Capítulo 0171: Predador
— Socorro! — O grito veio de fora. Uma mulher. Assustada e sozinha no meio da tempestade. — Alguém! Por favor.
Mas Siegfried reconhecia a voz da mulher-leão.
“Ela seguiu a gente.”
Pensou que talvez a quimera tivesse desistido da caçada depois que deixaram a floresta. Qualquer animal teria feito isso. Seus instintos deviam tê-la alertado quanto ao risco de se entrar em território desconhecido. A tempestade e o vento tornavam impossível de voar; e já não tinha mais a sombra das árvores para escondê-la. Predador nenhum teria se exposto nessas condições.
E mesmo assim, lá estava ela.
Siegfried se apressou em pegar a espada e ir até à janela; infelizmente, esta estava suja demais e não conseguia enxergar nada. Mas sabia que a criatura estava lá fora.
— O que foi isso? — perguntou Mimosa, sentada na cama. O rosto corado, enquanto ajeitava o seu vestido de chemise.
— A mantícora — disse Blossom, levantando da cama e pegando o seu arco-e-flecha. — Parece que perdeu o nosso cheiro e agora tá procurando a gente. É assim que ela caça.
E devia estar certa, porque dois segundos depois puderam ouvir quando a criatura derrubou a porta de uma casa abandonada ao lado e a destruição que se seguiu, enquanto procurava por algo.
Foi então que descobriram que o povoado não estava tão abandonado quanto haviam julgado em um primeiro momento.
A mulher-leão encontrou alguém.
Vários alguéns, a julgar pelos gritos. Um casal de adultos e três crianças. Uma família. Embora não fosse exatamente fácil distinguir os gritos deles e os da quimera. Móveis se partiram, coisas caíram e vozes se calaram. Uma a uma. Até que restava apenas uma mulher pedindo por ajuda; a própria mantícora.
Um truque. E deve ter funcionado, porque menos de dez segundos depois, um sobrevivente voltou a gritar; uma criança — provavelmente depois de ter saído do seu esconderijo. Teria pensado que era a sua mãe pedindo socorro?
Assim que o massacre terminou, puderam ouvir a criatura deixando a casa. As suas patas enormes esmagando cacos de vidro e fazendo a madeira podre ranger, conforme saía calmamente. Menos de cinco minutos depois de entrar.
“Ela não comeu eles”, sabia. Fora rápido demais. Um animal teria se alimentado, mas aquela coisa era um monstro e monstros matam por prazer.
De repente, ouviu-se um estalo seco quando algo acertou de leve a porta lá embaixo, mas esta não abriu e Siegfried sabia disso — havia escorado a entrada com uma mesa. Não que isso tenha sido o bastante para manter a criatura longe, pois logo depois veio o estrondo e então…
— Alguém. Por favor. Estou perdida.
Ninguém se moveu.
Siegfried continuava perto da janela; podia sentir o frio em seu corpo despido, os pés descalços na madeira gelada e úmida; a espada na mão e nada mais. Blossom se encontrava do outro lado, com o vestido de chemise branco chegando na altura das coxas e o arco-e-flecha preparado. Mimosa era a única que ainda não havia se levantado da cama.
Lá embaixo, podiam ouvir o assoalho ranger com o peso da criatura, que explorava os cômodos um a um. Devagar. Calmamente.
— Alguém. Preciso de ajuda.
Quando não encontrou nada, a mantícora subiu as escadas. Os degraus de madeira estalando e rachando a cada passo. Até que parou. Estava no corredor. E, por um momento, não fez nada.
Haviam apenas dois quartos no andar de cima e ambos ficavam à esquerda. O primeiro pertencia à mulher e às crianças; o segundo era onde eles estavam. E se a criatura não estava em frente ao deles, só podia significar uma coisa…
De repente, a porta ao lado caiu e as crianças se puseram a gritar. A quimera voltou a pedir ajuda. Móveis foram arrastados. Correria.
E Blossom foi a primeira a agir.
A jovem já estava no corredor, bem em frente ao quarto das crianças, quando Siegfried a alcançou e Mimosa os seguiu. Mas antes que pudessem chegar até ela…
A mantícora saltou em cima de Blossom, com o seu enorme corpo de leão se projetando no ar e lançando-a contra a parede; imobilizando-na. As garras da quimera se enterraram no seu peito e então desceram, rasgando a carne macia até o umbigo. O vestido de chemise, rubro de sangue.
