Capítulo 0155: Arannis
Siegfried podia ouvir o raspar de garras na porta de madeira atrás dele; os latidos furiosos dos cães que tentavam entrar. A essa altura, o castelo inteiro devia estar acordado.
Mas a elfa não pareceu se importar.
— Vieram se juntar a mim?
Quando o rapaz não respondeu, ela sorriu e se desculpou:
— Foi uma piada. Mas acho que não muito boa, né?! Tá tudo bem. Não precisam ter medo. Não vou machucá-los. Sua amiga pode aparecer, se quiser. Não precisa ser tímida. Eu não mordo. A menos que ela peça com jeitinho.
E se aproximou casualmente. A água da banheira ondulando conforme se movia. Mas Siegfried não conseguia alcançar sua espada; tinha Mimosa no colo e o coração pulsando forte como um tambor de guerra. Os olhos explorando cada centímetro do corpo despido e esbelto da elfa.
“É só uma mulher”, tentou se convencer disso. “E está desarmada. Não é uma ameaça.”
Mas era.
Todo elfo era uma ameaça.
Passavam-se seis séculos desde a queda do seu império, mas estava longe de ser o bastante. Não havia história anterior ao domínio dos elfos, nem para os humanos ou qualquer outra raça. Desde a origem do mundo, eles sempre reinaram acima de todos. Mesmo Qaredia enfrentou seu domínio por milênios antes de finalmente se libertarem — os primeiros a fazê-lo.
Para Siegfried, não passavam de histórias e lendas. Até que se tornou um mercenário.
As Terras Verdes foram, há muito tempo, o coração do Império de Dirin e o seu último reduto antes da queda. Após a qual se tornou um campo de batalha sem fim. Ex-escravos formaram exércitos e cidades-estado para exterminar os elfos e tudo relacionado a eles — abrigar, casar ou mesmo se recusar a matar um elfo passou a ser visto como um crime merecedor da pena capital.
Não havia escravos elfos, embora alguns tenham tentado. Mas elfos são perigosos demais, mesmo acorrentados. Com frequência se libertavam dos mestres e davam início a um massacre. Mesmo a mais nova das crianças poderia ter décadas de treinamento em magia e se tornar uma ameaça à altura de qualquer exército próximo.
Para eles, o único destino aceitável era a morte.
E ainda assim, resistiam.
E como não? Mesmo deixando de lado a magia, seus guerreiros estavam muito além de qualquer outro. O auge de um elfo adulto durava por, pelo menos, um século e meio. Durante esse período, eram mais fortes, mais rápidos e contavam com um vigor sobrenatural. Mesmo o soldado raso da casta mais baixa ainda tinha mais experiência em combate do que qualquer herói ou senhor da guerra.
Um guerreiro elfo valia por mil soldados de qualquer exército. Não importa qual.
Os anões eram os únicos que podiam sonhar em lhes fazer sombra — o auge de um anão adulto poderia chegar a um século. Não à toa foram os primeiros a se libertarem do Império de Dirin, em uma época onde estes ainda eram absolutos.
“Ela é perigosa”, sussurrou Lili.
E Siegfried congelou. Seu coração, queimando com uma chama fria.
A elfa era linda. Jovem. Não parecia ter mais de vinte e seis anos, o que queria dizer bem pouco; podia facilmente ter mais de um século.
De repente, as histórias do taverneiro começaram a fazer mais sentido. Uma bruxa que dominou os homens da casa Kroft com sua beleza há mais de sessenta anos — fazendo filho matar pai pela sua boceta há duas gerações.
— Você é a baronesa Kroft — disse Siegfried.
— Pode me chamar de Eroth. E você é…?
— …
— Sem nome? Tudo bem. Sem problemas. Mas temo que me sentiria um pouco tola o chamando de ‘estranho’ e ‘fofinho’, não concorda? — E deu uma risadinha. — Hum. Já sei. Que tal Arannis? Ele foi um pequeno herói da Era Dourada. Salvou a princesa-imperial, Aureathria, e a carregou para fora do seu castelo em chamas depois que Zyvynth desceu dos céus sobre eles. Era a minha história favorita quando era mais nova. Então, Arannis, o que lhe traz aqui? Algo me diz que não foi para tomar um banho, embora certamente não fosse lhes fazer mal.
— E-eu… Estou atrás de alguém.
— Que coincidência. — Ela sorriu e se aproximou até que estivesse ao alcance de um braço. — Eu também. Embora certamente não esperasse que fosse encontrá-la deste modo. Preferia estar um pouco mais… Apresentável. Se bem que é minha primeira vez conhecendo uma succubus. Talvez a sua amiga goste mais de mim desse modo?!
E antes que tivesse a chance de dizer outra palavra, a porta de madeira atrás dele se partiu com um estrondo; em meio lascas e estilhaços, um cavaleiro de cabelos prateados invadiu o local. O mesmo que raptou Ethel no pântano.
Os cães entraram correndo logo atrás do nobre e cercaram Siegfried com seus latidos. Do lado de fora, o ogro de armadura que arrebentou a porta com um soco — era grande demais para passar pela abertura.
O cavaleiro varreu a sala com um olhar avaliativo por não mais que um momento, antes que seus olhos se fixassem em Siegfried. Então puxou pela espada:
— Quem te mandou!?
— …
— Eu não vou perguntar de novo.
— Querido — disse a baronesa Kroft. — Onde estão seus modos? Esse é meu convidado, Arannis. E sua amiga tímida.
— Seus ‘amigos’ mataram três dos meus cães.
— São apenas cães. Certamente pode perdoá-los por isso.
O barão Kroft hesitou por um momento, enquanto encarava Siegfried como quem encara um monte de bosta grudada na sola do sapato, mas no fim obedeceu sua esposa e abaixou a espada, fazendo a elfa sorrir:
— Brigadinha.
— Suponho que vá me pedir pra tratar da garota, não é?
— Você me conhece tão bem.
E antes que Siegfried se desse conta, já estava seguindo o lorde Kroft pelo pátio até o interior do castelo. O ogro de armadura foi embora com um aceno de mão do seu mestre, mas não antes de olhar para Mimosa como quem encara um pernil. Os cães seguiram rosnando atrás do rapaz até a entrada do castelo, quando não se atreveram em dar mais um único passo e continuaram rosnando de longe até que a porta se fechasse.
O corredor principal era longo e frio, com várias portas de madeira — a maioria era simples, mas algumas foram ricamente entalhadas em madeira maciça e uma em particular, no final do corredor, era feita de ferro. Suas paredes, decoradas com tapeçarias de heróis e monstros; uma das quais exibia um cavaleiro com uma princesa no colo e um castelo em chamas atrás de ambos, enquanto um dragão sobrevoava cuspindo fogo.
“Arannis.”
O barão Kroft entrou sozinho em uma das salas com a porta entalhada e voltou um minuto mais tarde, trazendo um frasco de vidro do tamanho do seu polegar, com um líquido verde menta dentro. Embora o nobre não tenha sentido a necessidade de lhe explicar, o rapaz ainda reconhecia um elixir mágico quando via um.
E sem dizer uma palavra sequer, o lorde forçou Mimosa a beber tudo, antes de continuar até às escadas que davam para o segundo andar.
Lá em cima, não havia tapeçarias e as portas do corredor eram todas de madeira maciça; sendo ao todo, quatro delas. O barão Kroft os conduziu até a última porta da direita e disse:
— Fiquem aqui!
Então saiu e trancou a porta.
“Bem, isso foi melhor do que eu esperava.”
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