Capítulo 19 — Príncipe dos Caídos (3)
…
Calius se viu imerso em sangue, os dedos trêmulos cobertos pelo líquido espesso que impregnava sua pele e suas vestes. O salão outrora vibrante era agora um campo de carnificina. Os corpos caídos se amontoavam em poças rubras, seus rostos congelados em expressões de terror ou agonia. O ar estava carregado do cheiro metálico de sangue e do som distante de gritos abafados.
Acima, o céu, que antes abrigava a pálida lua, rasgava-se como um tecido gasto. Fendas fantasmagóricas surgiam entre as estrelas, fragmentos de um espelho negro rachando em mil pedaços. E de cada abertura no firmamento, criaturas grotescas emergiam, seus corpos deformados desafiando a lógica, como se fossem reflexos de pesadelos antigos que ganharam forma.
Ao olhar para sua mão, Calius percebeu que segurava algo — um colar, delicado e, ao mesmo tempo, terrível. A joia, de um vermelho profundo entrelaçado com fios de negro, brilhava com uma luz antinatural. A forma lembrava um Lírio da Aranha Vermelha, uma flor mortalmente bela, mas em seu coração algo ressoava com a ameaça de uma chave proibida. Ele apertou o objeto com tanta força que a dor percorreu sua mão, como se tentar soltá-lo fosse impossível.
A seus pés, a visão o atingiu como uma lâmina gelada. Ali, deitada em uma poça de sangue, estava a cabeça decepada de Asher Greyfull. Seu rosto, mesmo na morte, parecia o de alguém que buscava respostas. Um de seus olhos faltava, e o outro, ainda aberto, parecia acusar Calius de algo que ele não conseguia compreender. Ele sentiu o coração acelerar, mas seus pés não se moveram.
Ao longe, ele viu Richard, seu irmão, liderando um grupo desordenado de peregrinos contra as criaturas. Mas Richard não comandava um exército; ele dirigia um sacrifício. Os homens e mulheres que o seguiam avançavam em desespero, empunhando armas enferrujadas e escudos improvisados. As bestas — ou seriam demônios? — os dizimavam com facilidade, seus corpos rasgados e descartados como bonecos de trapo.
Calius quis gritar, mas a voz falhou. Ele girou sobre os calcanhares e o que viu atrás de si arrancou-lhe o fôlego.
No alto dos degraus, um rio de sangue fluía em silêncio, como uma correnteza que ignorava a gravidade. No topo, um trono negro projetava sua sombra imensa. Sobre ele estava uma figura encurvada, um cadáver segurando os restos de um cetro quebrado, com um fragmento grotesco de espada cravado no peito. A coroa, rachada e deslocada, repousava precariamente sobre a cabeça do morto.
Era Johann. Seu pai. O glorioso imperador de Eldor.
…
A visão atingiu como um golpe no estômago. Ele cambaleou para trás, sua mente girando em confusão e horror. Quando piscou, o mundo à sua volta voltou ao presente.
As vozes retornaram, o som da música e do riso preencheu seus ouvidos, mas tudo parecia distante, como se ele ainda estivesse preso naquele momento de pesadelo. Calius percebeu que Elizabeth o observava de canto de olho, mas não disse nada. Os duques e o rei, ao notar seu leve vacilar, trocaram olhares discretos, mas continuaram conversando como se nada tivesse acontecido.
Finalmente, ele desceu os últimos degraus e pisou no chão do salão principal. A música, agora mais alta, o envolvia, e servos passaram oferecendo iguarias e vinho. O rei Johann o aguardava no centro, seu sorriso paterno perfeitamente ensaiado.
— Não hesite, Calius. A partir de hoje, você é um príncipe, digno do futuro de Eldor. — A voz de Johann era grave, mas havia algo nela, uma nota falsa, que Calius não conseguia ignorar.
— Assim seja, meu rei. — Ele respondeu, curvando-se levemente, o gesto ensaiado de submissão que tanto odiava.
