Capítulo 09 — Se Possível, uma Conversa
Um dia havia se passado desde que Arthur lutou por sua chance de partir com Aurora em sua jornada. Felizmente, ele completou a missão com sucesso.
Junto da luz do sol, que agora se punha lentamente, Arthur passou o dia trabalhando em sua oficina com diligência calculada.
Tamanha era sua concentração que suor escorria pelo seu corpo apesar do frio de gelar os ossos que fazia, suas mãos latejando pelo trabalho exaustivo.
Contudo, pouco se importou, trabalhando com um sorriso bobo sobre seus lábios. Ele iria partir numa jornada com Aurora, e só isso importava.
Enquanto conferia pequenos detalhes a uma peça de roupa de pelos brancos, sua mente retornou para a sua luta contra o Lince das Neves. Mais especificamente, para o momento final dela.
Mesmo com um braço quebrado, ele havia se esforçado até o fim, buscando a vitória em um momento épico!
“Apesar que a mestra não ficaria muito contente com o resultado”, pensou com um sorriso depreciativo.
Por um momento, decidiu deixar o trabalho de lado e descansar um pouco. Mesmo com sua experiência no ramo, ele havia exigido muito de seu corpo ainda em recuperação.
Mas como se para o testar, uma mulher de belos olhos cinzas entrou em seu local de trabalho, o tirando precocemente de seu descanso.
— Arthur, está trabalhando? — perguntou Aurora, com o mesmo tom monótono de sempre.
— Ah, bom dia, mestra! Tirei um tempinho para descansar. Mas o que a traz aqui?
Enquanto se levantava de sua cadeira velha, Arthur colocou seus braços para trás, como se escondesse algo.
“Bom, eu realmente estou…”
Graças à quantidade abundante de mana em seu corpo, mesmo que não pudesse a controlar, sua capacidade regenerativa era impressionante.
Como prova disso, seus dois braços que haviam quebrados na luta contra o Lince das Neves agora estavam inteiros mais uma vez.
“Mais ou menos inteiros, haha…”, riu interiormente, engolindo a vontade de xingar pela dor que sentia.
Ocasionalmente, uma dor aguda e pulsante invadia seus ossos como um intruso, enviando ondas de dor que quase o enlouqueciam.
Sempre que isso acontecia, seu cenho se franzia sutilmente. Sua aparência naqueles momentos era semelhante a de uma criança que comeu algo azedo.
Mas mesmo que quisesse expressar sua dor, não poderia fazer isso por uma razão simples: Aurora brigaria com ele.
Era uma certeza tão grande quanto o sol nascendo no leste de que, se ela percebesse seus ferimentos, o daria um sermão de vários minutos.
“Só tenho que aguentar até ela sair.”
Mas Aurora começou a quebrar seus planos quando se aproximou dele, o analisando.
— Como foi sua luta, Arthur? Ouvi de Lya que você conseguiu vencer, mas não se encontrou comigo para me informar diretamente.
O tom da mulher era interrogativo, enviando arrepios para a espinha de Arthur. Seu corpo paralisou imediatamente, suor frio escorrendo por suas costas.
“Ela já percebeu? Não, não pode ser…”
— A luta? Sim, eu consegui vencer ela. Bom, o Lince das Neves era bem forte, então não seria uma grande surpresa se eu me ferisse, hahaha.
Aurora não disse nada enquanto observava seu discípulo com olhos tão afiados quanto uma navalha. Não era exagero pensar que alguém se cortaria se os cruzassem.
A cada momento em que a mulher se mantia quieta, a sensação de urgência se infiltrava no peito de Arthur. Seu peito quase rasgava seu peito de tão forte que batia.
“Droga! Eu me entreguei, não é?”.
Se ele pudesse, Arthur daria um tapa em sua própria testa em desaprovação à sua fala.
— É mesmo? Que bom saber… Inclusive, o que você está escondendo atrás de você?
— Hã? Não estou escondendo nada, senhorita Aurora. Por que a pergunta?
“Por favor, ignore!”
— Entendo…
Arthur se sentiu banhado em alívio quando Aurora pareceu ter desistido de perguntar. Mas, para sua tristeza, ela correu até ele.
Surpreso, tentou reagir, mas a diferença entre eles era tão vasta quanto o céu e a terra. Logo, Aurora o imobilizou como um marginal, segurando-o pelos braços.
