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    O quarto de hóspedes era confortável e espaçoso o bastante para abrigar uma família inteira.

    As paredes, decoradas com tapeçarias elegantes; e o chão, coberto por grossos tapetes de pele sobre a pedra fria. Aqui e ali, via também um candelabro preso à parede para iluminar o cômodo, embora estivessem todos apagados. Não que fizesse diferença. Podia enxergar muito bem.

    Siegfried colocou Mimosa na cama de dossel que ficava contra uma parede oposta à entrada. Suas cortinas pesadas, fechadas para reter o calor. Os cobertores, feitos de lã e caras peles de animais, tornados rubros com o sangue da garota.

    Embora o barão Kroft tenha lhe dado um elixir de cura, o efeito não era imediato.

    Mimosa estava pálida e empapada de suor. Seu pescoço, ensanguentado e meio dilacerado pela força das mandíbulas do cão que a mordeu. Se a jovem não tremesse tanto, poderia tê-la julgado morta. Então a cobriu o melhor que pôde e acendeu a lareira do outro lado do quarto.

    Depois de tudo estar feito, teve bem pouco o que fazer.

    Foi até a única janela que havia, pequena e meio escondida por detrás das cortinas grossas que se misturavam com as tapeçarias do local, mas nada havia para ver além de árvores e pântano; nem sequer enxergava o vilarejo. Nada além do pátio do castelo — vazio, exceto por um ou outro ogro passeando por ali de vez em quando.

    Passou-se quase uma hora até que a porta do quarto se abriu, mas ao invés do barão ou sua esposa, quem apareceu foi uma garotinha de cinco anos, com cabelos prateados e olhos cor de âmbar. A filha deles, sem dúvidas. Com um rosto liso e suave, além de orelhas pequenas e levemente pontudas — nem teria notado se já não soubesse que a sua mãe era uma elfa.

    — Milorde — disse a garotinha, segurando nas barras do vestido e fazendo uma reverência. Seu rosto, uma máscara de cortesia. — A senhora minha mãe e o senhor meu pai o convidam para o jantar.

    E o conduziu até o primeiro andar. Comportada e discreta como uma serva.

    — Qual o seu nome?

    — Eva, milorde.

    — Vocês não têm muitos servos por aqui, não é, Eva?

    — Não, senhor.

    — Por que não?

    — …

    — Entendi. Deve ser bem chato ter que fazer tudo por aqui.

    — Todos temos nossos deveres.

    — E quais são os seus?

    — …

    — Você faz tudo, né? Parece responsabilidade demais pra alguém tão nova.

    Por mais que pressionasse, a garota não revelou nada. A sua boca era um túmulo. Embora não fosse difícil de ler nas entrelinhas; as servas provavelmente se tornaram comida de ogro, tal como as garotas do vilarejo Frost.

    “Se um sozinho foi o bastante pra acabar com as mulheres daquele lugarejo, imagina quatro.”

    Essa também deve ter sido a origem dos rumores a respeito da baronesa Kroft ser uma bruxa que se banha no sangue de donzelas. Especialmente se precisavam de mais delas regularmente para saciar a fome das criaturas.

    O salão de jantar ficava localizado em um prédio ao lado do principal, atravessando o pátio frio até uma humilde construção de pedra e madeira. Do tamanho do Salão Frost. Havia uma única mesa de madeira com espaço para dezesseis pessoas e não mais — e embora a cadeira do lorde Kroft fosse ricamente entalhada, não era um trono.

    Tal como era de praxe, não havia janelas e suas paredes eram grossas o bastante para manter o frio longe, com algumas tochas acesas, mas sem qualquer sinal de uma lareira.

    No fundo do salão, uma porta que dava para a cozinha, onde não havia ninguém.

    Além de Siegfried e Eva, as únicas pessoas que estavam presentes no local eram o barão Kroft e sua esposa, Eroth, junto de dois garotinhos não muito diferentes de Eva — de cabelos prateados e olhos cor de âmbar dourado. O mais velho dos dois devia ter oito anos; o mais novo, três.

    Mais afastados, em um canto do salão, os três cães do barão rosnavam para o rapaz. Não que alguém parecesse prestar atenção.

