Capítulo 06 — Conversa Sobre o Destino
Com o passar do tempo, o sol se escondeu sob o horizonte com repulsa da noite. E em sua ausência, todo o mundo se afogou em uma fria escuridão.
As pobres almas sujeitas ao abandono de sua estrela, se encolheram em suas casas enquanto abraçavam seus corpos trêmulos.
Eram poucos os sujeitos corajosos que ousavam se aventurar neste cenário. Mas mesmo que mínimos, não eram inexistentes.
Sentados em uma mesa iluminada pelas bruxelas dá luz de uma lâmpada a óleo, três figuras jaziam silenciosamente. Seus olhos se encontravam ocasionalmente, mas permaneciam quietos.
Entre elas, um homem chamava a atenção com suas mãos ansiosas. Seus olhos azuis fitavam a feição de seus companheiros como se em busca de algo.
— Então… — o homem abatido pela ansiedade falou com voz fraca. — Como devemos nos planejar para a nossa partida?
Ao término de suas palavras, seus olhos se voltaram para uma mulher logo à sua frente. Diferente dele, que batia seus pés nervosamente na madeira desgastada do recinto, ela estava composta.
Sua postura ereta e respirações suaves desmentiram o terror que aquela reunião significava para os miseráveis de todo o mundo.
— Primeiramente, não podemos partir sem os devidos planos. Como é de conhecimento comum, o Mosteiro de Deus é um culto cauteloso. Mesmo que causem discórdia entre o povo, sempre desaparecem como névoa, deixando apenas destruição para trás.
Sua fala foi dita com tamanha frieza que mesmo o tempo gélido não pôde se comparar. A forma como se referia ao culto com tanta familiaridade causou arrepios no homem, que abaixou seu olhar.
— Daqui a uma semana, um grupo de comerciantes virá até Veldoren. E quando o momento se mostrar oportuno, usaremos a caravana como um meio de transporte até uma cidade grande. Temos uma semana para nos prepararmos, Arthur.
— Entendo… mas o que vamos fazer durante esse tempo? Digo, tenho pendências a resolver antes de partir, então não poderei fazer muito… — disse Arthur, ainda olhando para baixo.
Um rítmico batuque era ouvido sempre que a sola de sua botina batia no chão. Suas pernas tremiam consideravelmente, algo que atordoou o experiente caçador.
“É estranho temer por algo que sempre desejei.”
Heeh!
Enquanto se perdia em pensamentos, um suspiro foi ouvido na mesa em que se encontravam.
— Arthur, eu sei como você se sente. Não precisa processar tudo sozinho, é sério. Mesmo que você tenha se decidido, ainda não faz nem um dia direito que você recebeu a notícia do retorno deles.
Diferente da frieza comportamental da primeira mulher, a figura de cabelos ruivos que falara, fez com gentileza pouco encontrada naquela região.
Naquele lugar onde apenas o frio era uma certeza, onde mesmo seus vizinhos eram estranhos quando o medo os alcançava, aquilo era estranho.
Mas Arthur, voltando seu olhar para a pessoa sentada ao seu lado, sorriu levemente: — Obrigado, Lya. Não sei o que seria de mim sem você. Então, Aurora, o que faremos?
Aurora franziu sua testa com a interação dos dois à sua frente, mas rapidamente voltou a sua expressão natural quando foi chamada.
— Não será necessário que você faça muito, na verdade. Como Veldoren não é uma cidade com muitos itens, ainda amanhã já conseguirei coletar tudo o que é necessário.
Um alívio indescritível tomou o corpo de Arthur com as palavras de sua mestra. A ideia de poder se concentrar em seu trabalho manual era como uma bebida gelada em um dia de sol.
Mas para sua instantânea tristeza, Aurora continuou a falar: — Contudo, você terá que realizar uma pequena tarefa.
Tirando de seu bolso da calça, a mulher de feições inexpressivas entregou um pedaço de papel enrugado para Arthur.
O pegando cautelosamente, leu seu conteúdo, desviando o olhar para sua mestra a cada poucos segundos. Seu cenho se franziu em confusão, quando soltou o papel na mesa.
Nele, um ser de puro horror se escondia no breu entre as árvores, sua figura se erguendo poderosamente por indizíveis metros de altura.