Alexander Rucandel, seu tio, não perdeu tempo em se intrometer, um sorriso despreocupado em seus lábios.
— E pensar que vi você quando era apenas uma criança birrenta. Ver você assim, hoje, é… curioso. Talvez devesse levá-lo para Athelney. Lá, pelo menos, poderíamos polir seu potencial, torná-lo algo mais útil.
Calius forçou um sorriso.
— Agradeço o convite, tio, mas minhas responsabilidades estão aqui. Pelo menos, por enquanto. — Sua voz falhou por um instante, e ele deu um passo para trás, pressionando os dedos contra as têmporas.
Os murmúrios à sua volta ficaram mais altos. Ele podia sentir os olhares — de curiosidade, de julgamento. Mas Calius já não estava no salão. Em sua mente, o sangue ainda escorria, os gritos ainda ecoavam.
E o rosto de Asher, olhando para ele com aquele único olho que parecia pedir respostas, permaneceu gravado em sua alma.
…
As mãos de Alexander agarravam os ombros de Calius com firmeza quase desesperada. Seu rosto, metade desfigurado e a outra envolta em uma escuridão que parecia devorá-lo, estava marcado pelo tempo e pela violência. O vazio onde antes havia um olho parecia encarar Calius mais profundamente do que qualquer visão íntegra poderia.
— Escute, Calius… — a voz de Alexander oscilava entre urgência e fraqueza, como uma vela lutando contra o vento. — Quando tudo cair… quando não houver mais chão… você será o único capaz de reerguer a humanidade. Apenas você.
Os dedos apertaram os ombros do príncipe uma última vez, e então a força de Alexander desapareceu. Seu corpo desabou, sem vida, como uma marionete sem fios, quase arrastando Calius junto consigo.
O impacto trouxe Calius de volta à realidade com um solavanco, e ele piscou, atordoado.
…
Quase caindo para trás, sentiu uma mão segurando seu braço. Alexander estava ali novamente, vivo, a expressão preocupada, como se nada tivesse acontecido.
— Está tudo bem, garoto? — A voz do tio ecoou com um toque genuíno de preocupação, enquanto o imperador e a rainha desapareciam em outro salão, distantes de toda a cena.
Calius hesitou. Ele tocou os próprios ombros, ainda sentindo o peso das mãos que já não estavam ali.
— Eu… estou bem. Foi só uma tontura. Nada demais. Talvez… fome.
Ele desviou o olhar, evitando a insistência nos olhos do tio.
“O que foi isso? Não deveria estar tendo alucinações… não agora, não aqui.”
Alexander deu um sorriso curto, um gesto entre o deboche e o conforto.
— Vá comer alguma coisa. Alimente o corpo antes que sua mente o traia de vez.
— Sim, claro.
— Vai lá, garanhão. Antes que desmaie em frente aos nobres.
Calius afastou-se, esgueirando-se entre os grupos de aristocratas que o ignoravam abertamente. Cada rosto parecia uma máscara perfeitamente esculpida, mas vazia, sem compaixão ou calor. Entre as conversas fúteis e o som das taças que tilintavam, o príncipe louco movia-se como uma sombra, invisível, mas sentindo-se mais exposto do que nunca.
No centro de um grupo maior, ele avistou Richard, seu irmão mais velho. Era difícil ignorá-lo: alto, de cabelos castanho-claros e olhos de um vermelho vívido, uma tonalidade que Calius compartilhava, mas nunca exibira com tamanha intensidade. A presença de Richard dominava o ambiente. Cada gesto seu atraía atenção, cada palavra, por mais trivial, soava como um decreto.
Calius desviou o olhar, não querendo cruzar caminhos com ele. As memórias das visões ainda pesavam em sua mente, e ele sabia o que Richard pensava dele — o mesmo que todos ali.
“Louco.”