    — Arannis — disse Eroth, sorrindo. — Que bom que pôde se juntar a nós. Por favor, venha.

    E o fez sentar em uma cadeira ao seu lado, com as crianças à esquerda do lorde Kroft — primeiro o garoto mais velho, com o mais novo logo à sua esquerda e então a pequena Eva. À sua direita, a baronesa e Siegfried ao lado dela. O barão não pareceu contente com essa distribuição, mas se manteve em silêncio.

    A comida foi trazida pelas crianças.

    Quando Eva se precipitou em ir até à cozinha, o seu irmão mais velho se voluntariou para ajudar; o mais novo também, mas era pequeno demais e teve de se manter em seu lugar até que os dois voltassem.

    Ouviu-se o som de algumas panelas vazias que caíram no chão e, cinco minutos mais tarde, os irmãos voltaram trazendo bandejas de comida que pareciam um pouco pesadas demais para crianças tão pequenas. Pombo assado, recheado com frutas secas e migalhas de pão tostadas; e cerveja. Um jantar mais do que um pouco modesto para nobres que viviam em um castelo, embora o fato de não terem um cozinheiro pudesse ser o motivo.

    — Sua amiga é bastante tímida, não é?! — disse Eroth, com um leve sorriso no rosto. — Esperava ter a oportunidade de conversar um pouco com a pobrezinha. Temo que posso tê-la assustado. Não foi a minha intenção.

    — Na verdade, eu queria falar sobre isso, se não se importa… Vossa graça.

    — Mas é claro.

    — Ela precisa de um médico.

    — Já lhe dei um elixir! — disse o barão Kroft, se intrometendo na conversa.

    — Não se preocupe com a garota — disse Eroth, tocando de leve a mão de Siegfried. — Vou vê-la pessoalmente mais tarde. Não sou médica, mas conheço um pouco de cura.

    O rapaz afastou a mão dela e prosseguiu:

    — É muita gentileza, mas não será necessário. Pra falar a verdade, eu tenho uma amiga que acho que ficará contente em cuidar dela. Uma sacerdotisa brilhante. O nome dela é Etheldreda!

    Mas nenhum deles parecia reconhecer o nome, então pressionou um pouco mais:

    — Seu marido a raptou.

    E todos voltaram seus olhos para o barão Kroft. Seu rosto, uma máscara inexpressiva. Mas seus olhos brilhavam; tal como os filhos, os seus eram também cor de âmbar, menos intensos que o de Eroth, mas agora ferviam como ouro derretido. Os cães pareceram sentir sua raiva e levantaram rosnando. Mas antes que fizesse algo, a baronesa interveio:

    — Deve ser um engano.

    — Eu vi! Ontem à noite, no pântano. Você levou seus monstros em uma caçada. Quatro ogros e uma mulher-leão.

    O lorde Kroft levou apenas um instante para juntar as peças, antes de sorrir satisfeito:

    — Era sua amiga.

    — E eu a quero de volta!

    — Acho melhor nos acalmarmos — disse Eroth. — Tenho certeza de que houve um mal-entendido. Meu marido foi atrás de uma de nossas servas que se perdeu.

    Quando Siegfried não acreditou na história, Eroth mandou que Eva fosse trazer a serva, mas levou quase vinte minutos até que a garotinha voltasse trazendo uma jovem esguia em um longo vestido bege.

    — Milady — disse a serva, segurando as barras do vestido em uma profunda reverência, sempre fazendo questão de manter a cabeça baixa.

    — Se aproxime, querida. Meu convidado quer vê-la.

    A garota obedeceu.

    Não devia ter mais de quinze anos. Esguia e sem curvas dignas de nota. A única coisa nela que lhe chamava a atenção era o seu longo cabelo ruivo, como se tivesse sido beijado pelo fogo. Vestindo nada além de um vestido bege de corte reto e discreto. O tipo de garota em quem não se presta atenção.

    Então viu o seu rosto…

    “Ela é igual a Ethel.”

    Seus olhos, cor-de-mel; o rosto, coberto de sardas. Não eram apenas parecidas, mas sim idênticas. E ainda assim, não era ela.

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