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    Siegfried terminou as covas perto do entardecer, enquanto os moradores o observavam de longe; alguns o vigiavam da rua, outros da porta de casa. Todos esperando. Aguardando.

    Depois de enterrar os cadáveres, voltou para a taverna e fechou a porta — havia consertado esta há quatro dias, depois que as crianças lhe mostraram onde guardavam as ferramentas. Mas mesmo lá dentro continuava sendo vigiado e sabia disso. Não tinham coragem de se aproximar, mas observavam as saídas como abutres à espera da matança.

    “Que irritante.”

    Estava em um dos cômodos vazios do primeiro andar, lavando o corpo com uma toalha úmida, quando Blossom apareceu.

    Embora estivesse melhor, ela havia enfaixado o rosto com ataduras limpas para esconder a deformidade e não assustar as crianças; algo que se tornava menos necessário a cada dia que se passava, à medida que as feridas cicatrizavam a uma velocidade absurda. Não demorou para entender o motivo.

    “Graças ao sacrifício da sua amiga, eu descobri o que me faltava: centelha divina”, Eroth tinha lhe dito.

    Ethel podia curar com o toque e, aparentemente, parte desse dom havia passado para Blossom. Além de lhe dar vida, a centelha divina também a protegia da morte. Preservava o seu corpo. No fim das contas, Eroth fez muito mais do que criar vida, criou uma garota imortal.

    — Parece que eles não gostam muito da gente — disse Blossom. — O que aconteceu?

    — Sabe as pessoas que a mantícora matou?

    — Sei.

    — Pois é. Acham que fui eu.

    — Hum. Você disse pra eles que não foi?

    — Eles não tavam muito a fim de conversar.

    — Se tivesse explicado…

    — Teriam dito que eu tô mentindo e que aquela coisa era meu bichinho de estimação ou sei lá. Razoável e compreensível não são exatamente as características mais comuns de uma multidão enfurecida. Vai por mim, não é a primeira vez que vejo uma. Eles só não me mataram ali mesmo porque ficaram com medo.

    — Talvez eu devesse ir lá. Posso falar com eles. Explicar o que aconteceu.

    — Isso não é uma boa ideia.

    — Por que não?

    — O líder deles. Tenho certeza absoluta de que é um soldado, talvez até um cavaleiro. E acho que sei de que família. Não é como se cabelos prateados e olhos dourados fossem muito comuns. Ele é um Kroft.

    — Não existem outros Kroft. Todos eles estão no Castelo dos Ossos.

    — Nem todos, ao que parece. Acabo de conhecer dois.

    — Isso é impossível.

    — Tem certeza? Não estamos muito longe do castelo. E não é como se bastardos fossem incomuns. Mas admito que é a primeira vez que conheço um tão velho. Deve ser filho do pai… Não, do avô do barão Elliot.

    — Isso não pode ser. O lorde Esmond não tinha sangue élfico. Ele foi o primeiro marido da lady Eroth. Não era um de seus filhos. Os olhos e o cabelo vieram da linhagem dela.

    — Tá legal, então é o bastardo dela. Afinal, ela já tem o quê? Uns cem, duzentos anos? Não ficaria surpreso se tivesse deixado uma ou duas dúzias de bastardos espalhados por aí. Seja como for, ele não vai te escutar.

    Então terminou de se arrumar e foi até o quarto de Mimosa. A garota estava deitada, como era de se esperar. Tinha acordado ontem e o corte em seu pescoço estava quase completamente cicatrizado, embora continuasse fraca.

    “Parece que a Blossom não é a única com uma capacidade de regeneração absurda.”

    Era quase engraçado pensar que Eroth havia salvo ambas, mesmo que não tivesse sido esta a sua intenção.

    Ela sorriu e Siegfried se aproximou, removendo as bandagens antigas, lavando o seu pescoço com um pano úmido e então pondo ataduras novas. Embora ainda não conseguisse falar, a jovem tocou de leve a sua mão e voltou a sorrir, como se estivesse agradecendo.

    Mas não tinha pelo que agradecer. Era sua culpa. Se não a tivesse arrastado até o Castelo dos Ossos…

    — Eu sinto muito.

    Mimosa abriu a boca, como se quisesse dizer algo, mas a voz não saiu e o seu rosto se contorceu de dor por um instante. Então sentou na cama e puxou ele para perto, fazendo-o deitar com a cabeça no seu colo, enquanto lhe acariciava o cabelo como se fosse um gato. Quente. Confortável. Agradável.

    Siegfried acordou com Mimosa o sacudindo assustada. E não demorou para entender o motivo: fogo.

    O cheiro de fumaça vinha do lado de fora do quarto, embora ainda não pudesse ver a fumaça em si. Mas notou outra coisa. Ao olhar para a janela, percebeu que havia anoitecido.

    “Ele cumpriu a promessa.”

    Siegfried pegou sua espada e ajudou Mimosa a se levantar, antes de correrem até as escadas. E então viram que o incêndio começava justamente no salão de entrada; alguém havia quebrado as janelas e jogado tochas para dentro.

    Não demorou para o fogo se espalhar pelo assoalho e móveis de madeira. Um manto de chamas devorando as paredes e uma cortina de fumaça negra obscurecendo a visão. Mas não tinham escolha. Desceram assim mesmo.

    E, quando chegaram ao pé da escada, encontraram Blossom com o seu arco-e-flecha na mão, parada no meio da fumaça. O corpo coberto de fuligem e, atrás dela, um cão negro com duas flechas cravadas nele. A princípio, pensou que a sua cor fosse devido à fuligem também, mas não. Ainda estava vivo quando se aproximaram e os olhos da criatura queimavam como brasas, embora o seu calor estivesse desaparecendo. Só então percebeu que o corpo fumegava. Não era um cão comum. Era feito de rocha e fogo.

    “Que merda é essa?”

    Poderia ter perguntado, mas as chamas agora se espalhavam também pelo teto e podiam ouvir os estalos. Aquele lugar não era mais seguro, podia desmoronar a qualquer instante, por isso correram em direção à porta e deram de cara com a noite fria os esperando lá fora.

    O ar gelado encheu seus pulmões e fez com que Siegfried e Mimosa tossissem a fumaça que inalaram. Blossom, por outro lado, estava bem, apesar de ter sido aquela que passou mais tempo entre as chamas.

    Na frente deles, a multidão.

    Vinte homens, todos eles armados com forcados, foices, martelos e outras ferramentas, enquanto o resto do povoado os observava de uma distância segura; garotas torcendo e mães colocando seus filhos para assistir, quase como se fosse alguma forma de espetáculo. Uma arena de gladiadores.

    “Vieram ver seus maridos e namorados matarem a gente.”

    Mas teriam uma bela decepção.

    Os homens formaram um semicírculo ao redor do trio, de modo que não pudessem ir em nenhuma direção sem dar de cara com um deles — a não ser que voltassem para a construção em chamas, o que certamente não pretendiam fazer.

    Devem ter se sentido bastante orgulhosos dessa formação, porque a maioria deles sorria. De fato, uma excelente estratégia… Se tivessem deixado meia dúzia de arqueiros em prontidão para atirar neles assim que passassem pela porta. Ou quem sabe alguns lanceiros na falta de flechas — uma carga rápida os teria empalado em questão de segundos.

    Mas era demais esperar por táticas minimamente sofisticadas de plebeus que nunca viram a guerra. Tinham a vantagem numérica e achavam que isso era o bastante…

    Até que Blossom derrubou quatro deles em dois segundos. Uma flecha, uma morte.

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