Ser envolto por uma fina camada de água causou uma estranheza imediata em Zac. O instinto de sobrevivência gritou dentro dele, e, em puro desespero, ele prendeu a respiração, certo de que morreria afogado a qualquer instante. Seus olhos se arregalaram, e seu coração disparou em pânico. Ele tentou puxar a película d’água de seu rosto, coçando, arranhando, agarrando-a com os dedos em uma tentativa frenética de arrancá-la. Nada funcionava.

    Enquanto isso, a alguns passos de distância, Dionísio observava a cena e simplesmente não conseguia se conter. Seu corpo tremia de tanto rir, e bolhas escapavam de sua boca em um fluxo constante. Era patético demais. Ele tentou se segurar, mas a expressão de puro horror no rosto de Zac tornava a situação ainda mais hilária.

    Por um instante, Dionísio se perguntou se deveria deixar o amigo perceber sozinho que não estava se afogando ou se deveria intervir. Mas então se lembrou do aviso da diretora Flora: não demorem, esse caminho não é normal.

    Zac, por outro lado, não via a cena da mesma forma. Para ele, o desespero era real. Ele lutava contra a película d’água como se estivesse à beira da morte, e quando olhou para Dionísio—que estava dobrado de tanto rir—seu pavor só aumentou. Pronto. Morremos. Era isso. O cara já está delirando antes de mim!

    Dionísio, ainda tentando recuperar o fôlego entre risadas, decidiu agir. Com um movimento rápido, ele se aproximou e tocou o ombro de Zac. No exato momento do toque, as camadas d’água que cobriam os dois se fundiram em uma só, formando uma corrente uniforme que circulava em torno de ambos. O fluxo antes disperso seguiu um único caminho, convergindo em uma dança hipnótica ao redor de seus corpos.

    — Zac, tá me ouvindo? — perguntou Dionísio, sua voz ligeiramente abafada, como se estivessem realmente submersos.

    Zac piscou algumas vezes, ainda assustado, mas conseguiu captar parte do que o amigo dizia.

    — Ô mané, tu me ouviu, né? Então para com essa bobeira, ninguém vai morrer afogado. Tu não tá vendo que eu tô falando contigo?

    O raciocínio de Zac finalmente acompanhou os acontecimentos. Ele percebeu que conseguia respirar normalmente, que não havia risco algum… e que, pior de tudo, tinha acabado de passar um vexame enorme. Lentamente, seu rosto foi se transformando de terror absoluto para uma expressão de pura vergonha.

    Ele pigarreou, endireitou a postura e tentou fingir que nada daquilo tinha acontecido, mas falhou miseravelmente. O rubor em seu rosto e o sorriso sem jeito denunciavam tudo. No fim, ele apenas soltou um suspiro resignado e lançou um sorriso conformado para Dionísio.

    — Tá, tá… Deixa pra lá.

    Dionísio ainda soltou uma última risada antes de se virar para a árvore pulsante à sua frente.

    — Bora, medroso. Ainda temos um caminho pela frente.

    Zac, tomado por uma curiosidade quase mágica, atravessou a passagem na árvore sem hesitar. Seus dedos tocaram a superfície interna, e, embora parecesse viscosa à primeira vista, a textura revelou-se surpreendentemente delicada, como se estivesse deslizando a mão por um véu de linho tecido por fadas.

    No instante em que seu corpo cruzou a abertura, sentiu novamente aquela estranha sensação—uma gota d’água caindo. Mas, dessa vez, não foi apenas um som distante. Ele viu a gota deslizar por uma folha, sendo lentamente absorvida pelo verde vibrante da planta. E, assim como a gota, Zac sentiu-se escorrendo, sua essência fluindo através da madeira viva até ser completamente acolhido pela árvore.

    Dionísio, que observava a cena, arregalou os olhos. Zac atravessara o portal com uma naturalidade impressionante—quase como se já pertencesse àquele lugar. Quando ele mesmo tentara pela primeira vez, fora um processo longo e instável.

    Antes que pudesse refletir sobre aquilo, um ruído suave de passos ecoou à sua direita.