Mesmo assim, Blossom não gritou.
A criatura abriu sua boca de mulher para revelar uma fileira de dentes afiados e então abocanhou o seu rosto, arrancando um punhado de carne, antes de mastigar, engolir e repetir. Os pés de Blossom escorregando em uma poça do seu próprio sangue, enquanto tentava se libertar. E a mantícora, impassível. Comendo. Um pedaço de cada vez.
Até que viu Siegfried.
De repente, a quimera jogou a garota para o lado, perto das escadas, e rugiu pela primeira vez. Não um grito feminino ou pedido de ajuda. O que saiu de seus lábios molhados de sangue foi um rugido que não deixava dúvidas quanto ao que era. Uma monstruosidade. Nada além disso.
A criatura balançou sua cauda e então o corredor se encheu de espinhos. Todos eles voando como flechas na direção de Siegfried. A maioria acertou apenas as paredes, teto ou chão, mas alguns o atingiram também. Não que tenha sentido algo.
“Mate!”, sussurrou Lili.
Seus olhos queimando. Fogo correndo nas veias.
A criatura voltou a rugir e o aço anão atingiu seu rosto feminino com tamanha violência que o olho esquerdo dela saltou para fora com o impacto. A mandíbula quebrada; a boca pendendo mole no rosto, como se estivesse prestes a cair. Agora já não conseguia mais rugir ou implorar.
A mantícora sacudiu seu rosto uma vez e depois outra, espalhando sangue em todas as direções. Estava desnorteada e podia ver isso.
Levou um instante até que a criatura recuperasse a compostura. E não estava muito bem. Além do rosto desfigurado, Blossom havia acertado duas flechas na mulher-leão — a primeira cravada nas suas costas e a segunda, no pescoço. Para não mencionar que mancava sem a pata esquerda; a mesma que Siegfried decepou da última vez que lutaram.
“Ela já tá morta.”
Mas a mantícora avançou assim mesmo e pulou em cima de Siegfried.
O corredor era pequeno demais para que saísse do caminho e o rapaz não tinha um escudo para se defender, por isso escolheu atacar.
E a criatura o pegou em um abraço.
As suas garras, afiadas como facas. Podia sentir o sangue escorrer e a carne queimar quando ela rasgou o seu peito. Uma vez e então outra, como se tentasse abri-lo. Os dentes dela afundaram no seu ombro esquerdo, mas já não era capaz de mordê-lo com a mandíbula quebrada.
Ao invés de se libertar, Siegfried enfiou a espada no estômago da mulher-leão e sentiu suas mãos ficarem quentes e pegajosas com o sangue dela. A dor fez a criatura enterrar suas presas e garras ainda mais fundo, então Siegfried puxou a lâmina para cima com um movimento firme que rasgou e dilacerou os órgãos internos do monstro.
O som de ossos se partindo ecoou, enquanto sua lâmina avançava lentamente, subindo pelo tronco da criatura. Podia sentir seus braços queimarem; os músculos tensionados lutando contra a carne dura da mantícora. Até que, por fim, rompeu o ombro da mulher-leão, partindo seu corpo em dois.
O rapaz se afastou e a quimera caiu no chão, respirando pesadamente. Lutando para se levantar. Se apegando a vida. Mas não com força o bastante, pois morreu dez segundos depois.
Só então Siegfried lembrou dos outros.
Podia ouvir o choro das crianças, então algumas delas tinham de estar vivas, mas quando passou em frente ao quarto, viu que algumas também estavam mortas. E não eram as únicas.
Blossom estava deitada perto da escada, com o corpo quase deslizando degraus abaixo. Tinha o rosto desfigurado de tal modo que não teria sido capaz de reconhecê-la se já não soubesse quem era; sua carne rasgada e com vários bocados em falta. O torso coberto de arranhões que iam dos ombros ao umbigo; o seu estômago aberto e as entranhas espalhadas pelo chão. Morta.
— Merda!
Se levantou e virou de costas para… Para… Não lembrava mais o que ia fazer. Quando viu a Mimosa deitada em uma poça do próprio sangue no final do corredor, sua mente deu um branco.

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