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    Siegfried se pegou observando Andrella fazer suas tarefas… De novo.

    Naquela manhã, havia ajudado-na a coletar água no poço local e colher ervas medicinais no seu jardim particular. Agora, a moça cuidava dos feridos.

    Tom estivera inconsciente por não mais de um dia, antes de acordar no segundo, mas ainda não conseguia se levantar da cama e passava a maior parte do tempo delirando devido à perda de sangue. Kira estava ainda pior; se pelo menos Tom estava consciente, ela nem isso — embora o simples fato de ainda estar viva já fosse um milagre por si só.

    — Ela vai sobreviver — disse Andrella, como que lendo os pensamentos de Siegfried. — A minha filha é forte. E existe magia nela. Você mesmo viu. Não é uma garota normal.

    Nisso ela tinha razão… Talvez.

    Eroth foi partida ao meio e sobreviveu, quem sabe Kira não tivesse o mesmo poder, só que um pouco mais fraco? Mais lento. Como a Blossom, que levou três dias para ressuscitar depois de ter sido morta pela mantícora.

    “Não seria a primeira garota a enganar a morte. Nem a segunda.”

    E deu uma olhada em Mimosa, que trocava as ataduras sujas de Tom. Graças aos cuidados de Andrella, havia melhorado bastante e agora já podia falar novamente, embora não por muito tempo e sempre com a voz meio rouca. E como não podia sair de casa sem assustar os moradores, passava a maior parte do tempo no quarto, cuidando das crianças e aprendendo mais sobre medicina. Mas não era a única.

    Blossom não precisava de cuidados. Mesmo sem ervas e plantas medicinais, a jovem não tardou a se recuperar. Cinco dias haviam se passado desde que ela literalmente voltou dos mortos e agora era como se nada tivesse acontecido. Seu rosto, completamente livre de cicatrizes. Ainda assim, evitava sair de casa, afinal, havia matado muitos moradores e ninguém ali tinha qualquer simpatia por ela.

    Antes da batalha, o número de plebeus não chegava a quarenta. Agora? Quinze. Todos eles, mulheres e crianças. O garoto mais velho ainda vivo era Tom, com os seus treze anos. Quanto ao resto, uma dúzia eram mulheres com idade entre quatro e quarenta anos — e todas perderam alguém, fosse um pai, filho ou irmão, até um marido ou namorado.

    Alguns dos homens haviam sido resgatados ainda vivos, apenas para morrerem em suas casas devido aos ferimentos. O que talvez tenha sido ainda pior.

    Além dos moradores, havia também os três não-soldados que fugiram e ainda estavam vivos, mas Siegfried não os via. Um deles tinha só quinze anos e foi acolhido pela própria família, mas não saía de casa; outro era um homem de trinta anos com esposa e filhos, mas mesmo eles sentiam vergonha do pai; o último era um rapaz de vinte anos que teve o noivado cancelado e agora vivia em uma velha casa abandonada, mais afastada dos outros. Os três únicos sobreviventes dos vinte que enfrentaram Siegfried.

    “Aqui está a glória que tanto queriam.”

    Em apenas uma batalha, perderam metade da sua população e praticamente todos os homens.

    Siegfried estava com Andrella em um quarto do primeiro andar, ajudando a mulher a tecer os cobertores de lã que usariam no inverno, quando Melias apareceu.

    O Homem de Olhos Amarelos era mais forte do que parecia. Depois que a sua esposa o costurou, foi só uma questão de tempo antes que estivesse de pé novamente. Acordou no dia seguinte à batalha, após uma boa noite de sono e, agora, dois dias depois, já era mesmo capaz de andar sem a bengala, ainda que com dificuldade.

    “Sangue mágico, ein.”

    Já tinha ouvido várias histórias a respeito dos elfos. Guerreiros invencíveis, imortais e imparáveis. Sempre julgou serem apenas isso: histórias. Uma forma das pessoas engrandecerem os feitos de seus antepassados, que lutaram contra eles. Mas talvez as lendas fossem verdadeiras e armas mortais não pudessem matá-los.

    Ao invés disso, você teria de ser um herói e partir em alguma jornada épica atrás de uma espada mágica sagrada enviada pelos deuses ou criada por alguma raça extinta pelos elfos há milhares de anos.

    De alguma forma, essa última parte não parecia verdade. Não quando via Melias pálido e ofegante, ainda segurando o estômago com as mãos, embora o corte já tivesse sido devidamente fechado e costurado. Será que tinha algo a ver com o fato de não ser um elfo puro, mas um mestiço meio-elfo? Talvez por isso as suas habilidades fossem mais fracas. Isso explicaria o porquê de Kira não ter acordado.

    Quanto mais diluído for o sangue élfico, mais demora para a sua regeneração fazer efeito. Seria algo assim? Eroth se curava em um piscar de olhos, Melias precisava de um dia e Kira… Bem, descobririam em breve.

    — Preciso falar com você! — disse Melias. O rosto sério, tentando conter a dor que sentia simplesmente por respirar.

    Andrella se apressou em arranjar uma cadeira para o marido, que esperou ela se retirar e fechar a porta antes de se dirigir a Siegfried:

    — O que está fazendo?

    — Vai ter que ser um pouco mais específico.

    — Por que ainda não me matou? O que está esperando?

