Capítulo 0173: Ultimato
O rosto de Blossom estava deformado.
Antes suave e delicado, agora se encontrava em ruínas. Inchado e coberto por uma crosta escura. Onde as feridas eram menores, a pele rosada já voltava a crescer, mais clara do que antes. No entanto, a mordida que a mantícora deixou em sua bochecha esquerda era mais profunda; ali a carne se retraía e afundava — os músculos expostos sob a carne dilacerada.
Pele nova e antiga se unindo em linhas desiguais que formavam um mosaico grotesco. Seus lábios, rachados e cheios de cortes. O olho esquerdo, tão inchado que mal conseguia abri-lo. Horrível, mas pelo menos agora podia reconhecê-la.
O vestido de chemise em trapos, rasgado de tal modo que as tiras não escondiam nada do corpo da jovem hermafrodita. O tecido branco, agora de um tom amarronzado do sangue seco.
— Blossom?
— Sim?
— Você tá viva.
— Isso foi uma pergunta?
— Você morreu.
— Morri? — Ela não pareceu impressionada. Sua expressão vazia continuava a mesma de sempre. — Hum. Não foi bem assim que eu imaginei que seria. O pós-vida é um pouco sujo.
Foi uma piada? Com ela, nunca sabia dizer ao certo.
♦
Não havia muita água estocada — um único barril escondido na cozinha e metade dele estava vazio —, por isso Siegfried deu a Blossom apenas uma toalha úmida para se lavar. Arranjar outro vestido limpo coube às gêmeas, que pareciam estar mais animadas e prestativas do que nunca.
E logo descobriu o porquê.
Como não entendiam o motivo de Blossom ter se erguido dos mortos, acreditavam fielmente que se tratava de um milagre. E que a irmã delas também voltaria se rezassem forte o bastante.
— Elyon trouxe a sua amiga de volta — insistiam. — Talvez traga a nossa irmã também.
Depois disso, passaram o resto do dia no porão, limpando, penteando e conversando com a irmã morta. Até insistiram que Siegfried forrasse algo no chão para deixá-la mais ‘confortável’.
Obviamente ela não acordou. Nem acordaria. O frio não deixava que apodrecesse rápido demais, mas estava pálida como… Bem, um cadáver! Os seus olhos, completamente brancos. E o corpo, duro como uma pedra.
“Acho que ninguém vai gostar do que vai acontecer se ela se levantar.”
Mimosa acordou na manhã seguinte.
E isso foi ainda pior para as gêmeas.
— Não! — gritaram, com lágrimas nos olhos. — Por quê? Por que só elas? Eu rezei. Posso rezar mais. Rezo pra sempre, eu juro. Nunca mais vou reclamar da missa. A Cally é boa. Por que Elyon não traz ela de volta?
Siegfried não tinha uma resposta para isso, mas Blossom confortou ambas naquela noite, até que finalmente aceitassem a morte da irmã. Enterraram os cadáveres na manhã seguinte.
Depois de quatro dias de neve intensa, no quinto dia as nuvens de tempestade finalmente deram a eles um descanso e puderam ver o sol. E embora o solo ainda estivesse um pouco duro, Siegfried levantou cedo para cavar as covas.
Se mesmo no outono enfrentaram uma nevasca tão intensa, o inverno teria de ser ainda pior. E não queria ficar preso ali. Tinham de partir logo, mas não podiam ir sem dar um enterro digno à mulher que os abrigou. E as gêmeas mereciam um lugar de descanso final para a sua irmã, onde pudessem prestar as suas homenagens.
Mas depressa chamou a atenção.
Enquanto o rapaz cavava no barro lamacento e meio congelado, moradores vinham vê-lo cheios de apreensão. Nenhum deles tinha coragem de lhe dirigir a palavra, tampouco se aproximar. Só o que fizeram foi assistir. Pelo menos, a princípio.
Já estava terminando o segundo buraco, quando duas crianças apareceram.
Um garoto de treze anos tomou a liderança. Sua arma? Um bastão de madeira com cerca de dois metros de comprimento, que ele carregava como se fosse uma lança. As suas roupas surradas e o rosto sujo. Exceto pela prepotência, não parecia diferente de qualquer plebeu.
“Será que é por causa da minha aparência?”
Siegfried vestia a única muda de roupas que tinha: as calças de lã negra cheirando a mofo e cobertas de lama; botas de couro desgastadas; e o peito nu, pois teria destruído a blusa de algodão se a tivesse usado para cavar as covas. O corpo suado e enlameado.