No pouco que era possível analizar, uma oportunidade criada por um raio tímido de luz que mal tocava aquele ser, apenas uma certeza foi considerada: aquela era uma criatura impossivelmente difícil de se lidar.
A pelagem branca dela que se camuflava assustadoramente com a floresta pálida era o menor dos problemas. Garras longas e afiadas como lâminas de soldados ferozes se projetavam de suas mãos.
Mesmo que não tivesse visto em ação, Arthur tinha certeza mais que absoluta da letalidade daquelas armas.
Além disso, como um chute que derruba um homem já desequilibrado, a disposição dos membros da criatura mostravam uma forte agilidade.
“Ele se assemelha a um felino, mas é muito maior que um…”
— Então, o que eu devo fazer com essa informação? — sua voz escapou de sua garganta roucamente, reverberando pelo ambiente abafado.
Contudo, mesmo que perguntasse, sua experiência já sabia qual seria a resposta. E ele estava correto.
— Como um último teste para partirmos em nossa jornada, você, meu primeiro e único discípulo, deve matar essa criatura.
A reação por parte de Arthur foi instantânea. Enquanto Lya olhava entre o discípulo e o mestre nervosamente, ele bateu sua cabeça contra a mesa.
O som estrondoso do estalo da madeira roubou os ouvidos das duas mulheres, que o olhavam com confusão. Mas ele não pareceu se importar, resmungando baixinho.
— É, minha mestra quer me matar…
— Não seja assim, Arthur. Você sabe que eu não entregaria essa tarefa para você caso eu não confiasse plenamente em suas capacidades.
Mesmo que prestasse atenção na voz calma de Aurora, o rapaz pouco se importou, mudando seu foco para Lya.
A garota, que acabara entrando naquela conversa sem querer, os observava com cautela, como se escutasse coisas indevidas. Percebendo isso, Arthur a chamou.
— Sinto muito por te dar tanto trabalho, Lya. Fui trazido aqui para me desculpar com você pela confusão de ontem, mas a deixei em uma situação ainda pior.
— N-não, Arthur, está tudo bem. Na verdade, quando fiquei sabendo do plano de partida de vocês, fiquei um pouco decepcionada pela sua partida… Então, eu quero ajudar!
Sorrindo para ela, Arthur se endireitou em sua cadeira velha, que rangia a cada movimento naquele lugar abandonado por qualquer outro som.
— Ou seja, caso eu falhe em lidar com essa coisa, não poderei partir junto de você? Isso é estranho, levando em conta como você pediu para mim, ontem, te acompanhar — sorriu ironicamente.
Após um breve silêncio, onde ambas as partes se encaravam solenemente, Aurora abriu sua boca: — De fato, fui a primeira a pedir, mas eu estava, mesmo que não seja o correto, ansiosa com o reaparecimento deles, por isso agi sem cautela.
Arthur assentiu calmamente com a cabeça, fechando os olhos em ponderação.
“Bom, ela parece ter um passado conturbado com eles tanto quanto eu, apesar de que nunca tenha dito explicitamente. Então, posso entender essa parte. Mas ainda não é justo…”
Enquanto se preparava para responder sua mestra, no entanto, foi cortado antes que qualquer sílaba escapasse de sua boca.
— Mas não posso permitir que se machuque. Arthur, você ainda é muito novo, e comete erros bobos. Sem a experiência correta, sua vida será ceifada no primeiro encontro com eles. E eu me importo com você, e não quero que isso aconteça.
As palavras de indignação que o rapaz tanto queria dizer prenderam-se em sua garganta, o afogando em contemplação.
Não havia necessidade de ser tão contra a proposta de Aurora. Mesmo que pudesse se machucar, ele definitivamente não morreria contra aquele monstro do papel.
Virando-se para estudar a reação de Lya, ele notou como ela parecia se apoiar nas palavras de Aurora. Naquela discussão, ele estava sozinho.
— Tudo bem, tudo bem. Eu faço isso.
Assentindo em alívio mal contido, Aurora também se voltou para a ruiva ao seu lado.
— Lya, você poderia explicar um pouco do monstro para Arthur? Ele vai precisar de mais informações do que só a aparência.
A jovem recepcionista, vendo que finalmente seria útil para a conversa, acenou firmemente com a cabeça em concordância.
