Ao alcançar a porta, Derek se virou na direção por onde Amanda havia fugido. Sentia algo estranho, difícil de nomear — uma espécie de orgulho silencioso. Se ainda estivesse vivo, talvez estivesse chorando de felicidade.

    Lembrou-se das incontáveis vezes em que tentou salvar alguém e falhou. Mas, dessa vez, não. Dessa vez, alguém escapou. E isso bastava.

    Ergueu a cabeça com firmeza. Seu nariz, agora restaurado, se elevou no gesto involuntário de alguém que inspira o mundo ao redor.

    E suspirou — seu pulmão também havia voltado.

    E foi aí que tudo desabou.

    Em um instante, caiu de joelhos. Os olhos se tornaram completamente brancos. O fedor da podridão invadiu suas narinas com brutalidade, uma avalanche invisível que quase o fez desmaiar.

    Era como se o cheiro trouxesse à tona lembranças esquecidas — sensações amargas, ardentes, multiplicadas muitas vezes. Por um breve momento, Derek se arrependeu de ter recuperado o olfato. Não esperava que seria assim.

    Atordoado, jogou-se no chão, pressionando as narinas com força, numa tentativa desesperada de bloquear o odor insuportável.

    Quando os últimos raios de sol tocaram as paredes do hospital, ele já estava de pé novamente. Precisava continuar. A jornada não havia terminado. 

    Tapando o nariz, ele seguiu andando.

    Mas e enquanto a Amanda?

    Horas antes, assim que saiu da sala, Amanda correu instintivamente, impulsionada por puro terror. Não sabia se dos mortos-vivos que rondavam os corredores, ou da loucura que ameaçava engoli-la por completo.

    Enquanto avançava pela escuridão, tropeçando nos escombros, uma enxurrada de pensamentos a esmagava por dentro. O rosto de sua mãe surgia com o sorriso cansado e os olhos ternos.

    E, como fantasmas arrastando correntes, vinham também os rostos de todos que ela perdeu ali dentro. Lágrimas escorriam de seus olhos. A garganta queimava. O estômago roncava, seco e vazio. Ela não comia há dias, e a sede já fazia sua cabeça girar.

    Mesmo assim, seguia correndo. Mas o pensamento que mais a assombrava era o do morto-vivo que a ajudou.

    Ele não era como os outros. Havia algo nos olhos que parecia lúcido.

    “Ele entendeu o que eu disse…”, pensava, enquanto corria. “Ele não me atacou. Ele… me deixou fugir.”

    Isso a deixava ainda mais confusa. E assustada.

    Após um tempo, encontrou claridade no segundo andar. Havia uma janela destrancada, abriu com esforço e tentou descer pela lateral do prédio. Os braços, fracos de fome, mal sustentavam o próprio peso. No meio da descida, escorregou. O corpo caiu como um saco vazio.

    Na breve queda, abraçou a mochila com força, protegendo os remédios como se fosse um casulo.

    A queda foi amortecida por um arbusto, mas a dor veio forte. O osso da perna se deslocou com um estalo seco, e Amanda tentou gritar, mas não saiu som — não tinha forças para gritar. Chorou, mas não havia lágrimas. O corpo já não tinha mais nada a oferecer.

    Ainda assim, arrastou-se. Tentou andar. Mancou. E continuou, com os pensamentos embaralhados entre dor, medo e lembranças de tudo que havia perdido e do que ainda tinha.

    A cada passo, o mundo girava mais.

    Até que desabou.

    No chão frio, sem forças, Amanda caiu de lado, o rosto pressionado contra o asfalto. O corpo inteiro tremia. A dor na perna era pulsante, latejante, mas já começava a se misturar com um torpor estranho — como se a mente estivesse se desligando devagar, para poupá-la.

    A visão estava embaçada. Tudo girava. As cores do mundo pareciam lavadas, como se ela estivesse olhando através de uma vidraça suja.

    E então, entre borrões de luz e sombra, uma silhueta surgiu.

    Passos se aproximaram. Lentos e cuidadosos.

    Amanda tentou levantar o rosto, mas o corpo se recusava a obedecer. Apenas os olhos se moveram, pesados, e foi tudo o que conseguiu fazer.

