O som do disparo ecoou pelas ruas infestadas, se destacando entre o som dos inúmeros mortos-vivos e fazendo os vigias se enrijecerem. Olhos atentos varriam cada canto, buscando qualquer sinal de sobreviventes.

    Agachado atrás da vidraça de uma loja abandonada, Derek observava em silêncio. Sabia que sua ação provocaria essa reação.

    A última variante que consumiu havia aprimorado sua visão. Agora, mesmo daquela distância, enxergava com nitidez impressionante.

    Dada a situação, Derek sabia que iria ter que esperar, até porque, um morto-vivo saindo de uma loja trancada sozinho levantaria suspeitas e ele poderia morrer pelos rifles dos vigias.

    Felizmente, ele não tinha pressa. Tinha todo tempo do mundo.

    Sozinho, deixou a mente vagar. Pensava em Asha. Em tudo o que ela disse. Em tudo o que mostrou. Era difícil acreditar que aquilo tudo fosse apenas alucinação. Ele sentiu cada toque, cada emoção. Era real.

    Olhou para suas mãos. Tocou-as, tentando reviver a sensação de quando estava com ela. Mas tudo o que encontrou foi o frio da realidade.

    As horas passaram. A luz alaranjada do fim de tarde atravessava a vidraça, tingindo os destroços com um brilho melancólico. Os vigias começaram a recolher seus equipamentos, preparando-se para o descanso.

    Derek se levantou lentamente. Recolheu sua faca e a arma. Ao verificar as munições, percebeu que o bolso estava rasgado. As balas haviam caído. Vasculhou cada canto da loja, mas não encontrou nenhuma.

    Frustrado, socou a vidraça. O som seco reverberou no silêncio. Restavam apenas quatro munições na arma.

    “Vou ter que fazer elas valerem”, pensou ele, ativando a trava e a guardando na cintura.

    Com a chegada da noite, envolto pela fraca luz da lua e cercado por milhares de mortos-vivos, Derek enfaixou o rosto para abafar o cheiro e saiu da loja, misturando-se aos demais.

    ✥—————✥—————✥

    No acampamento Alvorecer, a vida seguia seu curso.

    Luzes improvisadas iluminavam as ruas de terra. Crianças corriam entre barracas, cachorros latiam, e o som de um pequeno riacho que atravessava o meio da cidade trazia tranquilidade aos seus habitantes.

    Damon caminhava com dois colegas de equipe. Tinham sido afastados temporariamente pela líder. Um deles resmungava:

    — Aquela vaca nos tirou do posto como se fôssemos lixo.

    Damon riu, balançando a cabeça.

    — Encarem como férias. Eu tô achando ótimo. Vocês deviam fazer o mesmo.

    Uma mulher passou por eles. Os dois colegas assobiaram, chamando-a de “delícia” e “gracinha”. Damon apenas sorriu, sem se envolver.

    — Vocês não têm jeito mesmo — disse, rindo baixo.

    Eles continuaram conversando até se despedirem. Damon seguiu caminhando até se deparar com uma pequena fila diante do centro de ouvidoria.

    Ergueu as sobrancelhas e sorriu de canto. Furou a fila sem cerimônia, ignorando os resmungos. Lá dentro, Frank — um antigo amigo — atendia uma senhora idosa.

    — Faz tempo que não te vejo, Frank — disse Damon, interrompendo.

    Frank olhou para ele com um sorriso forçado, levantou-se da mesa e ajudou a senhora a se retirar, dizendo que marcaria a conversa para outro dia.

    Virou-se para Damon e abriu os braços, fingindo estar feliz com a visita.

    — Damon… sempre direto ao ponto.

    Damon piscou e sorriu discretamente.

    — Bem, o que posso dizer? Esse sou eu.

    Os dois se cumprimentaram com um aperto firme de mãos.

    — Sinto falta de você nos negócios. Devia voltar — disse Damon, com os olhos fixos nos de Frank, sorrindo.

    O sorriso de Frank desapareceu.

    — Não. Eu devo muito a você, pela minha vida. E vou pagar. Mas não daquele jeito.

    Damon permaneceu em silêncio por um momento. Frank continuou:

    — Mas fique tranquilo. Não vou abrir o bico. Só… não conte comigo.

    O sorriso de Damon se desfez. Ele continuou calado.

    — Mas, em todo caso, você devia tentar algo como isso aqui — disse Frank, apontando para o centro da sala. — Talvez goste.

    — Não, não. Acho que já é tarde pra mim. Não me encaixaria aqui — respondeu Damon.

    Frank sorriu com os lábios.

    — Você diz isso sem nem tentar? Não me parece o Damon que conheci há tantos anos — disse, colocando a mão sobre o ombro de Damon. — Vamos ver se consegue. Tudo que tem que fazer é ouvir o que eles dizem, anotar e dizer que a líder vai fazer o possível pra resolver a questão. E aí, consegue, amigo?

    Damon abaixou o olhar e esfregou a nuca, sentindo o peso da confiança que lhe era depositada. Depois ergueu os olhos e disse:

    — Não sei não, cara. Eu—

    — Tarde demais, fui — disse Frank, saindo da sala e fechando a porta.

    Damon ficou sem palavras por um instante. Logo, deixou escapar uma leve risada.

    “Amigo de cu é rola, filho da puta”, pensou, escondendo a raiva com um sorriso forçado.

    Suspirou.

