Capítulo 0161: Quimera
Siegfried ergueu bem o escudo e assistiu enquanto o homem-crocodilo se punha entre ele e Eroth, como um cão de guarda protegendo seu dono. Não que a elfa parecesse sentir-se ameaçada; ao invés disso, era como se estivesse intrigada:
— Você não devia estar acordado. Como fez isso?
— …
— Bem! Não importa.
De repente, a sala inteira começou a serpentear, como se estivesse viva. E antes que Siegfried se desse conta, estava cercado.
Um homem-crocodilo se ergueu do chão, grande e coberto por cicatrizes. Facilmente chegava aos dois metros de altura. Suas escamas, tão negras quanto carvão e duras como uma armadura. Um predador até o osso.
O terceiro homem-crocodilo caiu do teto, feito um lagarto. Ao contrário dos outros dois, este devia ter praticamente a mesma altura de Siegfried; seu corpo esguio e de escamas verdes brilhantes que não pareciam muito duras. Diferente dos colegas, que ficavam de pé como humanos, este preferia andar sobre as quatro patas, rastejando no chão feito um lagarto de verdade.
O quarto homem-crocodilo era ainda maior que o segundo, com quase dois metros e trinta. Mas ao contrário dos outros, era terrivelmente gordo, com um corpo tão largo que mal conseguia atravessar a porta. Também parecia ser o mais velho. O que significa que era o mais perigoso; na natureza, só os mais fortes vivem o bastante para crescerem velhos e gordos.
— Deixa eu adivinhar, seus bebês? — perguntou Siegfried.
— Lindos, não é? — Eroth sorriu. — Os homens são imperfeitos, mas minhas quimeras não. Elas são mais fortes, mais rápidas e, mais importante, leais. Predadores perfeitos. Um deles sozinho já seria mais que o suficiente para transformar uma pequena comunidade em um deserto. Mas claro, se fosse apenas isso, eu poderia usar os ogros e teria um resultado ainda melhor. Não. Estes vêm com uma pequenina vantagem muito especial…
E os monstros se lançaram contra Siegfried.
O primeiro a alcançá-lo foi justamente o negro. A sua mão direita cheia de garras atingiu o escudo de madeira como uma marreta, reverberando em seus ossos e fazendo chover lascas. Mas não foi o bastante para atravessá-lo.
Sem escolha, Siegfried recuou dois passos e deu de costas com uma parede. Ainda estavam perto demais. A sala, muito pequena.
Mas enquanto avaliava sua situação, os monstros voltaram a avançar contra ele. Todos correndo na mesma direção, fechando as suas rotas de fuga e encurralando o rapaz em um canto.
Desta vez, o primeiro a chegar foi o menor e mais esguio, que rastejou até os seus pés e tentou dar o bote em sua perna, mas Siegfried o percebeu a tempo de rachar o crânio da criatura; o aço anão abriu uma fenda no topo da cabeça do monstro e fez o sangue jorrar vermelho, mas a pele espessa e o ângulo ruim salvaram sua vida — embora tivesse o cérebro exposto.
“Pra frente. Eu tenho que ir pra frente.”
Então avistou Eroth, do outro lado da sala, perto da única saída. Quando a elfa viu que olhava na sua direção, sorriu e começou a fechar a porta.
Siegfried sentiu o seu sangue ferver e saltou por cima da mesa, contornando os monstros que se atrapalhavam uns nos outros ao darem de cara com a parede agora vazia onde o rapaz esteve a apenas um segundo.
Cinco passos.
Era só o que precisava para alcançá-la, quando um fio de chamas passou a dois centímetros do seu rosto, chamuscando seu cabelo e fazendo-o perder o equilíbrio.
Na sua frente, o ar tremeluziu conforme uma bela garota se materializava diante de seus olhos. Não devia ter mais de dezoito anos. Seu cabelo negro caindo em cascata por sobre os ombros. Despida da cabeça à cintura; os seios macios balançando, a barriga lisa completamente exposta… E então a cauda.
Ao invés de pernas, a quimera se equilibrava em uma cauda enrolada com quase quatro metros e meio de comprimento — as escamas de um tom laranja-amarronzado e a barriga branca marcada por manchas negras que recuavam, dando lugar às vermelhas, conforme iam se aproximando de suas costas. A ponta serpenteando de um lado para o outro, sempre em movimento.
Da cintura pra cima, uma bela mulher. Da cintura pra baixo, uma cobra… Literalmente.
