Índice de Capítulo

    O ferimento não era profundo.

    Quando o monstro lançou seus espinhos a esmo, Siegfried não foi o único atingido. A maioria acertou as árvores ao seu redor ou desapareceu na água rasa do pântano, mas um deles perfurou o estômago de Mimosa.

    O espinho era grande como uma adaga e negro como carvão. Mas ao contrário de uma arma, não havia cabo para pegá-lo de forma segura; quando finalmente conseguiu arrancá-lo, tinha a mão ensanguentada dos cortes.

    — Você vai ficar bem — disse, tentando acalmar a garota. — Não foi profundo.

    — É, só furou um dos meus rins — brincou Mimosa. — Se tivesse sido ‘profundo’ mesmo, tinha acertado os dois.

    — Você vai sobreviver. — Sorriu.

    E a ajudou a enfaixar a ferida com panos limpos e pomadas, enquanto ela lhe dizia o que fazer. Quando terminou, pôs a garota de volta no vagão para descansar e enfaixou o seu braço esquerdo da mesma forma que fez com a barriga dela.

    As garras do monstro haviam aberto uma ferida de sete centímetros no seu antebraço, raspando no osso e deixando a carne exposta. De alguma forma, Mimosa conseguiu extirpar a dor com sua lira, mas o ferimento permanecia e agora voltava a queimar.

    “A magia dela tem limites.”

    Ethel teria parado o sangramento e feito a carne voltar a crescer em questão de horas, talvez com um ou dois dias de repouso. Mas a Mimosa não. Ela não era tão poderosa, embora ainda assim tenha lhe surpreendido. Não esperava que fosse uma feiticeira.

    Em Qaredia, conheceu apenas uma pessoa com esse talento: Lura. Embora ela fosse menos uma ‘feiticeira’ e mais uma campeã de Dragoslav. Não eram muitos os anões com talento para a magia. Ironicamente, isso não os impedia de criar armas abençoadas, pois sua ligação com Dragoslav era maior que as outras raças e seus deuses.

    Nas Terras Verdes, os magos eram mais comuns, mas também temidos. Desbravadores de antigos segredos élficos do agora extinto Império de Dirin. Esses magos eram verdadeiros cães, incapazes de unir forças e lutando constantemente entre si, em uma corrida para erguer seu próprio Império.

    Aprender magia não era fácil. Magos dificilmente aceitavam aprendizes e ainda mais raramente os tratavam como mais do que servos. Ensinavam o que precisavam saber para ajudá-los a sobreviver nas ruínas élficas ou enfrentar outros magos para roubar seus grimórios, mas assim que aprendiam um pouco demais, eram expulsos ou executados, em favor de novos aprendizes — mais fracos e fáceis de controlar.

    Não era à toa que a maioria dos magos acabava por desenvolver uma certa amargura pelo mundo ao seu redor, se tornando reclusos e violentos. Não podiam confiar em ninguém.

    Mas Thedrit parecia ser diferente.

    Drew, Ethel e agora Mimosa. A magia parecia ser poderosa no reino — em especial, a magia divina. Embora Mimosa não parecesse uma sacerdotisa. Talvez Elyon os abençoasse, tal como Dragoslav fazia com os anões. Ou quem sabe fosse alguma questão religiosa. Será que a igreja ensinava aos seus acólitos, tal como os aprendizes de magos?

    Ou talvez eles simplesmente tenham um talento inerente à magia, como os elfos? Por que não?

    Estava perdido em pensamentos quando ouviu o estrondo distante de uma árvore caindo e depois outra. O barulho vinha do norte, mais ou menos na mesma direção da qual veio a criatura que matou.

    “Ela não tava sozinha.”

    Então se apressou em apagar a fogueira, mas os cavalos já começavam a se agitar. Não demoraria muito até que os monstros os encontrassem. Tão pouco havia forma de recuar agora; precisaria de tempo para manobrar o vagão na direção oposta, e mesmo então estariam viajando às cegas.

