Capítulo 0165: Fuga
Nos primeiros dias de cativeiro, Siegfried usou as refeições diárias que recebia como uma forma de contar o tempo que passou preso. Desistiu disso no quarto dia, quando seus apagões começaram.
Mas embora não fizesse mais questão de contar os dias, Blossom sim, por isso sabia que estavam agora no décimo primeiro dia desde a sua prisão. A não mais de três semanas para o fim do outono e início do inverno — e quando ele viesse, estaria preso no Castelo dos Ossos até a primavera. Até lá, a guerra já teria recomeçado e sua missão, falhado.
Deu por si, pensando em Lavina.
“O barão Kessel não a mataria”, disse a si mesmo. Mas era mentira e sabia disso. Mesmo que não quisesse, não teria escolha; tinha de manter sua palavra e o respeito dos nobres.
No instante em que a condessa Essel pusesse as suas tropas em campo, Lavina seria a primeira de muitos a morrer. E Siegfried seria lembrado como não mais do que o mercenário vira-casaca que traiu o lorde Kessel e sacrificou a própria amante para escapar da forca.
Apenas mais uma a morrer por culpa sua.
Imaginou Lavina, pendurada em uma árvore, com uma corda de cânhamo em volta do pescoço; sua pele macia, inchada e macilenta, conforme larvas de moscas eclodiam de dentro dela; os olhos, dois buracos negros e vazios depois de os corvos terem se banqueteado com eles.
Sentiu um aperto no coração.
— Não!
Mais de uma vez tentou arrebentar as correntes e escapar, mas tudo o que conseguiu foi esfolar os pulsos até que estivessem em carne viva e deixar os dedos dormentes. Já estava quase desistindo quando ela apareceu.
“Que visão mais triste”, disse Lili, sorrindo. “Está pensando na sua cadelinha? Ora! A quem estou enganando?! É claro que está. Você sempre pensa com a cabeça errada, não é?! Acho que uma pergunta melhor seria: em qual delas você tá pensando agora? Dara? Lura? Beth? Gwen? Ou aquela gordinha? Qual era o nome dela mesmo? Você sabe, aquela que grunhia feito uma leitoa no cio sempre que você montava nela.”
— O que você quer!?
“Divertido como de costume. Por isso adoro nossas conversas. Mas já devia saber o que eu quero a essa altura. O que eu sempre quis. Te ajudar.”
— Mentira! Eu sei o que você é.
“Sou sua musa. Sua dama de branco. Sua deusa. A única que não te abandonou. O barão Kessel o descartou, tirou a Dara de você e agora pretende tirar também a Lavina. Ethel está morta e até seu deus anão o abandonou. Você não tem ninguém. Exceto eu. Eu estou aqui. Eu sempre estive aqui. E sempre vou estar. Eu te confortei quando você precisou e o fiz provar do fruto mais doce. Ou se atreve a dizer que lhe dei menos do que o prazer que seu coração buscava?”
— Por você, não por mim! Se alimenta de luxúria.
“E você se alimenta do poder que eu ofereço. Ou já esqueceu de todas as vezes em que te salvei? Eu não sou a única a ganhar algo aqui.”
Quando Siegfried se manteve em silêncio, Lili se aproximou dele. As mãos delicadas e macias lhe explorando o peito desnudo. Os lábios carnudos a três centímetros dos seus, enquanto dizia:
“Você sabe o que fazer. A minha oferta ainda está de pé. Ela sempre estará de pé. Basta dizer uma palavra e eu o liberto. Faço de você um rei.”
— Não!
A resposta saiu rápido, mas não facilmente. E Lili não deixou de notar isso. A sua boca falou, antes que o coração tivesse tempo de fraquejar, mas o desejo continuava lá… E um dia a resposta será ‘sim’, mas esse dia não seria hoje.
Recusar Lili foi o bastante para enchê-lo de vigor novamente. Fazê-lo se lembrar de que ainda lhe restava alguma honra. Mas então ela se foi e tudo o que ficou foram paredes frias e silêncio. Então a honra deixou de ter um sabor tão bom e a liberdade pareceu bem mais apetitosa.
O resto do dia seguiu como de costume. Exceto por um detalhe…
Meia hora depois de Eroth ter deixado a sua cela, Siegfried viu Blossom correndo pelo corredor das masmorras com um molho de chaves na sua mão direita e uma tocha na esquerda.
Antes que tivesse tempo de se perguntar o que a jovem fazia, ela abriu a cela em frente a sua e de repente o homem-crocodilo estava livre. Uma vez fora da cela, a criatura rosnou para Blossom, mas bastou ela balançar a tocha em frente ao focinho do monstro para fazê-lo recuar; seu nariz sentiu o cheiro de algo vindo da direção das escadas que levavam para fora das masmorras e a quimera fugiu.
Então a garota seguiu em direção a cela ao lado e repetiu o processo. E a cada cinco segundos, Siegfried podia ver um novo vulto passando em frente a sua cela, conforme as quimeras fugiam para a liberdade. Os grunhidos de antecipação crescendo sempre que uma delas era solta e as demais se preparavam pela sua vez.
Quando a última delas partiu, Blossom finalmente foi até a cela de Siegfried e se apressou em tirar suas correntes.
— Não temos muito tempo — ela disse. — Eles não vão aguentar muito. Temos que correr.
Ao invés de questioná-la, Siegfried preferiu pôr as roupas que a jovem lhe trouxe. As suas calças de lã negra, botas de couro e uma blusa de algodão, mas não sua brigantina, escudo, nem…
— Minha espada.
— O lorde Kroft pegou. Sinto muito.
Além de suas roupas, o único pertence que ainda tinha em sua posse era o lenço branco que Dara tricotou para ele no inverno passado. Encontrou a peça em seu bolso direito, enquanto se vestia. Os rigores da viagem haviam-no tornado áspero e já não cheirava mais como ela, mas ainda assim…
Siegfried guardou o lenço de volta no bolso e os dois seguiram até o corredor. As celas vazias; todas, exceto por uma.
— Mimosa.
Quando se aproximou, pôde ouvir seus soluços. Assim que entraram, no entanto, a primeira coisa que viram foi uma enorme cobra com três metros de comprimento rastejando suavemente no chão. As suas escamas lisas de um negro tão profundo que era quase invisível na escuridão.
Siegfried recuou um passo, procurando por algo que pudesse ser usado como arma, mas não foi preciso.
— Me ajuda aqui — disse Blossom, avançando e se aproximando da criatura. Embora nenhum dos dois precisasse da tocha para enxergar, foi só por causa dela que o rapaz notou…
— Mimosa?!
A jovem cigana estava sentada em um canto da cela, encolhida e completamente despida, assim como ele estivera. O cabelo negro desgrenhado, volumoso e sujo; a pele delicada de ébano cheia de arranhões; os seus olhos vermelhos de tanto chorar. E da cintura para baixo…
As suas pernas haviam desaparecido e, em seu lugar, uma cauda longa e esbelta, com escamas negras. Não havia cobra alguma na cela. Era ela. Eroth havia transformado Mimosa em outra das suas quimeras: uma mulher-cobra.
E assim que ela viu Siegfried, desatou a chorar novamente.

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