Índice de Capítulo

    Thedrit era uma grande nação, mas não se podia dizer que era populosa. Havia grandes extensões de terra selvagem e facilmente passavam-se dias e mais dias sem que os viajantes encontrassem qualquer sinal de civilização.

    E foi o que aconteceu.

    Depois de deixarem o vilarejo Frost para trás, não encontraram mais ninguém. Por oito dias, apenas vegetação rasteira e campo aberto. O que estava longe de ser uma coisa boa quando a comida que trouxeram acabou no sétimo dia e não havia caça em parte alguma.

    Mas não chegaram a passar fome.

    No nono dia de viagem, Siegfried e Mimosa enfim chegaram a um pequeno bosque. Não era o ideal e as raízes poderiam acabar quebrando uma das rodas do vagão, mas não tinham escolha senão ir em frente pela pequena trilha que encontraram.

    Não demorou para perceberem que foi uma má ideia. Conforme avançavam, o chão se tornava cada vez mais esponjoso e lamacento, embora não chovesse a uma semana. E dois dias após entrarem no bosque, ele se transformou em um verdadeiro pântano.

    Neblina rasteira cobria o solo irregular, como um manto fantasmagórico que escondia armadilhas naturais do terreno. Ao seu redor, nada além de amieiros esqueléticos; os seus galhos retorcidos projetando sombras ameaçadoras que dançavam ao ritmo do vento.

    A trilha havia desaparecido.

    — Não dá pra contornar — notou Siegfried.

    — E agora? — perguntou Mimosa. — Voltamos?

    — Pra onde?! Não temos comida pra voltar pro Salão Frost, nem tem caça na estrada. E eu não quero ficar andando por aí sem comida quando o inverno tá batendo na porta. Uma trilha nos trouxe até aqui, então deve ter alguma civilização por perto, só temos que achar. Essa merda seria tão mais fácil com um mapa.

    Então olhou ao seu redor.

    O chão à frente parecia firme, mas as aparências enganam e podiam acabar afundando em algum buraco oculto de repente, perdendo o vagão em questão de minutos.

    Além disso, já estava anoitecendo. Embora ainda fosse capaz de enxergar muito bem, o mesmo não poderia ser dito dos cavalos.

    — Vamos parar — decidiu. — Amanhã de manhã eu vou testar o terreno. Ver se acho uma parte rasa que dê pra passar.

    E prendeu os cavalos em uma árvore, enquanto Mimosa preparava o jantar. Como já não tinham mais carne seca ou biscoitos de sal, precisaram acender uma fogueira para assar os coelhos que Siegfried havia capturado naquela manhã — era impossível encontrar galhos secos no pântano; por sorte, lembrou de trazer alguns ao deixarem o vilarejo Frost, só por precaução.

    Mas a fogueira lhe parecia um tanto forte demais.

    Era pouco provável se deparar com um incêndio em um pântano, especialmente no outono. Quem quer que visse o brilho, saberia imediatamente que estavam ali. E isso o fazia se sentir exposto.

    — Que foi? — perguntou Mimosa, devorando um pedaço de coelho e lambendo os dedos.

    — Nada.

    — Tá com medo?

    — …

    — Nossa. Calma, foi só uma pergunta. Quando eu era pequena, também morria de medo de dormir em lugares assim.

    — Eu não tô com medo! Não é a primeira vez que durmo em um pântano.

    — Mas não tá acostumado, né? Qualé, dá pra ver na sua cara. Até o seu rosto é mais limpo que o meu. E eu é que sou a garota aqui. Deixa eu adivinhar, um bastardo? Opa! Desculpa. Quero dizer, ‘filho ilegítimo’.

    — Mercenário.

    — Hahaha. Boa.

    — …

    — Pera, cê tá falando sério?

    — Acha que não?

    — Eu sei que não!

    — Você já me viu lutando.

    — Vi você enfiar uma espada no peito de um cara qualquer. Não foi tão impressionante assim.

    — Matei um ogro!

    — Mais um motivo pra não ser um mercenário. Se fosse, saberia que é idiota lutar com aquela coisa e teria fugido. Na real, só pra começo de conversa, não acho que um mercenário tentaria resgatar alguém. Não de graça. Se não quer me contar quem é, tudo bem, mas não me trate como uma idiota.

    Não sabia como responder àquilo. Já havia dito mais do que devia. Então deu a conversa por encerrada e se levantou; em parte para investigar melhor a área, em parte para manter distância de Mimosa, antes que sua língua o traísse novamente.

    Mas havia pouco para ver.

    O brilho pálido da lua cheia refletindo nas águas estagnadas do pântano. Poças de lama negra e espessa pontuando a paisagem. O ar denso da umidade e o cheiro pungente de decomposição. Estava tão absorto em pensamentos que quase não notou…

    “Tá quieto demais.”

    Um silêncio anormal dominava, quebrado apenas pelo ocasional estalo de um galho seco qualquer ou pelo chapinhar de um pequeno animal fugindo na água. Mas não haviam sapos coaxando, nem aves grasnando ou o que fosse.