Enquanto tentava se manter à margem, as visões começaram novamente. Imagens brutais invadiram sua mente como tempestades, borrando as linhas entre realidade e delírio. O sangue, os gritos, o colar, o corpo de Alexander — tudo se misturava em um redemoinho sufocante.
Sem perceber, Calius havia colocado as mãos nas têmporas. A música, que antes parecia um pano de fundo distante, tornou-se um martelo incessante, ecoando em sua cabeça. Sua respiração acelerava.
Do outro lado do salão, Richard o observava de soslaio. Diferente dos outros nobres que riam ou o ignoravam, Richard parecia preocupado, mas não se aproximou. A distância entre eles era mais do que física.
— O príncipe louco. — A voz cortante de um dos nobres ecoou próxima a Richard, seguido de risos abafados. — Enquanto seu amigo Cedric é celebrado como o grande oráculo de Valtherus, ele só nos presenteia com fantasias. Sempre tão dramáticas, mas nunca concretas.
Calius ouviu, mas não reagiu. A zombaria era um peso que ele já carregava, mas agora parecia irrelevante diante das sombras que consumiam sua mente. Ele cambaleava entre as pessoas, tentando se orientar.
E então, aconteceu.
Enquanto ziguezagueava, perdeu o equilíbrio e esbarrou em alguém. O impacto foi menor do que o choque que veio depois: sua visão foi novamente engolida por um prenúncio.
…
Ele viu sangue escorrendo pelas paredes do salão, garras e lâminas dilacerando carne. Viu Richard, caído, os olhos vermelhos apagados, a coroa de Eldor despedaçada ao lado de seu corpo. No trono, erguia-se uma figura que ele não conseguiu reconhecer, mas cuja presença o aterrorizou até os ossos.
…
A mulher se aproximou de Calius em um movimento rápido, seu vestido pesado esvoaçando enquanto ela esbarrava nele. O impacto foi suficiente para fazer os dois caírem, caindo juntos ao chão de mármore frio. O destino, parecia, havia traçado o encontro deles, como se brincasse com seus sentimentos, entrelaçando-os numa teia invisível e implacável.
Calius piscou, sem palavras. Seu coração martelava.
“Não, não estou.”
…
O silêncio pesado que pairava no quarto era quebrado apenas pelo suave tilintar do fogo, dançando nas velas esparramadas ao redor. A mulher, com seus cabelos negros como a noite sem lua, olhava para Calius com uma expressão que misturava compaixão e apreensão. Ela estava envolta no roupão branco, os ombros delicados à mostra, seu olhar profundo como um poço sem fim.
— Você está bem, Calli? — perguntou ela, a voz suavemente carregada de uma preocupação que ele bem conhecia, mas que agora, após os horrores que o consumiam, parecia vir de outro mundo.
Calius olhou para ela com uma mistura de dor e uma estranha calma, como se estivesse se afundando lentamente em um abismo de lembranças.
— Estou… — Sua voz vacilou, e ele sentiu como se cada palavra fosse uma marreta em sua alma. — Apenas vi outra visão… uma visão dolorosa…
Ela se aproximou, a leveza de seus passos no chão de madeira ecoando como um sussurro de um tempo perdido. Seus dedos, frios como o inverno russo, tocaram levemente seu ombro, e a suavidade de seu toque foi a única coisa que o impediu de se partir completamente.
— Relaxe… — Ela sorriu, mas não com a alegria plena. Havia algo sombrio e pesaroso em seu sorriso, algo que lembrava o peso de todas as promessas quebradas. — Saiba que sempre estarei contigo, mesmo que o mundo se destrua, estaremos juntos, sempre.
Calius fechou os olhos, sentindo o calor do abraço dela envolver sua alma despedaçada.
— Eu sei… — respondeu ele, a incerteza ainda marcada em sua voz. — Só… só me sinto confuso com tudo isso… Ele apertou o próprio peito, como se pudesse arrancar de dentro de si a razão para o tormento.
