Capítulo 7 - Vestígios
O ar, ainda úmido pela chuva do dia anterior, balança o cabelo de Raisel enquanto a sensação do sereno noturno paira sobre a pele.
Poucos minutos se passaram desde que eles, o grupo, se separaram.
O garoto e o velho seguem rumo à entrada de Fyodor para se preparem.
Afinal, para encontrar Imoriel, seria preciso viajar em busca do seu paradeiro e refinar as habilidades é o primeiro passo.
Observando os arredores, o rapaz percebe rachaduras azuladas por toda à parte naquele gramado.
一 Isso é… o início da área da Ruína, né?
Com curiosidade, dirige a fala para o mentor que se encontra a poucos passos a frente.
一 Sim. A entrada tá logo ali.
Mais adiante, é possível ver uma enorme porta feita inteiramente de pedra. O tamanho dessa entrada é de aproximadamente cinco metros. Parece tão grande mesmo estando distante.
Contudo, o mais impressionante é que não há nada atrás dela.
Um portão vazio em seus arredores e, quanto mais próximo, mais frequentes são as danificações azuladas pelo solo.
Ao ficarem de frente para aquela grande entrada, o garoto sente um arrepio inteiro subindo pela nuca.
Ele se vira para trás, mas não avista nada além do gramado manchado em azul pelas repartições…
一 Como a gente vai entrar nisso? Parece que tá fechado…
Comenta o garoto claramente nervoso por não saber o que esperar.
一 Não precisa ficar tão preocupado… Fyodor já foi totalmente explorada e eu mesmo já vim aqui outras duas vezes.
Conforme prossegue falando, Yurgen se aproxima um pouco mais e encosta o palmo sobre a estrutura.
一 Põe a sua mão também. Pra abrir é só expelir energia de perto. Toda Ruína funciona assim.
Ao ouvir aquilo, Raisel faz o mesmo com certo receio do que viria à seguir.
O velho emite a sua energia prateada como um pulso contra aquela porta.
Nesse instante, a construção pareceu acompanhar o fluxo daquela rajada como se a absorvesse.
Um brilho azulado se intensifica da aresta central, explodindo sobre mestre e discípulo.
De tão perto, ambos são engolidos e ofuscados por aquele clarão.
Abrindo os olhos pouco a pouco, o garoto observa algo completamente inesperado.
A perspectiva se afasta em uma velocidade estonteante revelando uma quantidade inestimável de ilhas voadoras de inúmeros formatos, tipos e tamanhos.
São tantas ilhas que os olhos não conseguiam captar completamente, se perdendo em meio a um nevoeiro denso ou nuvens.
一 A GENTE ENTROU?!
Boquiaberto com o cenário sob a vastidão do céu entardecido, Raisel não sabe para onde olhar.
“Pássaros? Como eles entraram aqui?”
“Tem tantos lugares… Pra onde a gente vai?”
一 É. Esse é o interior de Fyodor, mas cada Ruína tem um interior diferente.
O homem então começa a andar para mais próximo da borda da pequena ilha em que eles apareceram.
Ao que tudo indica, esse pedaço de terra inicial servia apenas para suportar o portão de entrada.
一 Antes de começarmos, vou te explicar como funciona Fyodor.
Encarando o horizonte, o velho aponta para lugares específicos.
一 Cada ilha aqui tem um clima diferente, mas não se limita só a chuva, rajadas e coisas assim. Existem algumas ilhas mais distantes que o senso de direção é alterado, outros que você se sente mais pesado e por aí vai.
一 Pra alcançar o Núcleo da Ruína, você precisa traçar a melhor rota até a última ilha. Eu já conheço o caminho mais seguro, então a sua primeira tarefa é chegar lá.
一 Não tenha medo das criaturas. Se for preciso, mate elas. Fuja delas. A sua sobrevivência só depende de você.
Durante o esclarecimento, Yurgen intercala o apontar para um pedaço de terra que ardia em magma e outro que escorria água sem parar das suas beiradas
para ilustrar a diversificação.
一 Ué… Então eu vou sozinho?
Com um olhar estreito e um semblante neutro, o homem encara outro como se estivesse decepcionado.
一 Olha isso atrás de você.
Quando o menino vira, a visão dele escurece junto com uma pancada na nuca.
一 Velho desgra…
Os olhos dele se abriram repentinamente como um susto.
O que ele pôde ver são diversas árvores grandes que se estendem muitos metros para cima.
Os troncos são grossos, mas as folhas reclusas ao topo…
一 Urgh…
“Onde o vovô me deixou? Isso é dentro de Fyodor ainda?”
Já é de noite. Tudo estava escuro.
Ele se levanta e em seguida põe a mão na nuca acariciando aquela parte golpeada.