    — Bem que eu devia, né?! Mas perdi a minha chance quando a sua esposa me convenceu a te poupar. Não sou um covarde. Não mato velhos indefesos.

    “Nós dois sabemos que isso é mentira”, disse Lili. Siegfried a ignorou e prosseguiu:

    — Enfim. Seja como for, não tenho motivos pra te matar… Novos motivos, quero dizer.

    — Sua mestra…

    — Eu não sirvo à Eroth!

    — Humpf! Acha que me engana? Vi os seus olhos mudarem da primeira vez que nos encontramos. Vermelhos e brilhantes, como duas estrelas de sangue. Você não é humano!

    — Disse o cara que sobreviveu depois de ter metade dos intestinos espalhados pelo chão.

    — Se não serve a ela, por que está aqui?

    — Por nada. Esse lugar só tava no caminho. Tinha uma mantícora atrás da gente e meio que precisávamos de um lugar pra dormir.

    — Então vá embora!

    — Nada me deixaria mais feliz, mas o inverno tá chegando e eu não pretendo congelar até a morte. Esse lugar é o último reduto que temos e só vamos embora quando eu disser.

    E foi o fim da discussão… Até o dia seguinte, quando Melias voltou a chamá-lo para conversar, mas desta vez se reuniram no jardim e Andrella estava ao seu lado.

    — Eu queria me desculpar pela minha falta de educação ontem — disse Melias. — A minha esposa diz que vocês têm sido de grande ajuda. E sua amiga nos explicou o que houve. O que a bruxa fez com ela. Com vocês. Sinto muito por isso. Eu não devia ter pulado para conclusões precipitadas. Se tivesse escutado vocês antes, muitas mortes poderiam ter sido evitadas.

    “Belas palavras”, brincou Siegfried.

    E deu uma boa olhada em Andrella, atrás do marido. Discreta e sedutora. Claramente aquelas palavras vieram dela. Haveria neste mundo algum homem que não estivesse na palma da mão da própria esposa? Talvez o conde Gaelor tenha sido o último.

    Siegfried se manteve em silêncio e Melias continuou:

    — Suas amigas deram a entender que você derrotou o barão Kroft antes de partir. E que também matou um ogro.

    — E?

    — Certamente deve haver algum exagero nestas palavras, eu temo. São garotas honestas, não me entenda errado. Sei que não mentiram, mas não são guerreiras. Você é. Gostaria de ouvir com as suas palavras o que realmente aconteceu.

    — Não tem muito o que dizer. Foi como elas disseram. Matamos um ogro e depois o barão Kroft. Simples assim.

    Melias não pareceu satisfeito com a resposta. Se algo, parecia irritado quando perguntou:

    — Garoto, você já viu um ogro?

    — Vi cinco, na verdade.

    — E está me dizendo que matou um deles?

    — Dois.

    — Isso é uma piada?

    — Eu tô rindo?

    — …

    — Se não acredita em mim…

    — Como?

    — O quê?

    — Como você matou os ogros?

    — …

    — E então?

    — Que diferença faz?

    — Toda.

    Siegfried parou por um momento. Havia algo de estranho naquela conversa. Podia ver quando alguém o estava testando e não gostava disso, mas decidiu dizer a verdade:

    — Bom, tanto faz. Não me importo de contar. Já matei orcs antes e não foi muito diferente, pra falar a verdade; embora os ogros sejam bem maiores e aquelas armaduras definitivamente não ajudaram. O primeiro eu peguei de surpresa, depois que ele tirou a armadura. Atravessei a garganta dele com a minha espada e depois o decapitei. O segundo foi bem mais difícil, ele ainda tava de armadura. A Blossom ajudou. Ela usou as flechas e eu, a espada. Afundei a lâmina na cara dele assim que a oportunidade surgiu, mas foi algo do momento. Vi uma chance e agarrei.

    Melias o escutou em silêncio, como que tentando ver por trás de suas palavras. Tentando desvendar a mentira. De fato, era difícil imaginar um garoto de dezessete anos matando um ogro, especialmente quando você já viu um ogro de verdade. Mas fica um pouco mais fácil de acreditar depois de ter visto esse mesmo rapaz matar oito homens adultos em menos de dois minutos. Então finalmente perguntou:

    — E o barão? Disse que o matou também. Como?

    — Enfiei a minha espada no peito dele. Não foi tão difícil, pra falar a verdade.

    — Impossível! Eu mesmo o treinei. Elliot é um guerreiro ímpar. Você não poderia igualá-lo, quem dirá derrotá-lo.

    — Eu derrotei você, não é?

    — Você trapaceou. Se a sua arqueira não tivesse interferido…

    — Desculpe, não sabia que era um duelo. Talvez porque vocês atearam fogo na minha casa e levaram a gente pra uma emboscada. Se quer regras, sugiro que procure em outro lugar, porque não vai encontrar nenhuma no campo de batalha. Vencer é vencer. Se não gostou, traga o seu próprio arqueiro da próxima vez.

    — …

    — Se já terminamos…

    — Você é um mercenário.

    — Isso foi uma pergunta?

    — Já vi muitos do seu tipo por aí. Mentirosos e pouco confiáveis… Mas bons em matar. Não são e nunca serão melhores do que um cavaleiro de verdade, mas são assassinos por excelência e isso não posso negar. Você não luta com honra, mas não faz diferença. Quero proteger meu povo. Quero matar a bruxa. E quero a sua ajuda.

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