Índice de Capítulo

    Era noite e o vento frio uivava, mas Siegfried sentia o corpo quente. A brisa gelada levando embora a dor e o cansaço. A essa altura, já podia reconhecer o toque de Mimosa.

    Ao contrário das chamas de Lili, que explodiam e borbulhavam em seu peito, a magia de Mimosa era aconchegante como um cobertor quentinho. Não tão poderosa, mas ainda assim…

    Sentia-se revigorado.

    O Homem de Olhos Amarelos, por outro lado, já se via à beira do colapso. O rosto empapado de suor, a respiração ofegante e seu olho esquerdo fechado pelo corte em sua bochecha que quase o deixara cego. Tinha duas flechas espetadas nas costas e não estava bem. Não estava nada bem. Ainda assim, não se permitia ao desleixo. Mesmo sem uma espada ou armadura, portava-se como um cavaleiro. Um cavaleiro morto.

    — Vocês não precisam fazer isso — disse Kira, a garotinha de onze anos e olhos dourados. — Nós só queremos que vão embora. Não precisamos lutar.

    Siegfried deu uma boa olhada nela.

    “É a filha dele”, notou. Não que fosse preciso ser um gênio para notar isso. Os olhos não mentiam. E os dela eram bons. Reconhecia quando estava lutando uma batalha perdida.

    — Vocês tentaram matar a gente — disse Siegfried.

    — E vocês mataram dúzias de nós — retrucou Kira. — Eu diria que estamos mais do que quites. Na verdade, vocês tão saindo por cima aqui. Só vão embora, por favor. Não vamos segui-los.

    — E por que precisariam? Estamos no meio do nada. Sem comida ou transporte. O inverno vai nos pegar antes que possamos encontrar um novo assentamento.

    — B-bem… Se vocês prometerem se comportar, talvez possam ficar…

    — Você tá louca!? — gritou Tom, furioso. — O que pensa que ia dizer!? Eles não vão embora. E também não vão ficar. Vão pagar pelos seus crimes. Não tá vendo todas essas pessoas que eles mataram!?

    — Sim. Eu tô. E você?

    — …

    — Podemos resolver isso pacificamente.

    — É inútil, Kira — disse o Homem de Olhos Amarelos. A voz exausta. — Eles não podem ficar. E não irão embora de boa vontade. Só tem um jeito de resolver isso.

    E Siegfried avançou.

    A conversa fez com que as crianças baixassem a guarda e se desleixassem. Podia matar qualquer uma delas em um instante, mas não chegavam a ser uma ameaça e, portanto, não eram seu alvo.

    O Homem de Olhos Amarelos ergueu o bastão e as flechas cobraram o seu preço. Não conseguia erguer bem os braços e tinha o corpo duro. Lento demais para interceptar o ataque. Ao invés disso, escolheu se lançar contra Siegfried. Boa decisão. Se não podia evitar ou bloquear o golpe, a única coisa que resta é atacar com ainda mais força.

    Mas estava fraco demais.

    Mirou o peito de Siegfried, mas o rapaz desviou meio passo para a direita e o bastão acertou seu ombro esquerdo — não muito mais forte do que um leve empurrão.

    Em resposta, Siegfried rasgou seu estômago.

    A carne macia abriu uma enorme boca de quase quinze centímetros, que vomitou sangue; e se as suas entranhas não caíram no chão também, foi apenas porque o Homem de Olhos Amarelos não tardou em segurá-las onde estavam, usando sua mão esquerda.

    E a visão encheu Siegfried de prazer.

    O Homem de Olhos Amarelos estava morto, por mais que se negasse a aceitar isso. Apenas uma presa encurralada, lutando contra o destino. Algo naquela cena deixou Lili inquieta e Siegfried tinha o mesmo fulgor macabro. Depois de tanto fugir e lutar pela vida, sentia-se um predador novamente e a sensação era boa.

    “Como devia ser”, disse Lili.

    “Como devia ser”, concordou Siegfried.

    Sem opção, o Homem de Olhos Amarelos recuou dois passos. O braço direito bem esticado, com o bastão apontado para Siegfried, como se tentasse mantê-lo longe, embora já estivessem a quase quatro metros um do outro e o rapaz não se aproximasse. Medo. Não que o cavaleiro se permitisse deixá-lo transparecer.

    — Esperava mais de você — disse Siegfried. Um sorriso no rosto, enquanto rodeava a sua presa.

    — Você não luta com honra — disse o Homem de Olhos Amarelos. Pálido. Moribundo. — Sem essas flechas…

    — Você teria durado mais vinte ou trinta segundos, na melhor das hipóteses. Sabe, nós mercenários temos um ditado: um homem pode ser velho, corajoso ou forte. Escolha dois.

    De algum modo, Siegfried se divertia.