— Certo, Arthur, como você já sabe, a guilda trabalha com um sistema de níveis de ameaça quando o assunto são os monstros e criaturas que andam à solta.
Sacando um papel de seu novo casaco, ela o colocou sobre a foto na mesa. Apontando com seu dedo, mostrou uma pirâmide dividida em quatro partes: verde, laranja, vermelho e preta.
— Aqui, na base, temos o “Rank 1”, onde ficam os animais comuns e outras criaturas que podem ser facilmente contidas, mesmo para um novato. Logo acima da base, temos o “Rank 2”.
Seu dedo traçou uma linha reta até a parte laranja da pirâmide, logo acima do verde “Rank 1”.
— Agora nós entramos naqueles que podem ser contidos, mas que já ameaçam mais os aventureiros. Também são os mais abundantes, por isso causam a maior parte das mortes.
Conforme contava sobre casos de aventureiros que eram atacados por esses monstros, a voz melodiosa da mulher caiu alguns tons, se aproximando de sussurros.
Subindo ainda mais seu dedo, Lya parou na terceira parte da pirâmide, a área vermelha.
— Esse é o “Rank 3”. Qualquer monstro desse rank é extremamente poderoso, podendo destruir vilas inteiras e grupos de guerreiros experientes.
— Receio que essa “coisa” esteja nesse rank, não? — perguntou Arthur de braços cruzados. — Inclusive, isso tem um nome? Não vi nada como um no papel que me deu.
— Sim, esse monstro possui um nome, é Lince das Neves. Mais especificamente, uma mutação natural de um deles. Como você sabe, todos os seres vivos possuem mana, mas alguns mais do que outros.
Enquanto falava, as mãos firmes de Arthur agarraram a foto do lince. Mais uma vez, analisou a criatura terrivelmente diferente de um lince normal.
— Em casos onde o corpo não suporta a mana acumulada, existe a pequena chance de uma mutação ocorrer. Felizmente, mesmo que isso aumente a força deles, também causa fissuras em seu corpo, os fragilizando.
Acenando com a cabeça, Arthur se levantou abruptamente.
— Tudo bem, então já estou indo. Não quero perder meu precioso tempo com esse lince, então vamos fazer isso rápido.
Sua mão pousou sobre uma espada embainhada nas sombras de sua roupa, escondida do mundo. O cabo e bainha pretos eram pouco visíveis na sala mal iluminada.
Colocando o papel de volta à mesa, ele se preparou para partir, mas Lya irrompeu alto.
— O quê!? Você não pode sair no meio da noite atrás dessa coisa! E eu nem terminei de explicar sobre os ranks!
— O “Rank 4” são todos aqueles que podem destruir civilizações, por conta do aumento exponencial da periculosidade entre os ranks, e blah blah blah…
Desistindo momentaneamente de sair do recinto, Arthur se moveu calmamente até Lya. Seus movimentos eram tão sutis e leves.
A confusa Lya, que mal percebera a aproximação, congelou completamente quando uma mão firme, mas gentil, pousou em sua cabeça.
O lugar ficou estranhamente quieto, com apenas o grito do forte vento roubando o ouvido dos três.
— Você se preocupa muito, Lya. Por que você age como uma irmã mais velha comigo, quando já tem uma mais nova? Bom, não é como se eu odiasse, haha!
— O-o quê!? — gritou a mulher, afastando a mão que afagava-a. Como um tomate no auge de sua maturidade, seu rosto se avermelhou. — O que você pensa que está fazendo!?
Enquanto Lya se armava em uma postura defensiva, Arthur gargalhou uma risada que reverberou por todo o lugar. Sua risada crua atraiu o olhar de sua mestra.
— Vá logo, então. Não há motivos para perder tempo aqui — disse ela, o expulsando do lugar.
Apenas retribuindo com um aceno, ele partiu.
No cômodo, agora com apenas as duas mulheres, um silêncio constrangedor pairou sobre o ar, mas logo foi quebrado por Lya.
— Senhorita Aurora, não deveríamos avisar para ele que eu ainda não passei as informações do monstro?
— Está tudo bem. É necessário que ele corrija seu excesso de confiança logo, então é melhor assim.
“Pobre Arthur… Como pode viver com uma mestra tão dura?”, pensou Lya, olhando para a porta.
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