Ela inclinou a cabeça suavemente, a expressão de quem conhecia o fardo de seu sofrimento. Seus olhos estavam cegos, mas ainda assim claros, como a água de um rio que jamais se afasta da sua origem.
— Apenas durma esta noite comigo. — As palavras saíram com uma suavidade cálida, mas em seu peito, Calius sentiu algo distinto, algo que se refletia no tilintar do colar que ela usava.
O mesmo colar que ele vira naquele cataclismo, em seus piores pesadelos.
A dor o invadiu novamente, mas ela o abraçou com firmeza, como se fosse a última coisa que ele precisasse fazer antes de sucumbir ao pesadelo. Mas havia uma sensação estranha em tocar o corpo dela, uma familiaridade que os dois não podiam negar. Ele não queria sair dali, nunca. Queria proteger essa mulher, com todas as forças que ainda restavam em seu corpo, torturado pela confusão e pelo medo.
…
— Você está bem? — Calius estendeu a mão, ajudando-a a se levantar com um gesto quase mecânico, como se a responsabilidade por ela agora fosse algo inevitável, como o peso de uma promessa.
Quando ela se levantou e seus olhos se cruzaram, ele percebeu quem ela era. Maginot Vitra. A filha do Duque de Oniowell, uma das mais belas e desejadas entre os nobres. Era uma visão que ele jamais esqueceria. E, embora não dissesse palavra alguma, havia algo entre eles, uma conexão silenciosa, que brotava daquelas almas que, de alguma forma, estavam condenadas a ver o fim do mundo juntas. Os dois, perdidos na infinidade de um destino inexorável.
— Estou sim… — Maginot, agora com um sorriso forçado, se levantou. Suas mãos limparam rapidamente o vestido, preparando-se para retomar sua marcha. Mas Calius sentiu que algo havia mudado, como se aquele encontro fosse o ponto de inflexão de toda sua vida.
A música no ambiente aumentava, misturando-se aos murmúrios e sussurros dos nobres que circulavam pela sala. O som da dança, a alegria aparente de todos, não parecia importar para Calius. Ele, perdido em seus próprios pensamentos, procurava Asher, mas agora isso parecia irrelevante. Ele sentia, com clareza brutal, que sua vida estava agora atrelada à mulher diante dele, que seu destino estava selado com ela, uma mulher destinada a ser sua, longe de todas as obrigações e promessas da nobreza.
— Me concede uma dança? — Ele estendeu a mão, envergonhado, o olhar tímido, mas com algo de desesperado por uma resposta. Ele não sabia o que fazer. Ela era agora sua única âncora no caos.
— Sim… — Ela aceitou com um sorriso tímido, também embaraçada, mas algo em seus olhos se acendeu, e juntos, eles começaram a dançar. Seus passos, incertos no início, logo se tornaram fluidos, quase como se estivessem marcando o compasso de um destino que os havia atraído de algum lugar além do entendimento humano.
Ao redor deles, os nobres dançavam e observavam, mas a atenção estava toda neles. Era como se o mundo ao seu redor se distorcesse, os olhares de todos fixados em seus corpos entrelaçados. A felicidade transbordava entre eles, silenciosa, mas profunda.
Mas, no meio da multidão, uma figura loira permanecia estática, observando com os olhos marejados de lágrimas. A mulher, que um dia foi prometida a Calius, agora via sua perda com o coração dilacerado. O que antes lhe parecia certo, o que havia sido prometido como um destino imutável, agora se desvanecia diante de seus olhos.
…
As memórias, antes vívidas e esmagadoras, começaram a se dissipar, como a neblina ao amanhecer. O som de algo cortando o ar, um eco distante, reverberava em sua mente. A espada atravessou seu cérebro, fria e certeira, e com um último suspiro, Leonard caiu, a escuridão consumindo-o, levando com ela todas as promessas e esperanças.
Bom dia, nos vemos novamente no sábado!
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