Dificilmente uma imagem ameaçadora, mas ainda assim…
— Você! — disse o garoto, como se falasse com um cão de rua que pegou fuçando no seu lixo. — O que pensa que está fazendo!?
— Um buraco.
— Essa casa não é sua! Onde está a mulher que vive aí? E as crianças? O que fez com elas?
— Nada. Estão lá dentro.
O garoto hesitou por um momento, então olhou para as janelas e gritou:
— ENYE! ENYE! VOCÊ TAÍ?
Quando ninguém respondeu, ele se irritou:
— Tá tentando me fazer de idiota!?
— …
— Vou perguntar pela última vez: o que fez com as pessoas dessa casa?
— Nada.
— Então cadê a Enye?
— Não sei quem é essa. Não chegamos a nos apresentar.
— Nós ouvimos os gritos — disse uma garota de onze anos, saindo de trás do seu amigo. Tinha o vestido de cotte bege puído e um pouco sujo nas pontas. O cabelo negro solto caindo até às costas e… Olhos cor de âmbar.
Não era Eroth, mas a visão fez seu sangue ferver e o coração pulsar acelerado. Medo? Raiva? Seja o que for, devia ter trazido a sua espada, mas não pensou que alguém fosse incomodá-lo por cavar. E eram apenas crianças, uma pá seria mais que o bastante para matá-las… Se chegasse a tanto.
A garota prosseguiu:
— Só estamos preocupados. Todos nós ouvimos os gritos, vários dias atrás. E ontem disseram ter ouvido as gêmeas chorarem. Nós só queremos saber se estão bem.
— Elas estão. A maioria, pelo menos.
— O que isso quer dizer!? — gritou o garoto, com o bastão apontado para Siegfried. — Vimos o que fez com o senhor Luth e a família dele! Você os esquartejou como se fossem animais e os deixou apodrecer!
— Não fiz nenhuma dessas coisas. Nem sei quem são essas pessoas.
A multidão se agitou. Cerca de trinta pessoas, ao que podia ver. Homens e mulheres, entre dezoito e trinta anos. Todos eles plebeus. Suas roupas, descoloridas e gastas.
— Mentiroso! — gritaram. — Assassino! Ladrão! Monstro! Não queremos você aqui!
E antes que se desse conta, as pedras estavam voando. A princípio poucas e então muitas. Mas apenas uma o acertou; enquanto a maioria caía aos seus pés ou muito longe, uma delas atingiu a sua testa — grande o bastante para lhe abrir um pequeno corte e nada mais.
Siegfried sentiu os seus olhos queimarem quando Lili tentou tomar o controle. Mas antes que fizesse algo, um homem apareceu.
Tal como os outros, usava roupas simples, mas as suas eram limpas, coloridas e bem cuidadas. Os longos cabelos prateados chegando aos ombros, embora claramente ainda fosse jovem e forte; 45 anos, com a postura ereta de um soldado. O seu rosto suave, com uma barba curta bem aparada.
Mas Siegfried prestou atenção aos seus olhos. E tal como os da garota, os seus também eram de um âmbar dourado.
“O Homem de Olhos Amarelos.”
— Tom, Kira — disse. — Já chega! Eu cuido disso.
As crianças obedeceram, a multidão se calou e o homem tomou a frente:
— Gostaria de se explicar?
— …
— Não? Pois bem! Então deixe que eu mesmo faço isso. Encontramos Luth e sua família. Todos mortos. Não tente negar. Temos pessoas que viram você e seus amigos chegarem cinco noites atrás, logo antes deles serem assassinados. Ouvimos os gritos. Sabemos que foi você. O que não sabemos é o que fez com Enye e as crianças. Elas estão mortas?
— Não fiz nada com elas. Se não acredita em mim, pode ir lá ver com seus próprios olhos.
— Pois bem!
Ao contrário do garoto, o homem não se deixou intimidar e entrou na casa, enquanto Siegfried o esperava do lado de fora. Quinze minutos depois, saiu com as gêmeas e o garotinho; entregou os três para uma mulher qualquer na multidão e então se virou novamente para Siegfried:
— Eu vi os corpos no porão.
— …
— Você tem até o anoitecer para partir.
— Suponho que não me daria uma carroça.
— Supõe corretamente.
— Então preciso de mais tempo. Minha amiga está ferida e não pode andar. Ainda mais agora que o inverno está chegando.
— Você tem até o anoitecer!
E foi embora.

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