“Sobreviver e achar o Núcleo da Ruína… Essa ilha parece uma floresta, deve estar repleta de animais e outros monstros.”
Caminhando pelo gramado, a vegetação desse lugar é estranhamente enorme.
“Não vou conseguir ver nada nesse breu… Vou tentar mapear ao redor.”
Raisel cessa os passos e respira fundo. A energia dourada pigmenta a silhueta dele e, como um relâmpago, se expande como um vácuo.
Dentro da mente, o contorno do que há próximo é registrado.
“Tem um pequeno lago mais na frente, árvores com frutas e um… acampamento?”
O pulso de energia se alastra por boa parte do local, mas não chega ao fim.
Abrindo os olhos, ele se encaminha até o abrigo vazio.
“Estranho… Eu devo ter visto quase tudo, mas não tem um único animal próximo…”
Deslizando os olhos com desconfiança, um mau pressentimento o consome.
“Sinto que alguém tá me observando… Mas não tem ninguém por perto.”
Alguns minutos se passam e o lugar de repouso está a passos de distância.
“O céu aqui é bem parecido com o do mundo real… A única diferença é que tem só quatro estrelas. O que será que são Ruínas?”
Haviam muitas perguntas, mas nenhuma resposta.
À direita, o lago sereno junto de uma área era mais aberta.
“Hm? Tem uma ilha irradiando trovões lá na frente…”
O menino olha para o horizonte escolhendo seu próximo destino.
“É melhor ver de dia a próxima ilha… Aqui parece ser mais seguro apesar desse sentimento estranho.”
Ao chegar no acampamento, o garoto se aproxima da fogueira.
“Completamente seca e queimada… Deve ter sido usada faz muitos anos.”
O olhar se direciona até os caixotes, mas completamente abertos e vazios.
“As pessoas que estavam abrigadas aqui não devem ter usado todos os suprimentos… Foram saqueadas, talvez? Mas por quem?”
Afastando-se daqueles baús, ele vai até uma espécie de cabana de madeira nesse abrigo.
“Também é muito grande igual as coisas dessa ilha… Acho que eles não eram humanos.”
Contudo, a visão periférica do rapaz percebe um vulto dentro do matagal junto com o som de uma serpente.
Imediatamente, ele se vira com o palmo apontado.
Emitindo uma esfera de luz como um projétil, foi clareando floresta à dentro até se perder.
“Nada… Bizarro…”
Entretanto, com isso Raisel percebe algo diferente.
“Ué… O espaço aberto antes era maior, não?”
A floresta parece estar mais próxima.
O balançar das folhas não está em harmonia com as brisas. Os galhos rangem como um mau presságio.
Tal dessincronia ambiental, ganha contraste sobre a audição de Raisel.
Em um instante, o silêncio se perpetua enquanto ele se mantém imóvel.
Com os sentidos mais apurados,nota com excelência uma vibração que ecoa pela terra.
Movendo-se com velocidade à partir de um reflexo, o garoto se afasta enquanto uma raiz tenta capturar as suas pernas.
“Agora faz sentido o porquê de não ter animais aqui!”
Ao fundo, aquelas criaturas se revelam com a aparência das árvores frutíferas.
Com bocas tortas e olhos vazios, os seres passam a emitir sons de animais e pessoas.
一 SOCORRO!
一 ALGUÉM ME AJUDA, POR FAVOR!
一 AAAAH! MINHAS PERNAS!
O tom das vozes é macabro. Grave como um velho rouco, mas com uma segunda sonoridade aguda como uma criança.
Após a emboscada falha, esses monstros arbóreos iniciam uma ofensiva com incontáveis galhos e raízes sendo balançadas em direção a Raisel.
Agilmente, ele se esquiva por entre os golpes com acrobacias sucessivas.
A pancada daqueles chicotes contra o chão causa rasgos e fazem vácuos de vento poderosos.
Contudo, continuar com isso iria cansá-lo uma hora. Além disso, essas criaturas também permanecem a se aproximar e a cercá-lo junto dos sons bizarros.
“Merda… Não tenho nada pra me defender ou atacar! Não sei o quão resistente elas são!”
Em meio aos movimentos, ele vê o pequeno lago completamente aberto.
一 Droga!
Concentrando mais as forças nas pernas, Raisel parte como um vulto até as águas. Superando em muito a velocidade daqueles golpes.
O corpo dele bate contra a superfície do lago e levanta gotículas para todos os arredores.
Com a respiração presa, o garoto tenta iniciar um nado… Mas um outro perigo surge.
“NÃO CONSIGO ME MEXER!”
Encarando as profundezas, pilhas de ossos de animais e humanoides preenchem esse espaço.
“PORRA! POR QUE ESSA ÁGUA É TÃO DURA!?”
