Capítulo 0150: Pela estrada a fora
A jornada se tornou muito mais amena graças à adição do vagão. Infelizmente, a mula que havia recebido da baronesa Whitefield não era forte o bastante para conduzi-lo, por isso Siegfried não teve outra escolha senão tomar dois cavalos do vilarejo Frost.
A princípio, tentou pagar por eles, mas quando os moradores se tornaram hostis, desistiu da ideia e usou o aço. Não precisou matar ninguém, apenas alguns cortes foram o bastante para fazê-los recuar.
— Matei os bandidos — disse. — Que isso sirva como pagamento.
A reação deles não foi a que esperava. Tão logo descobriram a morte do bando, todos entraram em pânico. A principal pergunta era:
— Quem vai nos proteger agora?
Aparentemente havia um motivo para tão poucos moradores terem tentado atacar Siegfried após a conquista do Salão Frost. De fato alguns odiavam os bandidos e queriam vingança pelas esposas e filhas que perderam, mas a maioria estava muito bem com as coisas como costumavam ser.
Na verdade, alguns dos homens que atacaram o Salão Frost na esperança de matar Siegfried não fizeram isso por vingança, mas para impedir que o vilarejo caísse nas mãos de um estrangeiro que não conheciam.
Os bandidos cobravam bem menos impostos que o falecido barão Frost e alguns haviam nascido e crescido ali, então costumavam ser menos brutos com os plebeus. Eram parte da comunidade, não muito diferentes de um padeiro ou qualquer outro. Enquanto os nobres se isolavam em seus salões, eles socializavam e faziam amizades.
Assim como o conde Gaelor o ensinou:
“Como lorde dessas terras, tenho de saber em que pé andam meus servos. E eles devem saber a quem servem.”
Os bandidos devem ter pensado o mesmo, já que os moradores pareciam genuinamente sentir falta deles. Mesmo depois de todos os abusos.
— Pelo menos eles protegiam a gente.
— O velho Frost era muito pior.
— Agora mais bandidos vão vir. O que acha que vão fazer com a gente?!
— Eles não eram tão ruins.
— Eu conhecia alguns deles.
— Por que vocês tinham que vir aqui!?
A população local mal chegava a uma centena. A maioria de homens adultos e idosos, com apenas algumas poucas crianças. Ainda havia mulheres jovens e mães, mas a maioria eram garotinhas ou idosas. Uma mulher para cada cinco homens. E a maioria delas não tinha idade para gerar filhos.
Uma comunidade morta.
E mesmo assim defendiam os bandidos. Sentiam falta deles. Como se conhecer os seus demônios fosse de algum conforto. Isso irritou Siegfried.
Havia passado tanto tempo entre mercenários, guerreiros e nobres, que até esqueceu de como a plebe podia ser complacente. Não podia culpá-los por isso; desafio era punido com a morte. Mesmo a menor ofensa poderia custar a sua cabeça.
Mas como alguém podia aceitar calado enquanto suas mulheres eram levadas? Como podiam falar em nome daqueles que abusaram deles? Haveria algo além de medo em seus corações?
Ainda agora aquela cena o incomodava.
“Será que eu teria acabado assim, se não tivessem atacado o meu vilarejo? Se a Lura não tivesse me encontrado?”
O pensamento lhe deu um arrepio, então decidiu esquecer disso. Eles morreriam logo de qualquer modo. Ou não. Seja como for, o destino deles já não estava em suas mãos, nem nas deles, mas de quem quer que os encontrasse.
♦
Já passava do meio do outono e as estradas que seguiam permaneciam desertas. Nem animais ou bandidos. Certa manhã, viu uma ave solitária que devia estar entregando uma mensagem qualquer, mas foi tudo.
Por precaução, não faziam fogueiras e dormiam em turnos. Também optavam por campo aberto; em parte para ver seus arredores, em parte para não correr o risco do vagão quebrar uma roda.
Ao contrário de Dalkon e Ethel, Mimosa gostava de falar… Muito!
Depois que partiram do Salão Frost, a garota não demorou a se animar. Tal como já sabia, era uma cigana e, é claro, estava sempre em movimento. Viajava com a sua família, escolhiam um lugar e ficavam lá por alguns dias, semanas, meses ou anos — dependia apenas do quanto gostavam da região.
— A gente tava na marca de Helder — explicou. — Isso foi, tipo, ano passado, eu acho. Mas tudo enlouqueceu bem depressa. Uma galera acusou a gente de estarmos vazando informações pros selvagens e começaram a nos caçar. Então tivemos que fugir. Muita merda aconteceu depois disso, mas eu soube que a marca caiu não muito depois. Que sorte que saímos bem a tempo.
E sorriu.
Ela sorria bastante, mesmo quando falava sobre coisas ruins que lhe aconteceram — e não eram poucas. De furtos a incêndios catastróficos, tudo de ruim que acontecia em uma comunidade era ‘coisa dos ciganos’.
Não era surpresa que gostasse tanto de histórias e canções. O mundo podia ser perigoso; para ela, mais do que a maioria. E quando todos são ruins com você, não é difícil encontrar apelo em heróis galantes e gentis. Sonhar com alguém que a faria se sentir especial. Que a tratasse bem.
“Será que era isso que a Dara queria?”
Ela também gostava das suas histórias e Emelia até o confundiu com um cavaleiro certa vez. Não sabia exatamente o motivo, mas talvez o vissem como esse ‘herói’ em potencial? Alguém que iria protegê-las?
Agora que pensava nisso, talvez tenha sido o mesmo com Lavina.
Sua família estava morta, seu vilarejo em chamas e suas amigas sendo violadas por estranhos. Mas quando deveria ter sido a sua vez, de repente se viu nas mãos de Siegfried. Uma escrava, mas não de cama. Não até ela mesma pedir por isso.
Sempre pensou que Lavina estava apenas dando tudo de si para sobreviver. Que tentava seduzi-lo por temer que o seu próximo mestre fosse pior… Mas e se não estivesse? E se confundiu as suas ações e realmente chegou a acreditar que ele a amasse? Que todas aquelas noites em que a possuiu fossem mais do que apenas diversão?
Pelo menos não corria esse risco com Mimosa. Apesar da personalidade atrevida, a garota não era tão libertina quanto pensava e só queria ser uma exploradora. Viajar o mundo e encontrar novas histórias.
— Gosto de escrever canções. Minhas favoritas são aquelas com tragédias românticas. E você vai me ajudar!
— Não sei se quero ser o protagonista da sua tragédia romântica.
— Protagonista?! Hahaha. Não, valeu. Cê tá mais pro monstro de alguma história infantil. Eu só preciso de alguém pra me proteger enquanto eu escrevo. Além disso, tem muitos casais por aí pra eu escolher. E assim que você chegar, aposto que o romance deles vai virar uma tragédia, se é que você me entende.
— Vai escrever sobre as pessoas que eu mato?
— É. Tipo isso. Na verdade, já estou escrevendo uma. É sobre uma bela princesa que usa a sua lira mágica pra controlar um lobisomem e fazer ele destruir um bando de ogros que matou a sua família e tomou conta do seu castelo. Vai se chamar: A Bela e o Monstro. Quer ouvir?
— Não.
E começou a tocar:
— Juntos marcharam ao castelo tomado. A princesa na frente, o lobo ao seu lado. Os ogros sentiram um terror repentino. Quando viram a fera e o brilho divino.
E a viagem seguiu dessa forma pelos próximos onze dias, quando foram finalmente atacados.
A propósito, o lobisomem mata os ogros e todos vivem felizes pra sempre.
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