    Virando-se rapidamente, viu dois guardas patrulhando a área. O coração acelerou. Sem perder tempo, correu e lançou-se contra a árvore, sentindo a madeira viva envolvê-lo e puxá-lo para dentro.

    Assim que desapareceu, os galhos da árvore começaram a se mover. Suas fibras entrelaçaram-se em uma dança silenciosa, fechando a passagem com perfeição. O portal desapareceu um instante antes de os guardas chegarem.

    Um deles franziu o cenho e apontou para o chão.

    — Choveu hoje? Tem algo estranho aqui.

    — Que eu me lembre, não — respondeu o outro, soltando um bocejo preguiçoso. — Deve ser só orvalho.

    O primeiro guarda hesitou, observando a grama úmida. Mas seu companheiro deu de ombros.

    — Relaxa. Apolo vai ter que compensar a gente por essa patrulha extra.

    — Verdade. Vamos acelerar. Estamos perto dos dormitórios. Dá pra tirar um cochilo rápido.

    — Ótima ideia. A escola está tão silenciosa… Nem parece que algo grande aconteceu.

    E assim seguiram seu caminho, sem notar que, bem diante deles, um segredo pulsava dentro da árvore.

    Zac e Dionísio deslizavam por um túnel vivo, onde a gravidade parecia brincar com seus corpos. Era como se estivessem sendo guiados pelo próprio espírito da floresta, atravessando uma passagem que os acolhia como um rio abraça as pedras no fundo do leito.

    Mas aquilo não era apenas um caminho. Eles sentiam a estrutura ao redor—os fluxos de energia pulsando, os sussurros da madeira sagrada vibrando em suas almas. Não estavam apenas atravessando a árvore. Ela também os atravessava.

    Zac, fascinado, passou a mão pela superfície do túnel. Era suave, mais macia que a mais delicada seda, mas ao mesmo tempo densa, repleta de vida. Havia algo familiar naquela textura, mas ele não conseguia dizer o quê.

    — Isso… me lembra alguma coisa — murmurou, como se tentasse pescar uma memória antiga.

    Dionísio, um pouco à frente, sorriu de canto.

    — Então significa que você está começando a entender.

    — Entender o quê?

    — Logo você saberá…

    Antes que Zac pudesse insistir na pergunta, sentiu uma súbita mudança na corrente que os carregava. O túnel expandiu-se, e uma luz dourada brilhou ao longe, como um portal para outro mundo.

    A cada segundo que passava, ele tinha a sensação crescente de que, ao emergir do outro lado, nada mais seria como antes.

    — Zac, tá curtindo? — perguntou Dionísio, com um sorriso malicioso, já se divertindo com a cena.

    — Isso é muito doido! Uma sensação boa e estranha ao mesmo tempo. É como se eu fosse um com essa planta! Dá pra saber exatamente onde você está, é como se estivéssemos conectados por fios invisíveis.

    — Pois é, ela disse que estamos passando por um tubo chamado xilema. Não faço ideia do que seja, mas ele nos leva pra cima, e quando descemos, a gente vai pelo tal do floema.

    — Xi, o quê? Que nome esquisito! O outro até vai, porque parece com “flor”. Acho que foi feito pra confundir.

    — Hahaha, verdade! Mas ó, outra coisa… como você foi tão rápido na hora de entrar? Eu pensei que você ia ter mais dificuldade.

    — Ah, você sabe como é, né? Pai é chato! Mas, falando sério, nem sei como aconteceu. Só vi uma gota caindo numa folha e, quando percebi, já estava dentro dessa coisa toda!

    Enquanto conversavam, o tubo começou a se estreitar e, de repente, uma voz suave surgiu, como se alguém estivesse sussurrando no vento:

    — Vocês estão chegando. Flora os espera.

    Eles se entreolharam, trocando olhares curiosos, tentando adivinhar quem seria a pessoa que estava falando com eles. Mas antes que pudessem responder, a mesma voz retornou, agora com um toque de mistério e diversão:

    — Jovens, sejam quem vocês realmente são. Não se preocupem. Ela é durona, mas só quer o bem de Urano. Só… tenham cuidado, ok? Eu vi tudo o que aconteceu, mas ainda tem coisas que não posso contar.