Ele continua na tentativa de se debater, mas prosseguir nisso só iria desgastá-lo rapidamente.
Arregalando os olhos, um pouco de ar escapa das bochechas.
A aura dourada do Gewissen dele o envolve, mas ainda assim, não surte efeito.
“Eu vou… morrer aqui?”
O rosto dele bate contra as ossadas. Ele chegou ao fundo.
“Meu fôlego tá acabando… Tá tão frio…”
A vista do rapaz escurece pouco a pouco.
一 Até lá!
一 Tchau, irmãozão Ray e tio Yurga!
一 T-Tomem cuidado!
As vozes de Carmen, Lavi e Lila ressoam pela mente dele.
Apertando os dentes, ele não podia desistir até o último segundo.
Com a força de vontade, a água desse lago começa a se aquecer. A crescente da energia impulsionada pelas emoções o fortalecia internamente e externamente.
Há poucos segundos era apenas um fortalecimento interno, mas assim que o Gewissen começou a transbordar, passou a ser utilizado como uma espécie de barreira.
Por mais que as roupas estivessem molhadas com o líquido, o peso insuperável de toda a água havia sido empurrado para trás.
Levantando-se com dificuldade devido às roupas encharcadas, o brilho dourado aparece irradiando por dentro das águas do lago borbulhante.
Agora, ele podia respirar.
O olhar determinado encara o topo.
“Não tem como pular pra fora com toda essa água.”
“Foco… Se a minha energia tá funcionando contra isso, vou continuar até tudo desaparecer…”
Os joelhos dele cedem com sutileza.
Ao sentar sobre a ossada das vítimas anteriores, Raisel parece agoniado.
Os olhos fechados se voltam completamente para o interno. Na emoção que faz o seu coração palpitar com tanta frustração.
Na ideia parece fácil, mas expor o corpo a essa quantidade de energia de maneira contínua traz sensações muito incômodas.
O calor tão grande causa suor.
Desse suor, uma gosma negra pouco a pouco toma conta da pele do garoto.
Manter uma respiração lenta com um ritmo cardíaco tão alto é doloroso.
Nesse sofrimento, os órgãos internos de Raisel parecem estar ardendo.
Absorto nessas sensações, horas se passam.
A única coisa que restava do antigo lago, era uma cratera.
Um vapor interminável subia para os céus.
O garoto no centro de todo esse nevoeiro volta a levantar cambaleante.
Ofegante, a respiração descontrolada evidencia o grande esforço mental e emocional.
Em um balançar de braço, o vapor se dissipa.
A figura dele, por mais exausta, deveria seguir em frente.
Sem tempo para recuperações e enrolação, o olhar âmbar de Raisel demonstra a sua vontade ardente.
“Não posso… perder tempo… Preciso chegar ao Núcleo rápido e sair!”
Caminhando até a borda do lago, ele observa uma espada em perfeitas condições fincada ali.
Então, antes de subir até a floresta das árvores monstros, o garoto vasculha esses restos mortais procurando mais recursos.
Ainda havia algumas peças de roupa e armaduras dos cadáveres. Equipamentos quebrados e outros mais inteiros.
De passo em passo, ele vai esmagando os ossos pelo chão.
Por mais que esses resquícios mortais fossem completamente desconhecidos, eles tinham histórias, vidas e, até mesmo, famílias.
Mas por que os seus finais se deram em um lugar como esse?
Em um salto ao chegar nas paredes, os pés esbanjam a sua solitude. A confiança adquirida após reafirmar-se por horas.
Com um colete de couro, botas, manoplas, uma lança nas costas, uma espada em mãos e uma pequena bolsa na cintura à esquerda, Raisel se encontra pronto para continuar.
一 Não fiquem no meu caminho…
Preparando a postura com a lâmina, as árvores voltam a atacar.
Dessa vez, o menino corta os chicotes de raízes e galhos concentrando a energia na espada.
O reforço com Gewissen evoluiu. Estava muito mais denso. Talvez por conta da clareza na sua determinação, centrado em seu objetivo.
Com uma arma, essas árvores não passam de alvos ambulantes.
Ao cortá-las, elas nem sangue possuíam.
Os passos do rapaz vão de um lado ao outro buscando a sua próxima vítima. Fatiando-as com um olhar de julgamento.
“Quantas outras pessoas vocês mataram? Quantos vocês empurraram pra aquele lago?”
O que resta delas são as carcaças de madeira que murcharam e as suas frutinhas avermelhadas.
O problema é a quantidade. Não importa o quanto cortasse, mais e mais desses monstros aparecem.
Os sons bizarros das vítimas anteriores somem com o esvair da vida de cada um desses bichos.
Após determinado tempo nessa batalha sem fim, a fome de Raisel chegou em seu ápice.
