Capítulo 0153: Povoado secreto
Atravessar o pântano foi bem mais fácil do que Siegfried havia julgado em um primeiro momento. Especialmente agora que sabia a direção correta.
Embora quase invisíveis, havia caminhos ocultos por entre a água rasa. Estradas secretas feitas de tábuas de madeira escondidas por baixo de lama e sujeira, mas firmes como uma ponte e largas o bastante para que passassem com o vagão.
Partiram pouco antes do nascer do sol, quando o céu noturno começava a clarear, mas precisaram de meio dia para encontrar o vilarejo.
E a primeira coisa que viram foram os cadáveres.
Duas fileiras de corpos empalados formavam um corredor na entrada do lugarejo. Os mais recentes serviam de banquete aos corvos e não deviam ter mais que dois dias a julgar pelo estado; enquanto os mais antigos já estavam inchados, com a pele esverdeada descolando do corpo e um manto de moscas cobrindo-lhe a nudez pútrida.
Homens e mulheres, sem distinção. O mais velho devia ter cerca de oitenta anos; o mais novo, oito. Todos eles desconhecidos, exceto por um: o líder dos bandidos que Siegfried e Mimosa conheceram no vilarejo Frost.
Dos dez bandidos, Siegfried matou dois; Mimosa, seis. Mas dois fugiram assim que a fortaleza caiu. Um deles era o líder, embora o destino parecesse não ter sorrido para ele. O braço esquerdo havia se desprendido do corpo e caído no chão, para ser devorado pelos cães; seu corpo, descarnado e podre, servia de lar para centenas de larvas que se moviam por baixo da pele macilenta.
— Já gostei desse lugar — disse Mimosa, embora não houvesse calor ou alegria em sua voz. E cuspiu no chão, aos pés do cadáver.
Então seguiram em frente.
A comunidade era humilde e não muito maior que o vilarejo Frost — talvez cento e cinquenta a duzentos moradores. As construções eram todas feitas de madeira sobre palafita, mantendo-as um pouco acima do nível da água; largas passarelas tinham sido construídas para permitir às pessoas se moverem livremente, de tal modo que o chão do vilarejo inteiro era feito de madeira e cerca de um metro acima do pântano.
Na entrada, logo depois dos cadáveres, ficava a rampa de madeira que permitia a condução das carroças vilarejo à dentro.
Um lugar úmido, fétido e pouco agradável, mas ainda assim impressionante. Não fazia ideia de que era possível se construir uma comunidade tão grande no interior de um pântano.
Não havia muito comércio além dos vendedores de peixes, aves e outras coisas que conseguiam capturar naquele ambiente hostil. Marceneiros e carpinteiros eram poucos, mas tinham as maiores lojas — e também as mais movimentadas. Para a sua surpresa, não viu muitas rameiras, tão pouco um bordel que fosse.
Os habitantes também estavam longe de serem calorosos. Se havia crianças, não estavam em parte alguma; e os adultos eram calejados e sem vida.
“Um vilarejo habitado por mortos. Se não de carne, certamente de espírito.”
Conforme avançavam, todos os olhos voltavam a sua atenção para o casal pouco ortodoxo que se aproximava. Um vagabundo e sua cigana. Haveria nesse mundo combinação pior?
— Acho que eles não gostam da gente — brincou Mimosa.
— Então não vamos demorar.
— Sei lá, algo me diz que ela não tá aqui. Parece meio acabado pra casa de um nobre. E eu não tô vendo nenhum gigante.
— Nem eu, mas alguém aqui deve saber de algo. Não é como se tivessem muitas pessoas vivendo num pântano.
— E qual o seu plano? Sair por aí perguntando se alguém viu uma donzela raptada recentemente?
— Costuma funcionar — brincou Siegfried.
Então pararam no melhor lugar para se encontrar pessoas com a língua solta: uma taverna.
O Relicário Perdido era tão pobre quanto seria de se esperar. Um lugar pequeno e mofado. As suas mesas, barris virados de cabeça para baixo. Suas cadeiras, apodrecidas e prontas para se partirem diante do peso dos clientes a qualquer momento. A clientela, velhos bêbados e aleijados. Escória. Mas mesmo a escória os olhava de cima e cuspia no chão quando o casal passava.
— O que querem? — perguntou o taverneiro. Um homem calvo e atarracado, de barba grisalha por fazer. A pele borrachuda cheia de manchas e voz rouca do fumo. Tal como os outros, não parecia contente.
— Qual a bebida mais forte que você tem aí? — perguntou Mimosa, se apoiando sobre o balcão, com um sorriso no rosto.