    Zac olhou para Dionísio com os olhos arregalados e, no fundo do peito, sentiu um arrepio que fez sua alma dar um pulo. Ele percebeu que a mensagem tinha sido direta e pessoal, como um convite para um grande mistério prestes a se revelar.

    O semblante de Zac mudou sutilmente. Seu olhar, antes curioso, tornou-se sério, estampando a preocupação que agora lhe tomava a mente. Pensamentos sobre o que poderia acontecer começaram a atravessar sua consciência, trazendo uma inquietação silenciosa.

    O canal por onde deslizavam estreitou-se um pouco mais, e, com um leve solavanco, tanto Zac quanto Dionísio sentiram os galhos se movendo ao redor, percorrendo toda a extensão lenhosa do túnel vivo. Cada vez que um pequeno galho se entrelaçava, o som reverberava como um sussurro da própria madeira, ecoando pelo espaço orgânico que os envolvia.

    À frente, uma luz começou a se formar, crescendo aos poucos conforme os galhos se retorciam. Seu brilho aumentava gradativamente, como se o próprio caminho estivesse se abrindo para revelar o destino que os aguardava.

    Um leve zumbido preencheu os ouvidos de ambos, um sinal inconfundível de que a viagem estava prestes a terminar.

    Embora toda essa travessia tivesse durado menos de dois minutos, parecia ter se estendido além do esperado. No entanto, esse tempo foi suficiente para que algo acontecesse. Pois, enquanto Zac e Dionísio percorriam esse caminho desconhecido, uma conversa paralela se desenrolava na diretoria da academia.

    — Potifha, quantas vezes preciso dizer que você não é mais um guerreiro? — A voz de Flora soou firme e cortante, ressoando pela ampla sala. — Você precisa agir como um professor. Ou quer que eu te lembre por que foi enviado para esta instituição?

    O homem diante dela abaixou ligeiramente a cabeça, suspirando pesadamente.

    — Peço desculpas, Flora. Acabei me excedendo com o garoto. Fazia tempo que não sentia isso… Uma sede de sangue tomou conta daquele momento.

    A diretora cruzou os braços e o encarou com severidade.

    — Sua didática já é alvo de muitas discussões. Sei que você acredita que eles precisam entender como funciona o sistema de morte, mas precisamos repensar essa abordagem.

    Potifha assentiu lentamente, refletindo sobre as palavras dela.

    — Entendo, Flora. Prometo que mudarei para o próximo semestre. Mas algo ainda não faz sentido para mim… Como aquela besta estava ali? Sei que meus métodos não são os mais convencionais, mas aquela aberração não deveria estar dentro da academia.

    Ele fez uma pausa, seus olhos estreitando-se como os de um predador prestes a atacar.

    — Algo precisa ser feito em relação àquele garoto. Desde que chegou, só tem causado problemas. A verdade é que aquele garoto é um monstro…

    Antes que pudesse concluir sua sentença, um brado ecoou pela sala, interrompendo-o bruscamente.

    — Foi por isso que me trouxe aqui, Flora? — exclamou Kyron ao ouvir o discurso inflamado de Potifha. — Para escutar essas baboseiras? Aquele jovem foi o único que viu alguém ser assassinado e, sem hesitar, se lançou lá embaixo. O único monstro que vi foi um professor estrangulando um animal indefeso!

    Potifha se levantou bruscamente da cadeira, avançando na direção de Kyron. Seu olhar estava carregado de fúria, mas Kyron permaneceu imóvel, sustentando o olhar com uma expressão de deboche e superioridade.

    Nesse instante, uma enorme flor azul surgiu entre os dois, crescendo do chão com rapidez impressionante. Suas pétalas brilhavam suavemente, enquanto raízes espessas se espalhavam pelo chão, entrelaçadas por espinhos afiados. O ar foi tomado por um aroma doce e levemente entorpecente.

    — Parem os dois. — A voz de Flora soou firme e inegociável. — Potifha, sente-se agora. Kyron, peço que fique quieto. Lhe trouxe aqui porque sei que será a melhor pessoa para a missão que vou designar.

    Ambos sentiram o peso da ordem. Conforme Flora falava, a flor liberava no ar hormônios sutis, capazes de induzir um leve estado de calma e sonolência.