— Ai, ai, ai! Você está me machucando! — gritou enquanto Aurora erguia a manga de sua camisa com certeza de que encontraria algo.
Como mestra, ela poderia se orgulhar de conhecer muito bem seu discípulo, e isso incluía sua forma tola de tentar esconder os próprios erros.
Para sua pouca surpresa, quando ergueu completamente a manga da camisa, uma cicatriz enorme se revelou no antebraço do rapaz.
Como se não fosse o suficiente, ao erguer a do outro braço, mais uma cicatriz apareceu.
Enquanto ela olhava fixamente para as marcas da luta feroz de Arthur contra o Lince das Neves, um silêncio ensurdecedor tomou o ambiente.
Os dedos pálidos de Aurora circularam as cicatrizes recém descobertas, estudando-as. Em seus olhos, um lampejo de algo surgiu, mas desapareceu rapidamente.
— Como isso foi causado? — perguntou de forma crua, sua voz tão fria quanto sempre.
— B-bem, o Lince das Neves era muito forte… Mestra, você pode me soltar? Isso realmente dói — clamou, mas suas preces caíram em ouvidos moucos.
Aurora apenas o encarou, buscando algo que ele tentava esconder. Era algo praticado. Ela já tinha feito muitas vezes, e sempre encontrava algo. E não foi diferente hoje.
— Aquele animal não tinha força suficiente para desferir tal golpe em você, Arthur. Então, como isso foi causado?
Os olhos opacos da mulher o encaravam com tanta intensidade, que Arthur sentiu que poderia ser engolido por eles.
Ele tentou se manter calado, mas o olhar de Aurora não permitiu. Após alguns instantes, ele finalmente cedeu.
— Eu acabei me distraindo durante a batalha e não percebi a aproximação dele até que estivesse perto demais… — disse, sua voz diminuindo o tom a cada sílaba que saía de sua boca.
Não era medo o que sentia quando revelou a verdade para Aurora, mas decepção… decepção consigo mesmo.
Ela o havia instruído várias vezes durante anos para que ele se mantivesse focado em uma luta, mas ele sempre voltava a cometer o mesmo erro tolo.
Então, quando percebeu que havia cometido o mesmo erro mais uma vez, ainda mais em uma missão importante, pensou que seria melhor evitar mostrar a verdade para Aurora.
Ainda assim, ela foi revelada.
Um pequeno suspiro escapou de Aurora enquanto liberava Arthur de seu aperto. No mesmo instante, ele se afastou, massageando seus pulsos.
“Essa marca vai ficar aí por um bom tempo”, pensou ao olhar para a marca da mão de Aurora impressa neles. “Pelo menos, ela não descobriu sobre o revestimento de mana.”
O Revestimento de Mana era uma técnica poderosa, que poderia até mesmo mudar o curso de uma luta em favor de quem a usasse.
Mas mesmo que fosse uma técnica forte, se não fosse controlada precisamente, o efeito rebote dela seria horrível, como membros até mesmo explodindo.
Por isso, devido a deficiência nata de Arthur em controlar seu mana, sua mestra o proibiu de usar o Revestimento de Mana, algo que ele ignorou ontem a noite.
“Pelo menos minha resistência impediu que algo pior do que apenas um osso quebrado acontecesse.”
— Por que escondeu isso de mim, Arthur? — A voz de Aurora o tirou de seus devaneios. Algo em seu tom o atraiu.
Sua voz parecia mais fraca, quase triste, enquanto falava. Como espelhos de sua voz, um brilho amargo surgiu em seus olhos.
“Ela está decepcionada?”, o simples pensamento de que poderia ser isso deixava Arthur enjoado.
Será que ele tinha passado a impressão de que não se importava com a opinião dela? Ele temia que fosse isso.
Mas mesmo que quisesse explicar seu erro, sua boca permaneceu fechada em hesitação, o prendendo em um emaranhado de pensamentos.
Aurora se aproximou dele, enquanto algo surgia em suas mãos. Era um brilho verde, luminoso o suficiente para competir contra a luz do sol poente.
“Cura?”, Arthur se perguntou, observando o fenômeno impressionante.
— Não é necessário que use Cura, senhorita Aurora…
— Mesmo para você, com sua regeneração ainda maior do que a minha, um dia não seria o suficiente para se curar completamente.
O ar ao redor se curvou em reverência ao poder mágico que vazava dos dedos delicados da mulher, enviando calor pelo cômodo frio.
