No escritório de Fernanda, o silêncio era pesado, sufocante, como se as paredes absorvessem cada respiração. Ela e Damon estavam posicionados em extremos opostos da mesa, como dois predadores prestes a se devorar. O braço e o ombro dele estavam enfaixados, pendendo, a bandagem já manchada pelo sangue.

    — Que merda foi aquela?! — explodiu Fernanda, a voz carregada de fúria, enquanto arremessava papéis e objetos da mesa no chão. — Você ultrapassou todo limite que eu te impôs!

    Damon ergueu o olhar, frio e desafiador, e respondeu com desprezo: 

    — Deixando claro, se você não tivesse me afastado dos meus afazeres, nada disso teria acontecido. Você mesma provocou o caos que agora me acusa de ter causado.

    Fernanda bateu a mão contra a mesa com força, o som ecoando como um trovão dentro da sala. Seus punhos tremiam, os olhos ardiam de raiva.

    — Você fala como se fosse minha culpa. Mas o que você fazia com aquelas diversas pessoas que encontrava… vidas tratadas como brinquedos descartáveis. Você é pior do que os monstros que vagam lá fora. Uma desonra para o seu antigo mentor. Até hoje não entendo o que ele viu em você para lhe entregar o posto de líder de exploração.

    Ela respirou fundo, tentando conter o ódio que queimava em seu peito. Esfregou os olhos, como se buscasse clareza em meio à tormenta, e declarou com firmeza: 

    — Chega. Você se tornou uma ameaça para todos os habitantes desta cidade. Em dois dias, quero você e seus seguidores fora daqui. Caso contrário, eu mesma executarei cada um de vocês.

    Damon soltou uma risada curta, carregada de ironia. 

    — A líder perfeita, a salvadora que todos idolatram, está banindo um dos seus mais leais lacaios? Então é verdade o que dizem sobre você. Você descarta aqueles que não consegue controlar. Uma narcisista disfarçada de heroína.

    Fernanda estreitou os olhos, a voz firme como aço: 

    — Quem espalha essas mentiras está enganado. Você é o único a ser expulso, e com razão.

    Damon inclinou a cabeça, o sorriso se tornando mais venenoso. 

    — É mesmo? E quanto ao seu marido?

    As palavras atingiram Fernanda como uma lâmina. Ela congelou por um instante.

    — Soube que ele era um homem bom, alguém que cuidava da família, admirável até. E, no entanto, você o matou.

    — Você não sabe de nada! — rosnou Fernanda, os dentes cerrados, as mãos tremendo de raiva e nervosismo.

    Damon se aproximou lentamente, o olhar predatório. 

    — Então o que foi? Dinheiro? Outra mulher? Ou talvez… medo? — murmurou, a voz baixa e cortante, junto ao ouvido dela.

    A explosão foi imediata. Tomada pela fúria, Fernanda socou o rosto dele e o lançou contra a mesa de reuniões, que se partiu sob o impacto. O sangue voltou a jorrar do ombro ferido de Damon, tingindo a bandagem de vermelho vivo

    Ele tentou se erguer, mas as forças o abandonaram. Fernanda, tomada por uma fúria quase animal, pulou sobre ele e começou a desferir socos brutais contra o rosto. Cada golpe fazia o sangue escorrer mais, cada impacto deformava suas feições. Damon não reagia, apenas suportava a dor, enquanto ela gritava, os olhos incendiados de ódio.

    Ofegante, Fernanda parou por um instante. Damon tossiu sangue, o rosto inchado, os olhos reduzidos a fendas. Ainda assim, um sorriso perverso surgiu em seus lábios ensanguentados.

    — Então… — tossiu, cuspindo sangue — …essa é sua verdadeira face.

    Fernanda congelou. Olhou para ele, depois para sua própria mão coberta de sangue. O horror daquilo que fazia a atingiu como um choque. Tremendo, levantou-se e, sem encará-lo, ordenou:

    — Saia daqui.

    Damon tossiu novamente, três vezes seguidas, cada uma mais dolorosa que a anterior. Mancando, apoiando-se na parede, caminhou até a porta. Antes de sair, virou o rosto parcialmente para ela, o sorriso macabro ainda presente, o sangue escorrendo pela boca.

    — Meus homens e eu voltaremos ao serviço em cinco dias… Feh!

    A porta se fechou atrás dele, o som ecoando como um veredito. No corredor, o rastro de sangue se espalhava pelo chão e pelas paredes, como uma trilha sombria que denunciava sua presença.