    “Fazer o quê, né? Já que tô aqui, vou ver o que esses vermes preguiçosos têm pra reclamar. Mas depois eu acabo com você, Frank”, pensou, apertando os punhos.

    Enquanto isso, na praça da cidade.

    Apesar dos tempos difíceis, o lugar ainda pulsava com vida. Em cada canto, grupos de colegas, amigos e conhecidos conversavam e interagiam, tentando manter um ar de normalidade.

    Mas a vigilância permanecia rígida. Guardas patrulhavam cada rua, atentos a qualquer sinal de invasão dos mortos-vivos. Nos muros de grades que cercavam a cidade, homens perfuravam os crânios das criaturas que se amontoavam em pequenos grupos. Em cada torre de vigia, duas sentinelas se revezavam, garantindo máxima atenção.

    No centro da praça, Fernanda — líder geral do acampamento — conversava com Mauro, responsável pela distribuição de alimentos, e Sebastian, responsável pela agricultura, pecuária e avicultura.

    — Senhora Fernanda — começou Mauro, entregando-lhe um relatório com expressão preocupada. — Nossos estoques não estão acompanhando o número crescente de sobreviventes que temos abrigado.

    Fernanda, com olheiras profundas que denunciavam noites sem descanso, fixou o olhar no documento.

    — E não é só isso, chefa — acrescentou Sebastian, enxugando o suor da testa. — As terras não produzem como antes. Os fertilizantes já não surtem efeito. Nossos animais estão adoecendo em massa. Só na última semana, perdemos duas vacas e dez galinhas. Conversei com a Beatriz, e ela relatou que algumas pessoas também estão adoecendo… algumas até morreram. Acho que a água está contaminada.

    O silêncio de Fernanda pesou por alguns instantes. Os problemas se acumulavam rápido demais, e organizar os pensamentos parecia impossível. Ela suspirou fundo.

    — Essa é uma situação delicada demais para discutirmos aqui, com tanta gente por perto — disse, em tom firme.

    Mauro e Sebastian olharam em volta. Algumas pessoas já os observavam, cochichando entre si. Antes que tentassem se desculpar, Fernanda ergueu a mão, interrompendo-os.

    — Não, está tudo bem. Vocês só cumpriram o que pedi. Vamos tratar disso amanhã. Por enquanto, avisem a todos sobre a água. Até resolvermos, que a fervam antes de beber. Sei que é trabalhoso, mas deve nos manter seguros.

    Sem esperar resposta, Fernanda se afastou apressada. Mauro e Sebastian a seguiram com os olhos, sentindo o peso do fardo que ela carregava sozinha.

    No centro de ouvidoria.

    Damon estava sentado à mesa, exausto. Durante horas, ele atendeu pessoas fingindo se importar, enquanto por dentro sentia repulsa pelas reclamações constantes. Para ele, era absurdo que reclamassem de coisas “básicas”: o corte de energia às vinte e uma horas — necessário para economizar recursos destinados às defesas — ou a pouca comida que recebiam.

    Depois de ouvir sua décima primeira queixa, não aguentava mais. Fechou a porta e permaneceu em silêncio por alguns instantes, sem chamar o próximo. Aproximou-se da entrada e a abriu apenas o suficiente para espiar. Do lado de fora, uma fila enorme se estendia pelo corredor.

    “Eu te mato, Frank”, pensou Damon, enfurecido.

    Sem paciência, desanimado, deixou escapar:

    — Próximo.

    A porta se abriu. Damon se surpreendeu ao ver quem era, forçando um sorriso sádico.

    Era Madalena — a mulher do falecido Jorge — um explorador de recursos que morreu em expedição. 

    Ela entrou com o olhar baixo, evitando encarar Damon. Quando finalmente levantou os olhos e o viu, um arrepio percorreu seu corpo. A lembrança do que ele havia cochichado semanas atrás voltou como uma lâmina fria:

    “O papai Pig virou banquete dos canibais. E, se você não sair da minha frente, a mamãe Pig e os filhotes vão ter o mesmo destino.”

    Damon sorriu de canto e pensou: 

    Isso vai ser interessante.”

    Tremendo, ela tentou recuar. — Eu… eu volto outra hora…

    — Entra logo, sua porca maldita — disparou ele, sem paciência.

    A mulher gaguejou, incapaz de articular direito as palavras.

    Damon não se conteve. Enquanto analisava os registros, deixou escapar pequenas risadas, lembrando-se do que havia sussurrado a ela dias atrás.

    — Então… o Jorge tem estado saudável esses dias? — provocou, carregando a voz de sarcasmo.

    Madalena estremeceu. Nervosa, não conseguiu encará-lo. Engoliu em seco, enquanto Damon ria sozinho, saboreando o desconforto dela.

    — Nome completo — ordenou.

    Ela respirou fundo, engoliu novamente e respondeu. Damon revirou algumas folhas sobre a mesa até encontrar o registro. Passou os olhos pelo papel, murmurando:

    — Hm… Madalena, idade 39… nananan… quê?

    Ele repetiu o gesto algumas vezes, alternando o olhar entre o papel e a mulher, até largar a folha sobre a mesa. Respirou fundo e, com sarcasmo, perguntou: 

    — Passando fome, você?

    Madalena não suportou. As lágrimas escorreram em desespero, e ela saiu correndo da sala. Damon ficou sozinho, rindo alto.

    — É sério isso? — disse, gargalhando.

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