    — Pois bem, agora que estão mais tranquilos, podemos prosseguir. Potifha, para que sua situação não se complique ainda mais, quero que envie uma carta para Apolo informando sobre o que aconteceu. Mas, em hipótese alguma, mencione o poder do garoto ou a besta que você viu.

    Potifha franziu a testa, sua expressão se tornando ainda mais severa.

    — Como assim? — questionou, desconfiado.

    — Se quiser continuar nesta instituição, faça exatamente o que estou ordenando. Além disso, na carta, mencione possíveis ataques do Submundo e peça para reforçarem a segurança.

    Potifha hesitou por um momento antes de continuar:

    — Mas e as crianças que estavam lá? Elas viram tudo o que aconteceu. Os boatos já devem estar se espalhando por Uranos.

    Flora manteve a expressão serena, como se já tivesse pensado em tudo.

    — Sei o que estou fazendo. Durante o ataque, lancei esporos soníferos sobre os alunos. Apenas três pessoas não foram afetadas: você, Zac e Dionísio. Para todos os outros, aquilo não passou de uma investida do Submundo.

    — Mas isso pode criar uma ruptura entre Uranos e Gaia! — Potifha retrucou, alarmado. — Podemos estar prestes a iniciar uma guerra por conta disso!

    Flora respirou fundo antes de responder:

    — Estou cuidando dessa situação. E é aí que Kyron entra. Vamos trabalhar juntos para evitar essa guerra. Mas, para isso, precisamos proteger esse garoto. Então, faça o que estou ordenando.

    Potifha cerrou os punhos, relutante, mas assentiu.

    — Certo, diretora Flora. Como não faço mais parte da guarda, não será um problema mentir para meu superior. Parece ironia, mas depois do que aconteceu no passado, a traição parece me cercar.

    Ele ergueu os olhos, sua voz carregada de um peso incomum.

    — Tenho um pedido a fazer. Aquele garoto precisa ser observado o tempo todo. Vocês não entendem o poder que ele possui. Se, com uma única fera, o estrago no passado foi gigantesco… imagine então três delas.

    — Como eu disse, estaremos protegendo esse garoto. Mas, por ora, o assunto está encerrado, pois o jovem está despertando. Então, envie logo a carta para Apolo. Muito obrigado pela compreensão, Potifha. Você está dispensado.

    No segundo seguinte, Zac e Dionísio foram arremessados para fora do canal, como se uma força invisível os cuspisse de volta à realidade. O mundo ao redor girou por um breve momento antes que sentissem o impacto suave em suas costas.

    No mesmo instante, a película d’água que os envolvia se rompeu com um estalo sutil, gerando uma leve pressão nos ouvidos de Zac. O som era estranhamente familiar, despertando uma lembrança esquecida.

    Por um breve momento, ele se viu deitado em uma praça, sob a sombra acolhedora de uma árvore. Era uma tarde qualquer, o céu pintado em tons suaves de laranja e rosa. Uma brisa morna acariciava seu rosto quando, de repente, uma gota d’água deslizou entre as folhas e caiu suavemente sobre sua testa.

    A sensação era a mesma.

    Ainda atordoado, Zac piscou algumas vezes, tentando distinguir realidade e memória. O chão sob seus pés parecia vivo, pulsante, como se o próprio solo os houvesse engolido e agora os devolvesse ao mundo. Ao seu lado, Dionísio respirava fundo, ajeitando-se com dificuldade, igualmente desorientado.

    Algo estava diferente.

    O ar ao redor parecia mais denso, carregado de umidade, como se a própria atmosfera tivesse mudado enquanto estavam dentro daquele estranho canal. O som distante de folhas farfalhando ecoava suavemente, mas não havia vento algum.

    Zac sentiu um arrepio percorrer sua espinha, ao olhar melhor ele percebeu que estava assentado, algo ou alguém estava lhe segurando.

    Eles haviam atravessado.

    Mas para onde, exatamente?

    Sem que tivessem tempo para questionar, um farfalhar repentino soou entre as árvores, seguido pelo ruído de passos apressados.

    Alguém se aproximava.

    E, no fundo de sua mente, Zac sentiu uma certeza inquietante: algo maior estava apenas começando.

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