Sentado sobre os restos desses monstros, ele encara um dos frutos em sua posse.
A espada, fincada sobre a pilha, sempre é mantida por perto.
“Será que eu como isso? Acho que não tem problema… A única coisa ruim eram as árvores… Né?”
Relutante, o estômago ronca.
“Tsc! Que se dane!”
As bolinhas avermelhadas são levadas à boca.
Os olhos dele se arregalaram.
一 Que gostoso! É docinho!
Mastigando pouco e engolindo toneladas, ele passa a coletar essas frutas que foram esparramadas pelo chão.
Nesse ciclo de se mover matando as árvores monstros e coletando frutas, o céu da Ruína rapidamente se transforma em um amanhecer.
Após tanto tempo, ele finalmente chega de frente a uma grande criatura cuja aparência é de uma árvore envelhecida enorme.
一 Igual eu pensei… Pelo tanto, elas tinham que estar vindo de algum lugar!
一 Depois que eu matar você, eu vou pra próxima ilha!
Apontando a espada para o monstro, a feição com olhos esburacados e bocas distorcidas surgem naquela madeira desalmada.
一 HHHHWWWWWAAAAAR!
A árvore anciã urra em resposta e a batalha se inicia…
Com o tamanho dela, consequentemente deixa os ataques com as raízes mais perigosos, mas isso é tudo.
“Diferente do Líder dos Andarilhos, você não tem um pingo de dignidade ou consciência… Uma existência tão vazia e triste… Não consigo entender o porquê algo como você existe.”
“Apenas pra matar pessoas? Pra causar dor e sofrimento?”
Por cada vítima, Raisel desmembra os galhos e raízes dessa criatura. Por cada urro em dor que ela demonstra, menos piedade ele sente.
Talvez pela falta de simpatia, o garoto não carrega nenhuma amargura de eliminar algo como isso. Algo que vai contra o que acredita ser justo.
Na visão dele, as imagens do inimigo atual e do pilar azul se sobrepõem como lapsos.
Com facilidade, o monstro foi subjugado com um golpe que o partiu em dois pela horizontal.
A parte superior do tronco tombou para trás e saiu para fora da ilha.
Contudo, diferente do que se esperava, a árvore não despencou, mas sim subiu ao ponto de se perder no infinito céu de Fyodor.
一 Que?
Encarando esse acontecimento com um semblante pensativo, Raisel até que vê um sentido no que acabou de ver.
一 Então é por isso que essas ilhas flutuam… E eu me preocupando à toa em como ir de uma ilha a outra…
Suspira junto do guardar da espada na bainha.
“Até que é interessante… A água aqui é invertida por causa disso? Então o ar é como se fosse água e a água como se fosse ar?”
O garoto coça a cabeça.
一 Não é bem isso, eu acho… Que complicado…
Aproximando-se mais da borda, Raisel encara o seu próximo destino logo acima: uma ilha que parece estar nevando e montanhosa.
“Observando o céu aqui mais vezes, eu notei que as ilhas não ficam paradas… Elas se movem e se entrelaçam… Então a posição delas deve mudar aleatoriamente…”
“Como eu vou saber qual é a última ilha?”
Entretanto, pela curiosidade, ele direciona os olhos para baixo.
“Estranho… Olhando pra cá, não tem tantas ilhas quanto pra cima…”
Estreitando o olhar, observa com dificuldade o portão de entrada inicial.
“Hm… Aquele é o portão de entrada? Então não é ir em frente, mas sim subir… A última ilha deve ser a mais alta então!”
Raisel sorri e se prepara para pular o mais longe que podia.
As panturrilhas saltam com a concentração de forças.
Imediatamente, o corpo dele flutua após o impulso… Mas há um outro efeito inesperado: ele não consegue respirar!
“De novo isso!?”
Nadando com a máxima velocidade, ele não ia chegar a tempo caso continuasse… É muito longe.
“Tá… O que eu faço pra ir mais rápido?”
Ele simplesmente para ao ar e começa a pensar numa solução com os braços e as pernas cruzadas.
O cabelo liso flutua como se estivesse submerso.
“Hm… Tô com medo de transbordar energia e começar a cair… Espera… Cair?”
“A árvore flutuou por causa do peso… Acho que quanto maior é algo vivo, mais energia tem… Tinham pássaros voando quando cheguei…”
Coçando o queixo, ele teve uma ideia.
Raisel fica de cabeça para baixo.
Concentrando energia nos pés, ele começa a subir.
“Mentira que isso deu certo… Ruínas são bizarras…”
Incrédulo, ele vai se endireitando até a ilha escolhida.
Dentro do clima gélido, no epicentro de um subterrâneo, alguém se aquece ao redor de uma lareira.
Quais outros desafios aguardam o garoto?
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