    Isso não era bom.

    Siegfried puxou pela espada, ergueu o escudo e olhou ao seu redor, bem a tempo de ver quando um enorme animal saiu das sombras e pulou em cima dele — o corpo robusto e musculoso de um predador.

    Quando deu por si, estava no chão. Suas costas meio afundadas na água rasa do pântano, com o escudo de madeira sendo a única coisa entre ele e as enormes patas da criatura, que o acertavam com o peso de um martelo de guerra. Duzentos quilos de fúria lutando para dilacerar sua carne.

    Sentiu o seu coração pulsar acelerado.

    Entre rugidos e pancadas, lembrou: animais são covardes. Caçam porque não têm escolha, mas sempre buscam por presas fáceis. Quanto mais inofensiva, melhor. E Siegfried não tinha a menor intenção de ser ‘inofensivo’.

    Enfiou a espada no estômago do animal e sentiu o sangue quente jorrar em cima dele. Ouviu-se o rugido tortuoso da criatura e então ela recuou.

    Siegfried se apressou em levantar e finalmente a viu. Pensou que fosse um animal, mas estava errado…

    Seu corpo era de um leão adulto, com quase dois metros e meio de comprimento. Mas não era um leão. Espinhos afiados com trinta centímetros se projetavam do meio da sua coluna até a ponta da sua cauda — onde terminavam em um amontoado de espinhos maiores que lembravam a cabeça de uma maça de armas com espigões.

    A pelagem de um vermelho cornalina que poderia ser tanto a sua cor natural, como sangue seco de suas vítimas. Talvez ambos.

    Também viu asas que chegavam a seis metros e meio de envergadura quando a criatura as abria, mas não conseguia voar. Alguma coisa havia lhe rasgado as membranas e aberto vários buracos, de forma que não conseguisse mais levantar voo. E Siegfried agradeceu por isso…

    Até que viu o rosto da criatura.

    Não o rosto de um leão ou qualquer outro animal, mas a face de um velho ranhoso. O que pensava ser uma juba densa e imponente era, na verdade, cabelo e barba desgrenhados. Seu olho esquerdo sangrando de uma ponta de flecha cravada nele.

    — Carne — balbuciava. — Fome. Comer. Carne.

    — Mas que merda é essa!?

    A criatura voltou a avançar sobre Siegfried e seu corpo enorme o atingiu com a fúria de um cavalo de guerra. Apenas com muito esforço o rapaz foi capaz de se manter firme — seus pés deslizando no chão lamacento, enquanto as enormes garras do animal rasgavam o seu escudo.

    Até que de repente a madeira se partiu em duas e pôde sentir quando quatro lâminas afiadas lhe dilaceraram o braço esquerdo. O sangue quente escorrendo pela ferida exposta. Queimando.

    Então ouviu Mimosa.

    A garota estava perto do vagão, longe da batalha. A lira na mão esquerda, enquanto tocava as suas cordas com a direita. Alheia ao caos do combate.

    “Que merda ela tá fazendo!?”, foi o seu primeiro pensamento. Mas a raiva durou pouco.

    Não era apenas música. De repente podia sentir a vibração das notas ao seu redor, como se uma bolha de algodão o envolvesse. Macia. Calorosa. Antes que se desse conta, o seu braço esquerdo já não ardia mais. O sangue escorria e podia ver as enormes fendas que as garras do monstro lhe abriram na carne até o osso, mas não doía.

    “Magia?!”

    Então jogou fora o escudo destruído e segurou a espada com ambas as mãos, enquanto o animal o rodeava, agora mais cauteloso com Siegfried, embora não parecesse dar sinais de que abriria mão de sua presa.

    — Fome. Humano. Carne.

    — Pode vir, aberração.

    A criatura deu um salto para frente e Siegfried se moveu um passo para a direita, saindo do campo de visão da criatura e acertando o seu pescoço. Mas não forte o bastante. O monstro recuou aos saltos, assustado — sua cabeça mole pendendo pesada do resto do corpo, como se lutasse para não desmaiar de sono.

    Devia tê-la decapitado.

    O aço anão trespassou a carne facilmente, mas quando chegou ao osso foi como se atingisse uma parede de pedra. Ainda assim, podia ver o rosto suado do velho empalidecer conforme seu corpo anormal cambaleava e sangrava. Estava morto. Só não tinha percebido ainda.

    Então Siegfried avançou.

    E a criatura balançou sua cauda, fazendo chover espinhos afiados na sua direção. A maioria mal o atingiu de raspão, exceto uma que perfurou-lhe a coxa esquerda enquanto corria. Mas o rapaz não parou. E desta vez o decapitou.

    O primeiro corte trincou os ossos do animal, que parou de se mover, lutando para se manter de pé; o segundo o derrubou no chão, com o seu corpo mole lutando para levantar; e o último separou a sua cabeça do resto do corpo.

    Só então percebeu que Mimosa também havia caído.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota