Em algum lugar, no meio da cidade devastada, Amanda havia sido levada para um acampamento subterrâneo.

    Ficava nos túneis de uma antiga estação de metrô, agora transformada em abrigo improvisado para os poucos que ainda resistiam.

    Os acessos principais tinham sido bloqueados com pilhas de destroços, barras de ferro e placas de concreto quebradas, deixando apenas uma pequena abertura — uma passagem estreita usada por patrulhas que saíam em busca de suprimentos.

    Dentro do acampamento, o cenário era de adaptação forçada. As barracas de lona colorida ocupavam os vãos onde antes passavam trens. Algumas lojas antigas haviam sido abertas novamente, não para vender, mas para sobreviver: uma delas servia como ala médica, outra armazenava alimentos, outra armas e ferramentas.

    Lá fora — no corredor principal — crianças brincavam com pedaços de plástico e cordas, tentando esquecer a fome. Pessoas dormiam no chão, enroladas em cobertores puídos. Havia vozes sussurradas, conversas murmuradas entre os que ainda tinham forças para conversar.

    Na ala médica, o cenário era mais silencioso e pesado.

    Colchonetes velhos estavam dispostos lado a lado, ocupados por corpos frágeis — feridos, febris, esqueléticos. Alguns gemiam baixo. Outros apenas olhavam para o teto rachado, vazios, derrotados. Vários estavam deitados no chão mesmo, sem espaço nos colchões. Sentavam-se nos cantos, abraçados às próprias pernas, lamentando suas dores e as perdas.

    O lugar era iluminado por lâmpadas fracas, penduradas em fios improvisados. A luz oscilava de tempos em tempos, piscando como se estivesse prestes a apagar de vez.

    Foi ali, no fundo da ala médica, que Amanda repousava.

    O corpo enfaixado, envolto em gaze e lençois finos. Dormia, mas o rosto transpirava agitação.

    Ela se mexia, suava e o cenho franzido. Sonhava com flashes do que lhe aconteceu.

    O hospital. O escuro dos corredores; gritos. Sangue. Uma queda. A dor aguda na perna. O mundo girando. Os olhos dela tentando focar alguém se aproximando. E Derek a encarando com os seus olhos frios com um brilho verde neles.

    Amanda abriu os olhos de repente, ofegante, o peito subindo e descendo rápido. O suor escorria pela testa. Ela olhou ao redor, assustada, sem reconhecer o lugar de imediato.

    Em volta, os inúmeros feridos.

    — Mas como eu… — tentou falar, mas foi interrompida por uma tosse violenta.

    Enquanto ainda tossia, um homem vestindo uma jaqueta de couro desabotoada se aproximava dela.

    Chegando próximo a ela, se agachou.

    — Veja só quem despertou. Se não é nossa pequena raposa fujona. — disse o homem.

    Com olhar fraco, Amanda olhou para seu rosto e o reconheceu. Seus olhos se encheram de lágrimas ao vê-lo.

    Era Vinícius. Amigo de Gerald e de sua família.

    Amanda estava prestes a dizer algo, mas Vinícius a puxou para perto e a envolveu num abraço apertado.

    Ela arregalou os olhos, surpresa.

    — Não precisa dizer nada. Tá tudo bem. Tudo bem…

    Amanda se entregou ao abraço, agarrando-se ao tronco dele. As lágrimas vieram com força. Ela esfregou o rosto encharcado sobre o ombro de Vinícius, enquanto ele acariciava sua cabeça com ternura.

    — Tá tudo bem… Bota pra fora.

    No meio daquele momento de afeto, um homem surgiu na entrada da ala médica. Alto, postura ereta, e olhos que julgavam sem precisar de palavras. Vestia um casaco escuro, impecável, com os botões fechados até o pescoço. Mas o que mais chamava atenção era a cicatriz que cortava seu rosto em diagonal — do alto da sobrancelha direita até o queixo.

    Era Kael, o líder do acampamento subterrâneo.

    Com um olhar severo, varreu o lugar com os olhos até avistar Amanda. Sem perder tempo, caminhou na direção dela.

    Ao se aproximar, tossiu propositalmente — um som seco e calculado que cortou o clima como uma lâmina.

    Vinícius se levantou de imediato, colocando Amanda para trás, protegendo-a com os braços. Deu alguns passos à frente e, com um tom calmo, mas firme, pousou a mão sobre o ombro de Kael e sussurrou, bem próximo:

    — Ela acabou de acordar… Por favor, dá um tempo pra ela.

    O Kael olhou devagar para a mão de Vinícius em seu ombro. Seus olhos endureceram, gelados. Um olhar que parecia intimidar sem esforço.

    — Não temos tempo — disse, retirando a mão de cima de si com um gesto brusco e passando direto.

    Parou diante de Amanda.

    Ela levantou o olhar devagar, os olhos ainda marejados.

    A luz fraca do teto estava bem atrás dele, ofuscando parte de sua visão. Tudo que via era a silhueta rígida de um homem acostumado a dar ordens.

    — Vamos direto ao ponto — disse ele, em tom seco. — Quero que me conte tudo sobre os últimos dias.

    Amanda começou falando da situação crítica que o acampamento se encontrava.

    Os medicamentos estavam no fim. Antibióticos, analgésicos, gazes, soro — tudo se tornava escasso.

    Os feridos se acumulavam a cada dia, sem qualquer chance real de recuperação.

    Entre eles, estava sua mãe. A doença havia se agravado de forma irreversível. Ninguém precisava dizer em voz alta — todos sabiam que seus dias estavam contados.

    Mesmo assim, começaram a circular rumores. Histórias sobre um hospital ao norte do acampamento. Diziam que lá havia centenas de remédios, todos com a validade estendida, suficientes para tratar todos os sobreviventes.

    Com o passar dos dias, esses rumores se intensificaram, chegando aos ouvidos de Kael.

    Ele decidiu convocar todos e pôs-se a esclarecer os boatos que percorriam os túneis.

    — Tenho ouvido muita conversa sobre esse hospital por perto. E acreditem em mim: não há remédios lá. Só o que encontrarão são dezenas de mortos-vivos apodrecendo nos quartos. Acreditamos nesses rumores uma vez… e perdemos muitos dos nossos.

    As palavras frias dele calaram os questionamentos de muitos — mas não de todos.

    Em uma certa noite, Amanda, que estava responsável pela limpeza dos corredores no dia, viu seu tio, Gerald, se esgueirando em direção a um dos cômodos de uma antiga loja. Antes de entrar, ele olhou para trás, atento, certificando-se de que não estava sendo seguido.

    Amanda se escondeu rapidamente atrás de uma barraca improvisada montada ali perto.

    Sem que percebesse, havia um homem dormindo sob cobertas. Amanda pisou no pé dele, perdeu o equilíbrio e caiu sobre seu corpo.

    O homem acordou aos berros, tomado pela fúria. 

    — Ei! Quem é você e por que entrou aqui?!

    Amanda se queixou de dor na cabeça, levantou-se rapidamente e olhou para a entrada. Seu tio já não estava mais ali. A porta do cômodo havia sido fechada.

    Sem perder tempo, ela correu até lá, ignorando o homem da barraca que a xingava de todos os nomes possíveis. 

    — Ei! Volte aqui e peça desculpas! — gritou ele, erguendo o punho. — Humpf… esses jovens de hoje em dia — resmungou.

    Já próxima à porta, Amanda olhou em volta para se certificar de que não estava sendo vigiada. Então, bem devagar, encostou a orelha contra a madeira, tentando ouvir algo.

    Logo captou uma frase abafada: — Vamos no hospital…

    Seu coração acelerou.

    As vozes continuaram. Falavam sobre saírem durante a noite, quando os mortos eram menos ativos, e invadirem o hospital.

    — Vai dar certo. Antigamente eu trabalhava como enfermeira por lá. Conheço aquele lugar como a palma da minha mão — disse uma mulher.

    — Já está tudo planejado. Até seu irmão topou em ir — completou um homem, forçando um sorriso confiante.

    Gerald suspirou. — Meu irmão não passa de um preguiçoso e medroso. Aceitaria qualquer coisa só pra fugir das obrigações — respondeu, com desdém.

    O sorriso do homem vacilou, mas ele rapidamente forçou outro. — Tenho certeza de que, se você for, como nosso líder, tudo vai…

    — Não — cortou Gerald, direto.

    Todos se entreolharam, surpresos com a negativa.