    Fernanda permaneceu de costas, o corpo trêmulo, os olhos arregalados, dividida entre fúria e tristeza, presa em um abismo de emoções que a consumiam lentamente.

    Mesmo não estando bem psicologicamente para continuar, ela se forçou. Não podia se dar ao luxo de deixar o trabalho de lado.

    Seguiu a lista de tarefas, comprimindo cada afazer como se pudesse espremer o tempo entre os dedos.

    Depois de algumas horas, o grande relógio da cidade — instalado no topo da igreja da praça — marcava meio-dia e trinta e cinco.

    Ainda havia muito a ser feito. Mas, naquele momento, a prioridade absoluta era a questão da água contaminada.

    Normalmente, para situações assim, ela enviaria Damon e seus homens. Mas isso estava fora de cogitação.

    Recorreu então a Carlos.

    Batedor e vigia experiente, Carlos não gostava de grupos grandes, preferindo agir sozinho ou, no máximo, em dupla. Às vezes, costumava fazer as rondas ao lado de Thiago, que havia sido morto pelos mortos-vivos algumas semanas antes, enquanto eliminavam possíveis variantes da grande horda.

    Pelos seus serviços e pela frieza demonstrada em campo, Carlos foi promovido a instrutor de novos batedores e vigias.

    Havia ainda um detalhe que poucos conheciam: ele e Damon se odiavam. Ninguém sabia exatamente o motivo, mas sempre que se cruzavam pelas ruas, as discussões e os socos eram inevitáveis.

    Diante da rara oportunidade de um treinamento em campo real, Carlos assentiu às novas ordens sem hesitar.

    Quando Fernanda se afastou, ele voltou-se para os alunos, que treinavam arduamente, levando o corpo ao limite — músculos trêmulos, respiração falha, suor escorrendo pelo chão. O olhar dele percorreu cada rosto, como uma lâmina afiada.

    — Certo, seus vermes imundos! — bradou. — Pois saibam: vocês não passam de carne fraca, pronta para ser devorada. Hoje estão liberados… mas amanhã… amanhã vocês vão conhecer o verdadeiro inferno. E eu estarei lá, para garantir que nenhum de vocês volte a sorrir.

    Ele se retirou sem olhar para trás.

    — Certo! — gritaram os alunos em uníssono, mesmo sem interromper o treino.

    Assim que Carlos saiu do campo de visão, os corpos cederam quase instantaneamente. Um a um, caíram no chão, vencidos por um cansaço extremo. Alguns sequer conseguiram permanecer conscientes.

    — Esse cara… — murmurou um dos caídos, a voz fraca, quase inaudível, os olhos semicerrados. — Ele é um monstro…

    O silêncio tomou conta. O último que ainda respirava fundo fechou os olhos, murmurando como se fosse uma prece:

    — Amanhã… será o nosso fim…

    E então apagou, junto aos demais, deixando o campo mergulhado em gemidos baixos de dor.

    No cair da noite, quando o acampamento de Fernanda parecia finalmente repousar, um movimento inesperado chamou atenção. Entre as barracas, uma pequena figura se esgueirava, tentando escapar sem ser notada. Os guardas, atentos após dias de tensão, interceptaram a sombra.

    Quando a trouxeram até Fernanda, o choque foi devastador. A luz fraca das lâmpadas de seu escritório, tornou o rosto da jovem visível: cabelos ruivos desgrenhados, olhos inflamados de fúria, o corpo debatendo-se contra as mãos firmes dos soldados.

    — Encontramos ela tentando pular as grades — relatou um dos guardas, a voz firme, segurando o braço da prisioneira. — Tentou fugir quando nos avistou. Resistiu, e não quis nos seguir. Tivemos de amarrar suas mãos para trás e trazê-la assim.

    Fernanda suspirou profundamente, o desconforto evidente em sua postura.

    — Imagino o trabalho que isso deu para vocês. Fizeram bem em trazê-la até mim. Como sempre, cumpriram seu dever com precisão. Podem voltar aos seus postos.

    Os guardas obedeceram, soltando os braços da jovem. As cordas haviam deixado marcas vermelhas nos pulsos, e os braços exibiam sinais da força usada para contê-la. Eles se afastaram em silêncio, deixando-as frente a frente.

    Por alguns segundos, o mundo pareceu suspenso. Nenhuma das duas desviava o olhar. O de Fernanda, carregado de seriedade e autoridade. O da jovem, ardente de ódio e desafio.

    — Algo a dizer sobre isso… filha? — perguntou Fernanda, a voz firme, mas impregnada de tensão.

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