No momento em que suas mãos tocaram as feridas cicatrizadas de Arthur, o mesmo calor invadiu seu corpo. Como uma massagem, os músculos de seu braço relaxaram.
— Você sempre se deixa levar pelo excesso de confiança que carrega dentro de si, Arthur. E isso, um dia, fará você pagar um preço alto demais.
Aos poucos, as manchas das cicatrizes começaram a desaparecer da pele de Arthur, dando lugar a sua natural pele branca leitosa.
— Sinto muito por isso, senhorita Aurora… — Arthur respondeu com voz fraca.
— Arthur, mesmo que às vezes não pareça, eu me preocupo com você. Se você continuar agindo assim, o que acontecerá quando encontrar um oponente forte? Um dragão, talvez?
Arthur apenas assentiu em concordância com as palavras de sua mestra, afinal, elas estavam certas. Ele mesmo tinha ciência, no fundo se seu ser, que deveria parar de ser assim.
Mas ele não conseguia. Não, ele não poderia deixar de agir daquela maneira.
Finalmente, após alguns minutos, a pele de Arthur estava completamente limpa das cicatrizes feias de seus antebraços.
Um súbito pico de energia o atingiu enquanto mexia seus braços. Como sua mestra havia dito, ele realmente não estava cem por cento antes.
— Então já vou indo.
— Hã?
Aurora se preparou para sair assim que terminou de curar seu discípulo, o deixando para trás e confuso.
— Senhorita Aurora, espere! Você não tem mais nada para falar?
— Como assim?
— Você não viria aqui apenas para me ver, não é? Deve ter algo que a trouxe até aqui.
Aurora olhou para Arthur por um momento antes de falar: — Sou sua mestra. Devo ter outros motivos para vir até aqui além de apenas verificar meu discípulo?
Mesmo que o tom se mantivesse neutro, Arthur captou uma leve irritação na voz dela. Imediatamente se curvou ao perceber seu erro.
— N-não, não, sinto muito!
Vendo seu discípulo agir de tal maneira, um suspiro escapou pela boca de Aurora enquanto saia.
“Acho que estou suspirando muito ultimamente”, pensou a mulher.
Quando sua mestra finalmente foi embora, Arthur se jogou contra a velha cadeira do quão levantara, caindo pesadamente nela.
Todas as forças recém adquiridas deixaram seu corpo, o deixando de ombros caídos e uma expressão de cansaço.
— Ah, acho que deixei ela brava…
×××
Do lado de fora da oficina de Arthur, Aurora andava distraidamente, sua mente focada no que ele disse.
Você não viria aqui apenas para me ver, não é? Deve ter algo que a trouxe até aqui.
“É assim que ele me vê? Infelizmente, não posso negar sua forma de pensar.”
Olhando para o passado, Aurora percebeu que não havia se esforçado o suficiente para aprender sobre a história de Arthur além de seu encontro com o Mosteiro de Deus.
Todas as informações que chegavam ao seu ouvido foram ditas pelo próprio Arthur, seja nos treinos difíceis ou em qualquer outro evento.
Mesmo que sentisse vergonha em confessar, ela mal se lembrava do sobrenome de seu discípulo, mas ele não parecia gostar muito dele.
E ela não sabia o porquê dele não fazer isso. Por que não gostava do próprio sobrenome? Por que ele era tão aberto a novas amizades mesmo depois do trauma que sofreu?
Eram perguntas que poderiam ter sido respondidas facilmente se ela tivesse prestado mais atenção nele, mas que agora se tornaram vinhas em seu pescoço que engasgavam as palavras na sua garganta.
A luz do sol que esquentava e derretia a neve, pouco fazia para descongelar a relação conturbada que Aurora tinha com seu Arthur, mesmo que ele próprio não percebesse.
“Mesmo agora, tenho muitos planos que ele não gostaria de ouvir.”
A mão direita calejada da mulher se firmou em um forte aperto, as veias se tornando proeminentes em seu braço, enquanto olhava para o horizonte.
Há um mundo inteiro lá fora, vasto como desde os tempos em que ela vagou por ele. Ela retomaria sua jornada, mas agora com a presença de Arthur.
“Espero que você possa perdoar essa sua tola mestra pelos seus atos, meu discípulo, mas é pelo o seu bem”, se resignou em sua mente antes de partir.
Assim, sem que o tempo esperasse, os dias passaram rapidamente. E antes que qualquer um pudesse perceber, o dia da chegada da caravana já batia na porta.
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