    O vulto se agachou diante dela.

    Ela viu apenas os pés — botas escuras, firmes, sujas de terra e sangue seco. Um leve farfalhar de tecido, um joelho tocando o chão. Depois, sentiu uma mão tocar seu ombro com suavidade.

    A mente de Amanda tentou perguntar “quem?”, mas nenhuma palavra veio.

    A escuridão a envolveu por completo. E, então, tudo desapareceu.

    ✥—————✥—————✥

    Enquanto a noite engolia o céu e o hospital mergulhava em sombras espessas, Derek seguia resistindo. A escuridão avançava sem pressa, trazendo consigo o silêncio e o peso das horas.

    Nos corredores inferiores, o cheiro era ainda pior. O odor podre dos cadáveres parecia ter se impregnado nas paredes, denso como mofo antigo. A cada passo, tornava-se mais insuportável.

    Foi ali que Derek entendeu: não poderia mais tapar o nariz com as mãos. Não apenas era inútil — era perigoso.

    Em sua jornada, poderia encontrar mortos-vivos especiais que o obrigariam a usar as duas mãos.

    Sem alternativas, improvisou uma máscara com trapos sujos espalhados pelos corredores. Amarrou-os ao rosto com firmeza, tentando, como podia, se proteger daquele ar sufocante.

    E assim seguiria — ao menos até se acostumar com o cheiro. Se é que isso era possível.

    Só quando a aurora finalmente riscou o horizonte, atingindo os destroços com os primeiros raios dourados, é que encontrou a saída. Cambaleante, atravessou as portas quebradas.

    Minutos depois, Derek caminhava lentamente pelas ruas rachadas. Embora não sentisse, ele já estava feliz de poder ver o sol novamente, após muito tempo preso no hospital.

    Derek se sentiu aliviado por estar do lado de fora.

    Enquanto caminhava, pensava no que poderia ter acontecido com a jovem que havia salvado. Não encontrou rastros dela nos corredores, apenas mortos-vivos inquietos.

    As preocupações se diluíram por um instante, substituídas por um outro pensamento: se continuasse resgatando pessoas, acabaria virando um tipo de super-herói.

    “Deathman…”, pensou, rindo por dentro.

    Já afastado do hospital, decidiu retirar os trapos do rosto. Se pretendia sobreviver naquele novo mundo, teria que se acostumar com o cheiro.

    Assim que puxou a máscara improvisada, uma explosão de odores invadiu suas narinas de uma só vez.

    A mão subiu ao rosto por instinto, mas ele se forçou a resistir. Precisava suportar. Tirou a mão devagar. 

    Deu mais alguns passos e então algo inesperado aconteceu.

    O cheiro começou a mudar.

    Uma brisa leve trouxe consigo algo doce. O ar parecia mais fresco. Havia ali o perfume sutil de árvores, o cheiro suave da terra úmida e flores.

    Flores de verdade. Algumas brotavam entre as frestas da calçada, como se se recusassem a morrer.

    Derek inspirou fundo.

    Mas o fresco durou pouco.

    Um odor podre o atingiu como um soco no estômago. Recuou, cobrindo o rosto com a mão enquanto lutava contra a ânsia.

    À frente, um grupo de cinco mortos-vivos atravessava lentamente a rua. Suas formas disformes deixavam um rastro visível e fétido, como se o ar apodrecesse por onde passavam.

    Por um instante, Derek pensou em desviar e encontrar outro caminho.

    Mas não dava.

    Mesmo se recuperando aos poucos, ainda estava fraco. Sozinho, podia ser morto com facilidade. Fugir não era mais uma opção viável.

    Pegou os trapos e amarrou novamente no rosto. Apertando firmemente.

    E seguiu em direção ao grupo.

    Outros mortos-vivos isolados começaram a surgir pelos cantos saindo de becos — destroços e edifícios abandonados.

    Aos poucos, se agruparam, formando uma horda.

    Quanto mais mortos-vivos vinham, mais o cheiro se intensificava, passando através da máscara de trapos de Derek como se ela não existisse.

    “Me arrependo seriamente de ter recuperado meu olfato.”

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