    As crianças observaram a cena com apreensão e não ousaram se aproximar. Estavam assustadas, mas podia ver algo mais além disso. Esperavam que o seu mentor fizesse algo? Quem sabe usar uma nova técnica secreta para virar a luta ao seu favor? Não. Estava morto e até elas podiam ver isso. Só não tinham iniciativa para fazer algo a respeito. Não sem instruções.

    Blossom retesou seu arco, soltou e então acabou.

    Duas flechas atingiram o Homem de Olhos Amarelos, que tombou para a frente e caiu no chão com um baque surdo, antes que alguém pudesse fazer algo. O seu corpo mole, estirado na neve, tingindo o branco de vermelho. Nas costas, quatro flechas oscilavam com a brisa fria da noite, perfurando seus pulmões, enquanto lutava para respirar. Para se manter vivo.

    — NÃO! — gritaram Tom e Kira.

    Ao contrário do que Siegfried esperava, o garoto não usou a oportunidade para atacá-lo; ao invés disso, foi para cima de Blossom com um grito de guerra, mas ela era ágil demais para ele.

    Embora tenha encurtado a distância, impedindo-a de usar o arco, não conseguia atingi-la. Enquanto ele balançava seu bastão no ar, Blossom recuava e voltava a recuar, sempre que o garoto chegava um pouco perto demais. Patético. Os seus golpes eram ensaiados demais; previsíveis e rígidos, como se estivesse treinando.

    “Nunca viu um combate de verdade.”

    Estava indo ajudar Blossom, quando sentiu o seu estômago arder. Então olhou para baixo e notou que havia sido atingido. Uma flecha. Mas não era uma flecha normal. Aquela era feita de luz sólida, emitindo um calor morno, como uma vela. Assim que a tocou, ela desapareceu e o rapaz viu que o seu corpo não havia sido perfurado, mas a dor e a queimadura continuavam lá. Magia.

    Então procurou ao seu redor.

    Kira.

    A garota tinha os olhos brilhando das lágrimas que se recusava a deixar escorrer. E nas suas mãos trêmulas, um arco curto feito de luz dourada. Isso não era bom.

    Lembrou de Eroth.

    O quão poderosa será que aquela garotinha era? Não parecia ser muito, mas Eroth também não. Até sobreviver depois de ter sido cortada ao meio e dar vida às sombras. É muito fácil julgar a força de um guerreiro pela sua postura, mas feiticeiras estavam numa liga completamente diferente. Não havia como saber o quão poderosas eram, até a batalha terminar.

    — THOMMY! — gritou Kira.

    E, de repente, o garoto abandonou o seu jogo de gato e rato com Blossom para atacar Siegfried. Estavam tentando derrubá-lo. Se por vingança ou porque temiam mais ele do que Blossom, era difícil dizer, mas não foi uma má escolha. Apenas a pior que poderiam ter feito.

    Siegfried não sabia o que esperar de Kira, mas a situação mudava de figura quando se tratava de Tom. O garoto era fraco e podia ver isso tão claro como o dia na forma que se movia e agia. Com o desprendimento de alguém que nunca teve a sua vida na balança. Mas estava prestes a descobrir. Prestes a receber o seu batismo de sangue.

    Siegfried empunhou sua espada com duas mãos, girou nos calcanhares e avançou contra ele. E no mesmo instante sentiu as flechas de luz de Kira atingirem o seu quadril. Dor. Mas apenas por um instante. Logo sentiu o toque de Mimosa em seu corpo e a dor desapareceu. Nada podia pará-lo.

    “Mate”, sussurrou Lili e seu sangue ferveu.

    Arrancou o braço do garoto com um movimento rápido. A bem da verdade, tinha de parabenizá-lo por isso; planejava parti-lo ao meio e pôr um fim no combate ali mesmo, mas ele conseguiu sair do caminho no último instante, embora não tenha sido capaz de evitar completamente o golpe. Seu ombro se estraçalhou com o impacto e a carne rasgou como um pedaço de pano velho.

    O braço esquerdo caiu, mas de algum modo ele ainda conseguiu acertar a boca de Siegfried com o bastão, usando a mão direita. E o ângulo fez o seu pescoço estalar. Não que importasse muito, pois logo em seguida Tom soltou o bastão e caiu de joelhos, segurando o ombro destruído. Se não chorou, nem gritou, foi apenas porque ainda estava em choque.

    Então Siegfried se aproximou, pisando no braço decepado sem se importar. Enfiou o aço anão no estômago do garoto, viu as lágrimas escorrerem e a batalha chegou ao fim. Quando se levantou, restava apenas Kira.

    A garota não mais se movia. Medo? Fosse o que fosse, o arco em sua mão perdeu o brilho e se desfez; desaparecendo como uma vela apagada pelo vento. Acabou. Mas não antes de Blossom espetar uma flecha em seu peito e outra na sua cabeça. Duas sombras que passaram por Siegfried e derrubaram a garota no instante seguinte. E ao contrário de Eroth, Kira não voltou a se erguer.

    “Parece que ela não era tão poderosa assim no fim das contas.”

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