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    O espinho havia acertado a jugular de Mimosa; o sangue fluindo vigorosamente. Quando Siegfried a alcançou, a garota já tinha o rosto pálido como leite e parecia confusa.

    — Sieg — disse, com uma voz cansada.

    Então se apressou em rasgar a barra do vestido de chemise dela e usar o tecido para estancar o sangramento, fazendo pressão sobre a ferida. A cabeça de Mimosa no seu colo.

    Mas não sabia o que mais podia fazer.

    Cauterizar? Costurar? A verdade é que não tinha a menor ideia de como. E, mesmo que soubesse, no momento em que a soltasse, ela sangraria até a morte em questão de minutos — muito antes de encontrar os instrumentos necessários.

    Por isso permaneceu onde estava, segurando-a. Esperando que morresse.

    O tecido, rubro de sangue, enquanto mantinha os dedos sobre o corte. A hemorragia havia parado, mas isso não a impediu de perder a consciência dois minutos depois.

    “É aqui que eles morrem”, lembrou.

    Não era a sua primeira vez tentando estancar o sangramento de um companheiro. Havia feito isso bem mais de uma vez nas Terras Verdes, sempre com o mesmo resultado. Até que a capitã Cilícia mandou que parasse:

    “Só vou falar uma vez, então presta atenção: eles tão mortos! Olha ao redor. Não temos sacerdotes, médicos, nem nenhuma dessas merdas, caso ainda não tenha notado. Então me faz um favor? Da próxima vez que vir alguém sangrando até a morte, deixa! A única coisa que cê tá fazendo é prolongando ainda mais o sofrimento desses infelizes. Se quer mesmo ajudar, enfia uma faca no peito deles e termina o serviço.”

    E foi o que passou a fazer. Mas não dessa vez.

    Tinha visto mais que alguns ferimentos fatais em sua vida, por isso sabia que o de Mimosa era diferente. Não sangrava tanto quanto os outros e só podia pensar em um motivo: o espinho não havia cortado a sua jugular completamente.

    Por isso permaneceu onde estava. Não ousava se mover, enquanto ela ainda respirasse.

    Meia hora mais tarde, uma das crianças reuniu coragem o bastante para sair do quarto e ver em que pé estavam as coisas. Uma garotinha de dez anos; o cabelo castanho acobreado desgrenhado e o vestido de cotte bege, manchado de sangue.

    “Uma das trigêmeas”, lembrou.

    E embora estivesse assustada, se aproximou. Foi graças a ela que conseguiu água e panos limpos para lavar o ferimento. Mas a sua ajuda não veio incondicionalmente…

    — Pode ver a minha irmã?

    E viu.

    Depois de ensiná-la como fazer pressão sobre o ferimento e explicar que devia manter a cabeça de Mimosa elevada o tempo inteiro, Siegfried pôs uma calça e foi ver as crianças.

    Mas a irmã dela já estava morta.

    O peito esmagado de tal forma que só conseguia pensar em uma explicação: a mantícora pisou em cima dela. A criatura devia pesar, no mínimo, 150 quilos. Não foi uma visão bonita. Todos os ossos do seu peito se partiram feito galhos secos e afundaram para dentro; seus órgãos, explodiram e murcharam.

    A mulher que tomava conta das crianças também estava morta, tal como o garotinho de sete anos. As garras da quimera haviam aberto o estômago dela, permitindo que suas entranhas vazassem e se espalhassem pelo chão; enquanto o garotinho teve o peito atravessado por cinco espinhos que afundaram dentro dele.

    Os únicos sobreviventes eram o garotinho de oito anos e outra das trigêmeas. Ambos incólumes.

    Não havia nada que pudesse fazer.

    Então preparou a cama do seu quarto para Mimosa, enfaixou a ferida com ataduras novas e cobriu ela com o máximo de cobertores grossos que encontrou. Também deixou panos limpos e um balde d’água preparado ao seu lado.

    Quando terminou, cuidou dos cadáveres.

    Só então percebeu que a tempestade havia se transformado em uma nevasca. A neve forçando a sua entrada pela porta quebrada da taverna. O mundo lá fora, tingido de branco. A brisa gelada rasgando a sua pele.

    Sem escolha, voltou a bloquear a entrada com a porta e escorá-la com alguns móveis. Não foi o bastante. A neve parou de entrar, mas o frio não.

    Então levou os cadáveres para o porão.

    Carregou um por um e alinhou todos lado a lado; Blossom, a mulher, o garotinho de sete anos e a terceira trigêmea. Infelizmente era impossível sair da taverna e, portanto, não poderia enterrá-los lá fora; tampouco podia cobri-los com lençóis — agora que enfrentavam uma nevasca, precisavam de todo o calor que pudessem reunir.

    “Os vivos antes dos mortos.”

    E assim os dias seguiram.

    As crianças mostraram o esconderijo que usavam para guardar a comida e, antes que percebesse, tratavam-no como o seu guardião. O medo inicial desapareceu rapidamente e agora dificilmente se afastavam dele por muito tempo. E gostavam de falar. Muito!

    Aparentemente a mulher que morreu servia como cuidadora no povoado — que contava com cerca de quarenta ou cinquenta moradores, segundo as crianças. A taverna era um tipo de orfanato para os filhos das mulheres que Eroth matou. Todos eles resgatados pelo ‘Homem de Olhos Amarelos’.

    — Quem é ele?

    — É um anjo — disse uma das gêmeas.

    — Um cavaleiro — corrigiu o garotinho.

    Mas em uma coisa todos concordavam:

    — Ele protege a gente.

    E era enorme, como fizeram questão de ressaltar. Embora fossem tão pequenos que era difícil dizer se não estavam apenas exagerando… Isso ou o Caçador devia ter o tamanho de um urso-pardo.

    Por três dias, nada aconteceu.

    Para sua surpresa, Mimosa não morreu. Ao invés disso, estava se recuperando. O corte começava a cicatrizar e, embora ainda não tivesse aberto os olhos, podia engolir a sopa se Siegfried pusesse em sua boca.

    E não pôde deixar de pensar que era apenas graças a Eroth. Seja lá o que tenha feito com ela em seus experimentos, uma garota normal nunca teria sobrevivido àquele ferimento. Não naquelas condições.

    “Um monstro, ein.”

    Estava trocando as ataduras dela, quando ouviu o grito vindo do primeiro andar. Uma das gêmeas. Então pegou a sua espada e desceu as escadas. Seria outra mantícora? Alguma nova criatura que Eroth enviou?

    Quando chegou ao pé da escada, trombou com a garota, que se agarrou a sua perna e se escondeu atrás dele.

    — O que houve?

    Ela não respondeu, nem precisou. Podia ver que a porta do porão estava arreganhada.

    “Ela desceu lá e se assustou com os corpos”, concluiu, mas estava errado. Embora não completamente.

    De repente, ouviu-se passos vindo do porão. As tábuas de madeira rangendo. Algo subia. E com certeza não era uma das crianças. Quando disse para a garota voltar ao seu quarto, esta não se moveu. E então já era tarde demais.

    Blossom saiu do porão.

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