— Tequila de Cobra-Negra. Vai abrir um buraco no teu estômago.
— Ótimo. Assim cabe mais bebida. Pode trazer.
O homem quase riu, então pegou uma garrafa na prateleira atrás dele… Com uma cobra-negra do pântano de trinta centímetros morta dentro. E pôs na frente dela, quase como um desafio:
— Uma moeda de prata. Pagamento adiantado!
— Mozinho — Mimosa sorriu para Siegfried, que deixou escapar um suspiro e lançou uma moeda de prata ao taverneiro. Um roubo, sem dúvidas. Mas de que adianta argumentar? Simplesmente deixou que ela resolvesse.
A garota encheu dois copos e deslizou um para o taverneiro, o provocando:
— Me acompanha?
— Não vai ter muito o que ‘acompanhar’. Já vi homens com três vezes o teu peso caírem duros depois de uma dose. Você não aguenta um gole.
— Quer apostar?
— Ha! E o quê que cê tem, cigana?
— O que você quer?
O homem a avaliou de cima a baixo e não teve de dizer mais. Abriu a boca em um sorriso de dentes amarelados e pegou um copo. Mas antes que os dois começassem, Siegfried pôs a mão no ombro de Mimosa e se aproximou do ouvido dela:
— Que merda cê tá fazendo? Esse cara tem três vezes o teu tamanho.
— Mas o meu fígado é mais novo — brincou a jovem. Depois tocou de leve a mão de Siegfried e sorriu. — Relaxa. Eu sei que você não vai deixar nada de ruim acontecer comigo.
Então a bebedeira começou.
E Mimosa depressa provou que Siegfried não tinha com o que se preocupar. Estavam na sexta dose quando ela começou a ficar embriagada; e nessa altura, o taverneiro já estava cambaleando de bêbado, se apoiando no balcão e lutando para se manter de pé. Foi quando o interrogatório teve início:
— Você não parece bem — brincou Mimosa. — Quer dar uma pausa?
— Ca… Hic. Calaboca. Hic.
— Quê isso, não fica assim. Dizem que falar ajuda a clarear a mente. Então, me fala um pouco desse vilarejo aqui. Quem é o lorde de vocês?
O homem pareceu pensar por um momento. Ou talvez estivesse apenas segurando o vômito. Seja como for, disse:
— Kroft. Hic. O barão Kroft e aquela… Hic. Aquela bruxa.
— Bruxa?
— A mulher… Hic. A mulher dele… Todo mundo sabe. Ela… Hic. Ela é bruxa. O primeiro… Hic. O primeiro lorde achou ela há… Hic. Achou ela há uns sessenta anos. Hic. E a puta seduziu ele. Depois fez… Hic. Fez o filho matar o pai e casou com ele. Hic.
— Tá dizendo que o lorde Kroft casou com a própria mãe?
— Não. Hic. Esse de agora é… Hic. O neto. Ele também matou o pai pra foder… Hic. Pra foder a bruxa. Aquela vadia. Hic. A família toda é suja. E a… Hic. A culpa é dela. Eu fugia… Hic. Eu fugia bem rápido se fosse você, garotinha. Ela gosta… Hic. Ela gosta de beber sangue de donzela. Faz ficar jovem. Hic.
— Pra onde eles levam as garotas?
— Pronde. Hic. Pronde cê acha?! O castelo. Hic.
— E onde fica?
O taverneiro começou a gargalhar e tossir:
— Cê não viu?! Olha. Hic. Olha pra cima. Hahaha.
Mimosa fez um brinde final e os dois beberam o último copo, mas enquanto o taverneiro caiu duro no chão, ela simplesmente ficou um pouco tonta e pediu para que Siegfried a levasse de volta até o vagão para dormir, embora ainda não passasse do meio-dia.
“Bruxaria, parricídio e incesto. O tipo de história que os velhos contam pra assustar as crianças.”
Embora provavelmente fosse exagero.
Que tipo de doente mataria o próprio pai para se casar com a mãe? Pior ainda, que tipo de doente mataria o pai para se casar com a avó? Ou seria sua mãe? Sua mãe-avó?
Por experiência, Siegfried sabia que a maioria das ‘bruxas’ eram apenas mulheres de quem as pessoas não gostavam por qualquer motivo. Uma explicação melhor seria que o lorde Kroft casou com uma nobre qualquer e de repente se tornou um crápula. Ao invés de culpá-lo, os moradores acharam mais divertido inventar as suas próprias histórias de como a esposa dele era na verdade uma bruxa de cem anos. O incesto apimentava a mentira.
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