Capítulo 0180: Viagem de volta
O grupo partiu no sétimo dia após o incêndio da taverna. Rumo ao Castelo dos Ossos.
E, aparentemente, aquela missão era algo pelo qual Melias Kroft esperava já há muito tempo. Mas não apenas ele; as crianças vinham sendo preparadas para isso desde que nasceram.
Infelizmente, Kira não se juntaria a eles. Embora tenha recobrado a consciência há três dias, a garota não estava em condições de lutar — mal estava em condições de ir ao banheiro sozinha. Os quatro dias que passou em coma, lutando pela vida, haviam lhe tirado toda a energia e agora mal conseguia andar dois metros sem ficar ofegante. Como se isso não bastasse, também estava cega.
A flecha que atingiu seu rosto não penetrou muito profundamente, mas acertou entre os olhos e cortou algo que não devia.
Segundo Kira, a única coisa que via era um mar vermelho ao seu redor e, com algum esforço, formas meio desconexas nadando nele. Mas bastavam não mais que trinta segundos para sentir a vista arder e a cabeça explodir de dor, por isso passou a manter os olhos fechados e protegidos da claridade com uma faixa.
Tom tampouco devia participar da missão. Havia perdido o braço esquerdo e a febre quase lhe tirou a vida, mas estava ansioso pela batalha e insistiu em se juntar a eles.
— Não tem com o que se preocupar — garantiu Melias. — Ele vai ficar bem. Eu mesmo vou cuidar de Eroth. Tudo o que precisam fazer é mantê-la ocupada.
Mas Siegfried sabia exatamente o que ele pretendia. Tinha usado a mesma tática ao enfrentar Eradan. Mas, desta vez, ele seria o cadáver e Melias o herói. Sacrificando a sua vida para ferir e distrair Eroth por tempo o bastante até que o barão destitulado pudesse encontrar uma abertura e terminar o serviço. Um destino que Tom parecia ansioso por aceitar.
Antes da chegada de Siegfried e dos outros, Melias já vinha treinando as crianças desde que aprenderam a andar; e parecia esperar que estivessem prontas em cinco ou seis anos. Tom lutaria ao seu lado, para que pudessem encurralar Eroth, enquanto Kira usaria a sua magia para protegê-los. Agora esse arranjo não era mais necessário. No lugar de Tom, estavam Siegfried e Blossom; e no lugar de Kira, Mimosa.
Depois de anos de treinamento e preparação, ambas as crianças tornaram-se descartáveis e talvez por isso Tom quisesse tanto participar da batalha. Para provar o seu valor ou morrer tentando.
E não era o único disposto a morrer.
Siegfried passou os últimos dias tentando convencer Mimosa a desistir, mas a garota estava determinada a enfrentar Eroth. E Melias insistia que a sua magia seria necessária; até lhe ofereceu os livros mágicos de Kira, mas Mimosa não sabia ler muito bem, apenas as palavras mais básicas e, portanto, os livros lhe eram inúteis.
— Não preciso dessas palavras mágicas — explicou Mimosa. — Hum. Como eu posso dizer isso?! Tipo, pense na minha música como uma linguagem. Eu tô ‘falando’ com o mundo ao meu redor. Cada nota seria como uma palavra e tal. Então, quando eu toco uma canção inteira, eu tô ‘conversando’ com Elyon… Ou algo assim. Pedindo que ele me faça um favor, sabe? Como quando um cantor tenta impressionar uma donzela tocando uma balada romântica. Só que eu tô tentando impressionar um deus. Se ele gostar, vai fazer o que eu pedi. E quanto mais ele gostar, mais coisas eu posso fazer. É bem legal, na verdade.
Mas ninguém além de Kira pareceu entender.
♦
Era a sua última noite no povoado, antes do grupo partir pela manhã, e Siegfried estava sozinho no jardim, limpando a sua espada, quando Andrella veio até ele:
— Assustado?
Siegfried parou e a observou.
