Capítulo 0166: Caos e morte
Embora soubessem que fosse possível, Mimosa não conseguia usar a sua cauda para andar, por isso Siegfried precisou ajudá-la.
A princípio, ela simplesmente se apoiou nele, aos poucos se acostumando a deslizar e manter o equilíbrio, mas quando chegaram ao pé da escada, precisou ser carregada no colo. E embora pesasse tanto quanto um homem adulto agora, Siegfried a levou escada acima sem muita dificuldade; logo atrás de Blossom, que liderava o caminho.
— Obrigada — disse Mimosa. E então forçou um sorriso: — Não foi bem essa a tragédia romântica que eu tava pensando em escrever quando disse que queria viajar com você.
— Sinto muito.
— É…
De repente, o sorriso dela morreu e os seus olhos pareceram perder um pouco do brilho. A sua voz, monótona e sem gosto, quando apoiou a cabeça no peito dele e disse:
— A gente não devia ter vindo aqui, né?!
— …
— Acho que já sei sobre o que vai ser a minha próxima canção. Uma bela princesa que é transformada em cobra pela maldição de uma velha bruxa do pântano e depois é resgatada por um jovem cavaleiro.
Siegfried deixou escapar um sorriso:
— Parece boa.
— E acho que já até pensei em uma rima, quer ouvir?
— Claro.
— E ao ver a princesa em sua forma de cobra, o cavaleiro a abraçou, sua esperança transborda. Quebrando a maldição com um beijo de luz. A princesa voltou e seu trono reluz.
— …
— Seria bom se fosse fácil assim.
— Se você quiser, eu te beijo e a gente vê o que acontece.
Mimosa riu. Dessa vez, de verdade e com gosto. Por um momento, pareceu até esquecer de tudo o que Eroth havia lhe feito. Por um momento, as masmorras foram não mais que um pesadelo do qual acabara de acordar.
E não foi a única.
Mesmo sem perceber, Siegfried também sentiu-se um pouco mais leve. Um pouco menos culpado.
Quando finalmente chegaram ao topo, a porta de ferro que dava para o corredor do castelo estava arreganhada — não destruída, apenas aberta; e deviam agradecer a Blossom por isso.
Assim que deixaram as masmorras, no entanto, o trio encontrou uma fina camada de gelo tomando conta do lugar. Podiam ouvir as várias portas de madeira estalando no corredor, conforme rachavam de frio. As belas tapeçarias também estavam arruinadas; úmidas, descoloridas e fedendo a mofo. Mesmo as paredes começavam a rachar. E perto da escada que levava até o segundo andar, uma grossa camada de neve tingia de branco tudo três metros ao seu redor.
— É a lady Eroth — disse Blossom, tremendo, mas não de frio. — Temos que ir!
Mas a saída ficava na direção oposta, passando justamente em frente às escadas. E assim que o trio se aproximou, três homens-crocodilos caíram bem na frente deles.
O primeiro tinha as escamas tornadas azuladas de frio e tremia como se o seu corpo esquelético estivesse tendo uma convulsão. O segundo era mais musculoso, mas tinha uma grossa camada de neve lhe cobrindo o peito e seus olhos já não enxergavam mais. O último estava ainda pior do que os outros; seu crânio rachou quando atingiu o chão, mas ao invés de sangue, tudo o que saiu de sua cabeça foram pequenos pedaços de gelo vermelho.
Estavam fugindo.
Provavelmente para o único lugar que conheciam: as masmorras. Infelizmente, o trio estava bem no seu caminho e, como qualquer animal acuado, as quimeras tomaram o grupo por uma ameaça e os atacaram.
Siegfried foi o primeiro a reagir.
Por sorte, as tapeçarias estavam longe de serem a única decoração do castelo. Tanto armas como cabeças de animais serviam para ostentar a força e coragem de um nobre — embora o barão Kroft não tivesse nenhuma cabeça para exibir, era um homem vaidoso demais para deixar a sua parede vazia.
Uma espada longa bem trabalhada se encontrava sobre dois cabides presos à parede. A sua lâmina tinha cerca de oitenta e sete centímetros e estava tão bem polida que refletia a tênue luz das tochas no corredor como se fosse um espelho; mesmo a sua empunhadura era coberta com veludo azul e enlaçada em fios de prata. Uma arma que nunca conheceu o gosto de sangue… Até hoje.
