

    Mimosa entrou no quarto dez minutos depois, com um prato de mingau de aveia quente e leite.

    — Até que enfim. — Ela sorriu. — Achei que cê ia dormir o dia todo de novo. Preguiçoso.

    — Como é que tá lá fora?

    — O de sempre. De vez em quando aparece um valentão mandando a gente ir embora ou alguém tentando escalar. Eu disparo uma ou duas setas e eles fogem com o rabo entre as pernas. É bom pra treinar minha mira. Mais alguns dias e aposto que consigo acertar uma formiga a dez metros de distância. Bem no olho. Elas têm olhos, né?

    — Eles tão escalando? Se forem muitos…

    — Relaxa, não são soldados. A maioria não dá a mínima pra gente, e os que dão não sabem como tomar esse lugar. Mas já tranquei todas as portas, só pra garantir. Se quiserem entrar, vão precisar de um aríete.

    — Mesmo assim, é melhor dar o fora daqui.

    — E pra onde cê vai?

    — Norte.

    — Norte? Tá sabendo que tá rolando uma guerra por lá, né?

    — Ouvi dizer.

    — Hmm. Acha que a sua namoradinha foi pra lá?

    — Não sei. Talvez… Não importa. Já perdi tempo demais. Ela não tá aqui e eu não posso continuar procurando.

    — Meio babaca da sua parte. Achei que gostava dela.

    — …

    — Saquei. Hmm. Tá bom. Já decidi. Eu vou com você.

    — Quê?

    — Eu já esperei demais por aqueles idiotas. Tipo, fala sério, eu sei que não sou a garota mais legal do mundo nem nada, mas qualé, eu fui sequestrada! Era de se esperar que fossem vir atrás de mim, né? É o que os amigos fazem. Ou eu tô ficando maluca?

    — Do que você tá falando?

    — Dos idiotas da minha família. A gente passou por aqui há tipo, uma semana? Acho que foi isso. Mas aí esses babacas me pegaram. Disseram que eu tava roubando. Muito original. Não dá pra verem a droga de uma cigana que todo mundo já te acusa de roubo. Bando de idiotas. Humpf. Tanto faz. Enfim, eu fui presa e eles desapareceram. Vi alguns fugirem quando o ogro apareceu, então eu sei que escaparam. E ainda me deixaram aqui. Dá pra acreditar? Bom, que se dane. Azar o deles.

    — …

    — Que foi?

    — Eu encontrei alguns ciganos quando tava vindo pra cá. Faz uns seis dias.

    E foi a primeira vez que viu a Mimosa ficar sem palavras.

    Depois disso, pediu que Siegfried a levasse até os corpos e não quis ouvir protestos. Não foram poucos os moradores que olharam a dupla com suspeita e apreensão, enquanto atravessavam o vilarejo — por sorte, eram covardes demais para tentar algo. Talvez pensassem que eles estavam indo embora?

    A caminhada levou vinte minutos e a garota não disse uma única palavra o caminho todo.

    Exceto por Dalkon, que a essa altura já estava visivelmente inchado e escurecido, não havia cadáveres para identificar. Mas ela ainda assim foi capaz de reconhecer alguns trapos e o velho vagão de quatro rodas do grupo, onde encontrou suas coisas.

    — São eles — disse, quase monotonamente.

    E insistiu em enterrar Dalkon, talvez porque não havia mais ninguém para enterrar. Siegfried lhe ajudou a cavar o buraco com uma pá qualquer que os ciganos tinham e então levaram o vagão de volta para o Salão Frost.

    Naquela noite, a patrulha foi responsabilidade de Siegfried, mas a única coisa que ouviu foram os choros abafados de Mimosa.

    Os dois partiram na manhã seguinte, um pouco antes do sol nascer.

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