    — Mas e a sua cunhada? Ela está… — o homem tentou insistir, escondendo o desespero atrás do sorriso tenso.

    Gerald suspirou, encerrando o assunto. — Se isso é tudo, vou embora.

    Não havia mais argumentos. Um a um, os presentes abaixaram a cabeça em sinal de derrota. Alguns cerravam os punhos; outros deixavam a dor escorrer silenciosa pelos olhos.

    Ao abrir a porta, Gerald deu de cara com Amanda. Ela mantinha o rosto baixo, os punhos fechados. — Amanda?! — exclamou ele, surpreso.

    — Eu vou… — sussurrou ela, quase num gemido.

    — O quê?

    Amanda ergueu o rosto. Havia nele uma mistura de fúria e determinação. As lágrimas ameaçavam cair. — Eu vou nessa viagem! — gritou.

    Gerald não conseguiu disfarçar o espanto. Mas ao encarar o olhar da sobrinha, soube: não havia palavra no mundo que a fizesse mudar de ideia.

    Ele suspirou e fechou os olhos por breves segundos. — Está bem.

    ✥—————✥—————✥

    Antes do apocalipse, Gerald era um soldado de alta patente no exército. Graças a isso, aprendeu inúmeras maneiras de sobreviver e lutar.

    Fosse com armas de fogo, armas brancas ou em combate corpo a corpo, ele dominava o instinto de quem já viu o pior do mundo.

    A maioria no acampamento nunca havia lutado, nem deixado os túneis. Por isso, em segredo, Gerald passou a treiná-los.

    Não havia tempo para aprimoramento físico, apenas para ensinar o essencial: sobreviver lutando.

    Durante três madrugadas, antes do nascer do sol, praticaram com tacos de beisebol, bastões, pés de cabra, facões e facas.

    Aprenderam truques básicos: se manter abaixados; atacar sem fazer barulho; e mirar nas partes certas dos mortos-vivos para eliminá-los com um único golpe.

    — Acima de tudo… — disse Gerald, olhando cada um nos olhos — não se separem. Não importa o que aconteça. Nunca. Se um se perde… o grupo morre.

    Amanda prestava atenção, mas sua mente estava em outro lugar.

    Dois dias depois, antes da missão, ela passou pela barraca improvisada onde sua mãe dormia. Aproximou-se em silêncio, como se o tempo tivesse desacelerado.

    A mãe, frágil, respirava com dificuldade — mas havia paz em seu rosto. Um leve sorriso, talvez sonhando com tempos melhores.

    Amanda se ajoelhou ao lado dela, segurando sua mão fria. Queria guardar aquele momento.

    Sentiu uma presença ao seu lado.

    — Vai ficar tudo bem, Amanda — disse Gerald, ajoelhando-se ao seu lado. — Prometo que traremos algo que a ajude. E te dou minha palavra: você vai voltar com os remédios.

    Ela apenas assentiu, em silêncio. Gerald apertou seu ombro — firme e silencioso.

    Ainda durante o dia, o grupo partiu. Marchavam em silêncio pelo norte, onde se dizia estar o hospital.

    A tensão era espessa. Logo apareceram os primeiros mortos.

    Três. Lentos, arrastando os pés pelo asfalto seco.

    Gerald sinalizou. Amanda agarrou o bastão com as duas mãos. O coração batia com força.

    Ela avançou. Um dos mortos virou o rosto e Amanda o acertou com tudo no crânio. O sangue espirrou em seu rosto. Ela parou. Olhou as mãos e viu o sangue.

    Por um instante, congelou.

    — Amanda! — gritou uma das mulheres.

    Ela piscou, respirou fundo, limpou o rosto com a manga da blusa e seguiu em frente.

    Mais à frente, Lúcio caminhava reclamando, como sempre.

    — Isso é besteira. Eu sou bom nisso — disse, após quase tropeçar ao bater em um morto com a marreta. — Viram isso? Um só golpe!

    Gerald revirou os olhos.

    Lúcio chutou algo metálico. Uma garrafa. Cheirou, sorriu como uma criança.

    — Haha! Pinga!

    — Jogue isso fora. Estamos em missão — ordenou Gerald.

    — Cuida da tua vida! — respondeu Lúcio, erguendo o dedo do meio. — Melhor isso do que essa merda.

    Gerald suspirou e o ignorou. A missão era mais importante.

    O hospital apareceu ao longe, com sua fachada quebrada e vegetação escalando as paredes rachadas.

    Quatro mortos vagavam pela sala de espera.

    Gerald ergueu o punho em sinal de silêncio. Com movimentos contidos, o grupo avançou com precisão. Cada morto-vivo foi eliminado com golpes secos e certeiros. Amanda participou — desta vez, sem hesitar nem por um segundo.

    Mas então veio o cheiro.

    A podridão do hospital era sufocante, como se o ar estivesse morto também. Amanda quase vomitou.

    Lúcio, por outro lado, não resistiu. Vomitou ali mesmo, entre palavrões.

    — Vamos esperar escurecer. À noite, eles se movem menos. Mas ainda são perigosos — disse Gerald.

    Esperaram próximos à entrada. Lanternas prontas. Baterias novas. O plano traçado.

    — Escutem — disse Gerald. — Lá dentro, tenham o dobro de cuidado. Se tiverem medo, sintam. Mas não parem. Nunca parem.

    Amanda fechou os olhos e apertou os punhos. Estava pronta.

    Entraram. Um passo de cada vez.

    Amanda contou que perderam muitos amigos nos andares. Perderam Lúcio. Mas encontraram muitos medicamentos

    Até que, cercados, só restaram Gerald e Amanda.

    Foi quando ela descobriu: Gerald havia sido infectado.

    Ela tentou convencê-lo a vir, mas já era tarde. Os sintomas estavam visíveis.

    Ele a fez ir. Sozinha.

    — Quando eu já estava longe… ouvi um único disparo — disse Amanda. Lágrimas escorreram de seus olhos cansados.

    Vinícius queria confortá-la, mas não estava apto para isso. Ele também sentia a dor de perder o seu amigo de longa data. Vinicius virou o rosto sentindo a tristeza, se virou da costa e cobriu o rosto com uma das mãos, lágrimas escorrendo entre os dedos.

    Amanda contou que não conseguiu fugir de imediato. O caminho de volta já estava infestado.

    Correu até onde pôde. Escondeu-se numa sala infantil. Ficou ali por dias. A fome veio. A sede também. Não havia nada.

    — Foi aí que eu… — ela hesitou. Pensou em contar sobre o morto-vivo que a ajudou. Mas achou que a chamariam de louca. — Foi aí que juntei coragem… e saí daquela sala.

    Kael a encarou com desconfiança após essa troca de frase súbita.

    Ela correu. Chegando no segundo andar, ela estava encurralada. Sem poder se defender pulou. 

    Caiu em um arbusto e acabou machucando a perna.

    Mesmo assim, se arrastou, querendo viver. Queria ver sua mãe. Até desmaiar, aos pés de um homem desconhecido.

    Um silêncio se pôs sobre essa ala. Os pacientes que agonizavam de dor, acabaram ouvindo a história dela. Muitos deles compartilhavam da mesma dor de perder alguém. Mas nenhum passou pelo mesmo.

    Kael a encarou com olhar severo.

    — Certo. Isso era tudo que eu precisava saber — disse ele. — Ainda assim, será punida. Os outros já não estão entre nós. Você pagará pelos pecados deles também.

    Amanda apenas assentiu com a cabeça baixa.

    Vinícius continuou em seu canto em lamento.

    Kael se virou, mas antes de sair, lançou mais uma sentença:

    — Ah, sim. E quanto a quem te socorreu… devia ser grata. Foi o único que teve forças e vontade para ir em busca de você e Gerald — disse, lançando um olhar de canto para Vinícius.

    Ele seguiu em direção à porta, seus passos ecoando com rigidez no silêncio da ala.

    Mas antes que cruzasse a saída, uma figura passou por ele em disparada — era a mãe de Amanda, movida por puro desespero. O rosto pálido, os olhos arregalados de angústia.

    Filha! — gritou, a voz embargada de emoção.

    Amanda ergueu lentamente o rosto, as pupilas dilatadas de espanto. 

    Mamãe… — murmurou, como se não acreditasse no que via.

    A mulher correu até ela e se ajoelhou ao seu lado. As duas se agarraram com força e choraram juntas.

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