Mimosa se afastou, usando a parede para manter o equilíbrio, e Siegfried puxou pela espada.
O homem-crocodilo cego estava mais perto, por isso foi atrás dele, mas a nova espada era muito mais leve do que estava acostumado. E embora isso tenha lhe ajudado a movê-la mais facilmente em um primeiro momento, também prejudicou um pouco o seu balanço, uma vez que usar muita força fazia com que abrisse demais seus golpes e acabasse se expondo mais do que devia.
Conseguiu decepar fora o braço da criatura, mas por muito pouco não teve a sua garganta aberta quando a quimera começou a cortar o ar com sua mão restante cheia de garras afiadas.
Como o monstro era alto e cego, bastou Siegfried se abaixar para escapar do alcance dele. E então terminou o serviço atravessando o seu peito com a lâmina. Ao contrário do que esperava, as suas escamas eram frágeis e a carne macia. No fim, o homem-crocodilo morreu sem prestar resistência.
Mas quando estava prestes a matar o outro, este já estava morto. Uma flecha no coração e a outra no olho direito. Blossom não desperdiçou flechas ou tempo. Siegfried demorou seu olhar sobre ela por cinco segundos. Uma parte de si, queria dar a jovem o benefício da dúvida, confiar nela; a outra, via o rosto de Ethel e só conseguia sentir raiva.
“Não é culpa dela”, disse a si mesmo, não que o tenha feito se sentir melhor.
Então viu as escadas.
Seus degraus de pedra estavam escorregadios e cobertos por uma fina camada de gelo, embora o corrimão de madeira na parede ainda permitisse subi-los com algum cuidado. E seria lá em cima que encontraria Eroth.
“Ela matou a Ethel”, sussurrou Lili. “Transformou Mimosa em um monstro.”
Da primeira vez que lutaram, ela o pegou com a guarda baixa. Não sabia do que era capaz. Mas agora seria diferente. Podia matá-la. Podia…
— Siegfried — chamou Mimosa, deslizando em sua direção com a cauda, enquanto se apoiava na parede para manter o equilíbrio. — O que tá fazendo?! Temos que ir.
E hesitou.
Talvez Blossom pudesse cuidar dela, afinal, era a melhor arqueira que conheceu em muito tempo e provavelmente conhecia bem a região. Juntas, as garotas podiam escapar. Sobreviver. Mesmo sem ele.
Bastou um breve olhar nas duas para mudar de ideia. Blossom era uma excelente arqueira, mas tinha a inocência de uma criança; e Mimosa mal se aguentava de pé. Não conseguia deixar de se preocupar com elas. Eram sua responsabilidade.
E embora dissesse a si mesmo que podia vencer Eroth, a verdade é que já havia feito isso. Cortou ela ao meio com um único golpe da última vez e mesmo assim a bruxa não apenas sobreviveu, como o dominou completamente em questão de segundos. Se havia um modo de derrotar magia com aço, Siegfried desconhecia.
Quisesse ou não admitir isso, a única coisa que encontraria lá em cima, seria o caminho de volta para as masmorras.
“Quem é você?”, lembrou das palavras da Irmã Serena. Dos trovões. Da culpa. Do medo.
Então ajudou Mimosa a andar e os três seguiram até o lado de fora do castelo. Por sorte, tudo que encontraram foram cadáveres; os ogros estavam circulando pelos arredores, usando suas maças para esmagar qualquer coisa que entrasse em seu caminho.
Infelizmente, o portão de entrada do castelo havia se transformado em um campo de batalha, com a dupla de ogros que o guardava mantendo posição e não se afastando a mais de seis metros. E aos poucos as quimeras estavam percebendo isso e desistindo dos monstros em favor de presas mais fáceis em outro lugar.
— Isso vai ser divertido — disse Siegfried em tom de sarcasmo, já preparando sua espada para um combate. Mas não foi preciso.
— Por aqui! — disse Blossom, liderando o grupo até a parte de trás do castelo, passando pelo balneário da baronesa Kroft e chegando em um pequeno jardim malcuidado.
Mas não foram os primeiros a chegarem lá.

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