— Um rapaz tão bonito não devia fazer uma cara tão ranzinza — ela brincou. — De todo modo, não falava de você. Um homem com medo da batalha? Ha! Tolice. Onde já se viu isso, não é mesmo?! Não. Vocês são todos muito corajosos e invencíveis. Não temem nada, nem ninguém, não é mesmo? Eu me referia à sua amiga. Teme por ela, não é?
— …
— Você gosta dela?
— Por que todo mundo me pergunta isso?! Eu posso me importar com alguém e não querer levá-la pra cama, sabia!?
— Eu nunca disse que você queria.
Siegfried se calou, Andrella sorriu e então prosseguiu:
— Desculpa. Acho que eu disse algo que não devia, não é?! Então é só isso? Se preocupa com a segurança dela? Nada mais?
— …
— E quanto à outra? A ruivinha.
— Blossom?
— Não me lembro de ter pedido pra ela ficar.
— E nem preciso. Se algum de nós pode sobreviver a essa missão, eu te garanto que é ela.
— Hum.
— O que foi?
— Nada.
Andrella esperou um momento. Observando. Como se tentasse encontrar a mentira por trás de suas palavras. Dez segundos de silêncio desconfortável depois, ela se virou e foi embora. Já estava na porta quando parou e perguntou:
— Naquele dia. Quando o meu marido… Por que o castelo?
— Quer dizer: ‘por que não você’?
— Não foi o que eu disse… Mas já que tocou no assunto, você realmente passa bastante tempo perto de mim. Não sou jovem, mas também não sou tão velha a ponto de ter me esquecido de como é quando um rapaz gosta de uma garota. Estou errada?
— …
— E então?
— As camas eram macias.
— O quê?
— Foi por isso que escolhi o castelo. Quero passar o inverno numa cama macia.
Andrella parecia querer dizer algo, mas se controlou, manteve a boca fechada e foi embora, deixando Siegfried para trás.
Por que não a escolheu? Era bem simples, na verdade: não a desejava. Não desse modo. Teve certeza disso há alguns dias, quando acidentalmente viu Andrella se banhar, enquanto passava pelo jardim na hora errada. Era bonita. Ainda assim, não desejava tocá-la. Mesmo olhá-la de forma desrespeitosa era o bastante para deixá-lo desconfortável.
Queria algo dela e buscava por isso sempre que a via. Apenas não sabia o que era. Só o que tinha certeza era de que não era aquilo que tinha entre as pernas.
Com a Mimosa era um pouco mais complicado.
Desejava-a, sim. Disso não tinha dúvidas. Mas apenas como um pedaço de carne. O que não seria um problema, se também não se importasse com a sua segurança. Falhou em protegê-la uma vez e agora sentia-se responsável pela garota. Não como um marido se preocupa com a esposa, mas como uma criança se preocupa com um filhotinho fofo… Bem, talvez uma criança normal e não do tipo que aprendeu a matar estripando pequenos animais.
Mas quando compartilhou com ela as suas preocupações, Mimosa deixou escapar um risinho e disse:
— Relaxa. Eu sei que você não vai deixar nada de ruim acontecer comigo. Além do mais, eu disse que você ia me ajudar a escrever as minhas canções, não disse? E aposto que enfrentar uma bruxa má do pântano vai me dar várias ideias. Só que pra isso eu preciso ver a luta, não é mesmo?
♦
Siegfried, Mimosa, Blossom, Melias Kroft e Tom. Os cinco partiram ao amanhecer e a viagem pelo pântano foi bem mais tranquila agora que não tinham uma mantícora caçando eles. Ainda assim, podiam sentir as garras do inverno em suas costas.
Quando partiram, uma leve garoa caía. Agora, essa leve garoa havia se transformado em um nevisco constante que fazia a temperatura cair depressa. Mesmo com roupas apropriadas, Mimosa depressa se tornou letárgica e precisou ser carregada por Siegfried para que não ficasse muito para trás.
— Eu disse que você devia ter ficado lá.
A garota se limitou a grunhir irritada, antes de se aconchegar no colo dele e dormir.
Chegaram ao Castelo dos Ossos dois dias depois.

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