    Além disso, não se vira as costas a um predador. Isso apenas ativa seus instintos de caça e marca você como uma presa. Por isso foi investigar. Se outra luta estivesse para ocorrer, era melhor que fosse longe do acampamento ou poderiam perder tanto o vagão como os cavalos.

    Embora o barulho fizesse parecer que a batalha estava perto, levou cerca de quinze minutos para encontrá-los…

    Uma arqueira cercada por quatro monstros que o rapaz conhecia muito bem: ogros. Tal como o que havia matado no vilarejo Frost, estes tinham suas próprias armaduras e quase três metros de altura. Verdadeiras máquinas de guerra, cercando a sua presa.

    Não apenas isso, mas outra aberração com corpo de leão, cauda de espinhos e asas de morcego lhe cercava. Ao contrário do velho que matara, a face desta era a de uma mulher jovem, mas nem por isso menos animalesca.

    A garota retesou o arco e duas flechas voaram. A primeira atingiu o elmo de um ogro, apenas cinco centímetros acima da viseira. A segunda perfurou o olho da garota-leão e a fez balançar sua cauda, lançando espinhos a esmo — um dos quais acertou o joelho da arqueira, que pareceu não se importar.

    Um dos ogros acertou ela com seu martelo e fez a garota voar quatro metros, antes de cair em um monte de água lamacenta do pântano. Era o fim. Ou deveria ter sido. De alguma forma, a jovem se levantou como se nada tivesse acontecido e, por não mais de um instante, os olhos de Siegfried encontraram os dela por baixo do seu capuz.

    — Ethel!?

    E apertou o cabo da espada. Quatro ogros. Não seria uma luta fácil. Mesmo assim, se moveu. Já estava meio fora do seu esconderijo, quando ela foi cercada pelos monstros, mas estes não a atacaram.

    De repente, um cavaleiro saiu da névoa.

    Um nobre de vinte e sete anos. Roupas de couro e capa azul. Seu cabelo, curto e prateado. O rosto, suave e imaculado; sem qualquer cicatriz ou imperfeição. Alguém que claramente se importava com a própria aparência. Até o cavalo era um garanhão marrom e imponente.

    Ele se aproximou de Ethel, disse alguma coisa e então se virou. A parte de trás da capa trazendo o símbolo de sua casa: três crânios brancos que formavam um triângulo. Não sabia dizer a quem pertencia.

    O nobre começou a cavalgar para o norte e Ethel o seguiu obedientemente, enquanto os ogros lhe fechavam a retaguarda e a garota-leão levantava voo com suas asas, espreitando por entre a copa das árvores acima.

    Por um momento, pensou em segui-los, mas que bem lhe faria? Quase morreu enfrentando apenas um ogro, quem dirá quatro. Além disso, Ethel não parecia estar em perigo. E se havia um nobre ali, devia haver também um vilarejo ou acampamento militar. Poderia encontrá-los facilmente na manhã seguinte, quando talvez estivessem menos alerta.

    Então voltou para o vagão.

    — Parece que vocês são almas gêmeas — disse Mimosa, depois de ter lhe contado o que viu. Um sorriso largo em seu rosto, enquanto tirava notas aleatórias de sua lira. — Isso vai dar uma canção bem legal. O bastardo sem coração, sua donzela raptada e Elyon com seu fio do destino. Acho que mudei de ideia, talvez você dê um protagonista… Decente.

    Siegfried a ignorou.

    O homem-leão que os atacou provavelmente era um dos cães de caça do nobre. Devia estar atrás da Ethel, quando se perdeu e acabou seguindo o brilho da fogueira deles. Isso explicaria o porquê de estar tão longe dos outros.

    “E se ele se deu ao trabalho de vir pessoalmente, já deve saber dos poderes dela.”

    Por isso não a matou. Além disso, não há razão para se enviar quatro ogros atrás de uma garota qualquer, a menos que ela seja uma feiticeira.

    — Temos que encontrá-la.

    E foi o que fizeram.

    Partiram na manhã seguinte, um pouco antes do sol nascer, quando a noite se tornara mais clara. Tal como já esperava, havia um pequeno vilarejo no interior do pântano — há cerca de meio dia de viagem. Um lugar sombrio.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota