Capítulo 26 - Sangue no ar
Alguns dias passaram desde o incidente. Amanda já conseguia andar, mesmo mancando, e seu braço ferido agora estava imobilizado por uma faixa que passava pelo pescoço. Os curativos ainda cobriam parte de seu corpo, mas ela insistiu em ir até a sala do líder. Precisava encarar as consequências.
Ao chegar diante da porta, bateu duas vezes. A voz firme do líder soou lá de dentro:
— Entre.
O cômodo estava bem arrumado, quase como um escritório antigo resgatado de outro tempo. Livros nas prateleiras, uma mesa limpa, e o homem que decidia os destinos de todos ali sentado em sua cadeira, à espera.
— Sente-se — disse ele, apontando para a cadeira à sua frente. Amanda obedeceu em silêncio, sentindo a tensão crescer a cada segundo.
O líder cruzou os dedos sobre a mesa e começou:
— Pensei muito sobre o que você fez — sua voz era baixa, mas carregada de peso. — Suas ações poderiam ter custado a vida de muita gente. Se os mortos tivessem invadido o acampamento assim que aquela passagem foi aberta — ele não terminou a frase. Amanda manteve os olhos baixos, sentindo o peso da culpa esmagar seu peito.
O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Um vazio frio e implacável, como se o próprio acampamento estivesse prendendo a respiração. Amanda esperava o pior.
Então ele continuou:
— Mas também houve um lado bom. Os remédios que você trouxe ajudaram muita gente. Foram divididos e já fizeram a diferença na recuperação de vários membros do acampamento.
Amanda ergueu ligeiramente os olhos, surpresa. Não esperava ouvir isso.
— Ainda assim — ele fez uma pausa e suspirou — você terá que ser punida.
Ela firmou a mandíbula, esperando uma sentença pesada.
— Por cinco semanas — disse o líder, com voz firme — você será responsável pela limpeza de todos os corredores do acampamento. Sem folgas. Sem ajuda. E isso inclui os banheiros.
Amanda arregalou os olhos por um momento, surpresa. Diante da gravidade do que havia feito, ela imaginava algo muito pior. Talvez o isolamento ou expulsão.
Ela então levantou o rosto por completo e encarou o líder. Ele a olhava com uma expressão severa, mas havia ali uma ponta de algo diferente — talvez respeito, ou reconhecimento.
Amanda assentiu com a cabeça, contendo as emoções que se formavam em sua garganta.
— Obrigada — disse ela, com sinceridade.
E quanto a Derek.
Dias antes, em meio à horda…
Derek estava sofrendo com o mal cheiro.
Era tão forte que parecia cortar suas narinas com lâminas invisíveis. O próprio ar parecia podre. Mas ele sabia que precisava se acostumar. E a melhor forma era encarar de uma vez.
Com um impulso de coragem estúpida, puxou os trapos do rosto.
Um grande erro.
Seus olhos se arregalaram. O fedor o invadiu com a força de uma explosão, como se inflasse seu cérebro com gás tóxico. O que sentia antes, com o pano, era uma amostra gentil. Agora era cru, brutal e venenoso.
Sua visão embaçou em um segundo. Tudo ficou branco, depois escuro. Ele caiu de joelhos. Seu corpo começou a se contorcer como se tivesse sido eletrocutado.
Pensamentos embaralhados gritavam em sua mente: pare, pare, pare agora!
Suas íris verdes começaram a clarear, quase desbotando. O desespero crescia à medida que a escuridão tomava conta de sua visão.
Tentou levantar o braço para tapar o nariz, mas seus membros estavam lentos, como se pertencessem a outra pessoa.
Um gemido rasgou sua garganta, alto o suficiente para se destacar entre os grunhidos dos mortos.
Um morto-vivo anormal, empoleirado em um poste, virou a cabeça na direção dele.
Com esforço sobre-humano, Derek finalmente conseguiu cobrir o nariz com a mão.
O mundo voltou aos poucos: visão, controle, raciocínio. Ele amarrou os trapos de volta ao rosto o mais rápido que pôde. Seu corpo parecia inteiro, mas sua mente estava exausta, como se tivesse corrido por horas.
Suspirou por dentro.
“O que foi aquilo?”
Sentiu uma presença. Algo tomando o controle do seu corpo, contrariando suas ordens, como se fosse guiado por outra mente. Era ele, mas não era. Como se algo tentasse usá-lo como marionete.
“Eu senti aquilo… mas como? Por quê? Parecia que eu não era mais o dono do meu corpo.”
Mil perguntas surgiram, nenhuma resposta.
Mesmo sem precisar respirar, o ar ainda passava por suas narinas. Seu olfato, recém-recuperado, era como um sensor bruto, ligado direto ao cérebro. E aquele cheiro era como veneno puro. Não importava se ele prendesse a respiração, entraria por qualquer canal e causaria incômodo.
Derek concluiu que seria melhor tentar de novo, mas devagar. Se dominasse o próprio olfato, talvez pudesse evitar outro colapso.
Olhou em volta, buscando algum espaço livre onde pudesse se concentrar. Mas tudo o que viu foi um mar de mortos-vivos, espalhados por todos os cantos. Tomavam ruas, becos, até o interior das lojas.
Não havia para onde ir. Só restava seguir em frente, às cegas.
Quando se virou para continuar, algo agarrou seu braço com força.
Derek se virou, alarmado e congelou.
Era o morto-vivo anormal que estava empoleirado no poste. Agora, diante dele. Sem emitir som, sem hesitar, puxou o braço de Derek com um único movimento brutal, tentando abocanhá-lo.
O espaço era apertado demais para lutar. Derek entendeu, num piscar de olhos, que aquele poderia ser seu fim.
“O quê…?”
Mas o inesperado aconteceu.
Os próprios mortos o ajudaram.
A multidão que se apertava empurrou o anormal de volta, esmagando-o entre seus corpos em putrefação. Ele foi forçado para trás, prensado, sem conseguir avançar.
Derek não pensou duas vezes. Recuou.
Depois de se afastar, parou e tentou pôr os pensamentos em ordem.
“Que susto do caralho!”
Tinha esquecido que, mesmo tendo recuperado o olfato, os perigos daquele mundo estavam longe de acabar.
Mas no meio de sua quase morte, algo chamou sua atenção.
Quando estava próximo, Derek sentiu um cheiro incomum.
Não era o fedor habitual de carne apodrecida ou sangue coagulado. Era sutil, quase tímido, escondido entre os horrores do ar. E, surpreendentemente, era agradável. E vinha dele.
Pensou na possibilidade de os mortos-vivos anormais terem um cheiro diferente dos demais.
Lembrou das lutas anteriores, onde esses anormais sempre o reconheciam quando ele caminhava próximo.
“Talvez… se eu dominar isso… vou conseguir evitá-los. Ou até mesmo caçá-los.”
Fechou os olhos e se concentrou. O cheiro era sua única pista.
“Cheiro de mortos. De lixo. Sangue. Flor? Não, não é isso. Achei.”
Era o cheiro do anormal.
Mas não vinha só de um lugar. Mas de cinco direções diferentes.
“Cinco deles? Estão espalhados por aqui? Mas primeiro, foco no mais próximo.”
Guiado pelo olfato, Derek avançou com cuidado, tentando não atrair atenção. Se esgueirava por entre os mortos, desviando de braços soltos e corpos trôpegos.
Até que abriu os olhos e viu.
Lá estava ele. Preso na multidão, tentando avançar, os olhos cravados em Derek, selvagens e famintos.
Ali, não havia chance de combate corpo a corpo. Seria suicídio.
Sem hesitar, Derek sacou sua arma, firmou a mira e atirou. Um único disparo.
Com o recuo, a arma se soltou de sua mão e caiu entre os demais mortos-vivos. A bala atravessou a cabeça do anormal e o corpo tombou.
Mas no mesmo instante, algo mudou.
O fraco aroma começou a se espalhar pelo ar, vindo do corpo abatido. Derek o sentiu com força. Era bom. Atrativo. Quase viciante.
Sentiu um leve impulso de ir até ele. Como se o corpo ansiasse por aquilo.
“Será que… eu devo?”
Pensou em se aproximar e devorar o corpo.
Mas então lembrou: a arma.
Ela havia sido arrancada da sua mão pelo recuo e agora estava no chão, logo adiante. Precisava recuperá-la antes que se perdesse entre os mortos.
Assim que se virou para ir até ela, o aroma já havia se espalhado.
Os mortos começaram a se agitar. Viraram a cabeça. Farejaram. E como abutres famintos, foram para cima do corpo do anormal.
Derek se jogou para frente, pegou a arma e recuou, com os mortos-vivos esbarrando nele enquanto avançavam.
Ao virar, a cena à sua frente era grotesca.
Os mortos o devoravam. Rasgavam o anormal em pedaços, como se estivessem famintos há anos.
E Derek observou o corpo sendo despedaçado.
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