Ouviu-se um bato quando Eroth trancou a porta, deixando Siegfried sozinho na sala com os seus monstros. E a mulher-cobra sorriu:
— Vai a algum lugar?
Não teve tempo de responder, porque no mesmo instante os homens-crocodilos avançaram sobre ele. O gordo estava mais perto e disparou na sua direção com as mandíbulas abertas para revelar uma fileira de dentes tão grandes e afiados como adagas.
Siegfried saltou para o lado, saindo do caminho da criatura, apenas para dar de cara com outra; desta vez, o cão de guarda de Eroth. Então deu com seu escudo no rosto do monstro e voltou a recuar.
— É inútil! — disse a mulher-cobra, sorrindo. — Uma hora você vai cansar. E quando acontecer…
Outro raio avermelhado, desta vez atingindo uma das prateleiras atrás de Siegfried e incendiando a coleção de livros de Eroth. Em uma questão de segundos, a fumaça se espalhou e começou a se acumular no teto da sala.
De repente, o menor dos homens-crocodilos fez uma investida suicida contra Siegfried, esticando bem os braços e mirando a sua garganta com as mandíbulas abertas. Bastou um golpe de escudo na sua cabeça e o monstro franzino caiu no chão em convulsão com o enorme buraco no topo do seu crânio, que jorrava sangue.
O cão de Eroth tentou se aproximar novamente, mas desta vez Siegfried tinha espaço o bastante para firmar os pés em uma base sólida. A lâmina arrancou a cabeça do homem-crocodilo com um único golpe, atravessando a sua pele espessa e dilacerando a carne antes que tivesse tempo de fazer algo.
Então se virou para o pequeno homem-crocodilo tendo espasmos no chão e enfiou a ponta de aço anão em seu peito, pondo um fim na criatura.
Restavam três.
Mas nenhum deles atacou a princípio.
Os dois últimos homens-crocodilos eram também os mais perigosos. E experientes. Um animal não pode sentir medo, isso era um conceito humano e aquelas coisas eram qualquer coisa, menos humanas. Ainda assim, mesmo os animais ainda tinham certos instintos de sobrevivência que lhes ajudavam a diferenciar entre presa e predador.
Predadores gostam de presas fáceis. E Siegfried não era uma delas.
— O-o que estão esperando!? — gritou a mulher-cobra. — Matem ele!
E com essas palavras, os monstros foram contra seus próprios instintos e atacaram. Mas agora a fumaça já havia se acumulado de tal modo que o ar começava a ficar denso e pesado demais… E ele não era o único sentindo seus efeitos.
De alguma forma, o mais gordo foi justamente o primeiro a chegar, mas já estava lento e pesado a essa altura. Siegfried abriu seu estômago e viu suas entranhas se espalharem pelo chão, antes de ir atrás do último.
O homem-crocodilo negro era o mais forte. Suas garras rasgaram o escudo de Siegfried como se fosse um travesseiro de penas, mas esse foi seu erro. A mão da criatura ficou presa na madeira ao atingir fundo demais. O rapaz moveu seu escudo um pouco para o lado, expondo o braço esticado do monstro, e o cortou fora. Sangue. Um rugido.
Quando o homem-crocodilo virou-se de costas e tentou fugir, Siegfried quebrou sua clavícula com um golpe rápido e o fez cair de joelhos, antes de decapitá-lo.
“Dois.”
O gordo estava caído de bruços no chão, por isso bastou enfiar a espada no topo da sua cabeça para terminar o serviço.
“Um.”
Mas a mulher-cobra havia desaparecido.
Nessa altura, o pequeno incêndio da prateleira já havia começado a se espalhar para os móveis ao seu redor, de tal modo que a parte de trás da sala se transformasse em um inferno de chamas que já começava a devorar os cadáveres.
— Acha que eu sou fácil como esses idiotas!? — disse a mulher-cobra, ainda invisível. — Eu sou a favorita! Tem ideia do que isso significa!?
Siegfried sentiu uma labareda chamuscar o seu pescoço de leve quando um raio de fogo passou pelas suas costas e o rapaz se virou, erguendo o escudo. Procurando. Tossindo.
— Eu não sou como eles! A lady Eroth escolheu a mim! Me ensinou magia. Fez de mim sua única aprendiz. Acha que pode derrotar uma feiticeira?! Sua espada pode cortar magia!?
Outro raio de fogo, mas desta vez Siegfried viu o momento exato em que a chama surgiu e usou o escudo para interceptá-la.
Na parede, o ar tremeu e algo serpenteou, como se a própria sala respirasse.
“Te achei!”

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