Olá, segue a Central de Ajuda ao Leitor Lendário, também conhecida como C.A.L.L! Aqui, deixarei registradas dicas para melhor entendimento da leitura:
Travessão ( — ), é a indicação de diálogos entre os personagens ou eles mesmos;
Aspas com itálico ( “” ), indicam pensamentos do personagem central em seu POV;
Aspas finas ( ‘’ ), servem para o entendimento de falas internas dentro da mente do personagem central do POV, mas não significa que é um pensamento dele mesmo;
Itálico no texto, indica onomatopeias, palavras-chave para subverter um conceito, dentre outras possíveis utilidades;
Colchetes ( [] ), serão utilizados para as mais diversas finalidades, seja no telefone, televisão, etc;
Por fim, não esqueça, se divirta, seja feliz e que os mistérios lhe acompanhem!
Capítulo 22 — Pendular da Noite
Leonard ponderou por alguns instantes, os olhos fixos na tela da televisão. Ottawa estava a apenas duas horas de carro. Um mundo inteiro, um tabuleiro novo, onde talvez pudesse mover suas peças com mais liberdade.
Mas não era tão simples. Nunca era.
“Não, não posso simplesmente chegar lá e dizer que quero participar…”
O pensamento deslizou até a borda da consciência e se dissipou. Ele precisava de um plano. Se começasse a agir sem um, seria apenas mais um corpo à deriva no rio da realidade, arrastado para onde a corrente quisesse.
“Certo… Vejo isso depois que chegar no serviço. Não posso parar de trabalhar do nada sem um segundo plano.”
Com esse pensamento enterrado fundo na mente, continuou seu caminho
A cidade ao seu redor parecia imóvel, como se o tempo houvesse se derramado em uma película densa sobre as ruas e prédios. A sequência de eventos era idêntica à de ontem—ou ao que deveria ser ontem. Cada movimento, cada som, cada fragmento de realidade parecia repetir-se, como um teatro em que todos sabiam suas falas, exceto ele.
A vertigem vinha em ondas, não o suficiente para derrubá-lo, mas forte o bastante para deixá-lo sempre à beira do abismo.
…
Virando a esquina, Leonard avistou a fachada conhecida: Central do Conhecimento.
A vidraça refletia o brilho frio da manhã, iluminando o interior com aquele tom amarelado e estéril de livrarias pequenas. Ele hesitou. Seu corpo sabia antes mesmo que sua mente formulasse o pensamento: ele já estivera ali.
Empurrou a porta. O sino tilintou, e o som lhe trouxe uma estranha e familiar pontada de desconforto.
Tudo estava igual.
Theo no caixa, rabiscando algo em um caderno pequeno. Liam, seu melhor amigo, ligando os computadores. A mesma disposição, os mesmos gestos. Como marionetes presas a cordas invisíveis, repetindo um dia que já deveria ter morrido.
Leonard sentiu um enjoo súbito. Tentou disfarçar com um sorriso forçado.
— Bom dia, pessoal…
Liam ergueu a cabeça, os olhos ainda pesados de sono.
— Bom dia, Leo. Como está?
O mundo se contraiu ao redor de Leonard.
“A mesma conversa… Será que…?”
Como se estivesse falando no automático, sentiu a resposta escorrer de seus lábios antes mesmo de decidir dizê-la.
— Estou bem sim… Embora com sono, mas isso acaba sendo normal… Eu acho.
— Deve ser — Liam deu de ombros. — Hoje você vai ficar encarregado de verificar os novos livros usados que recebemos. Chegou bastante ontem… Assim que terminar, pode ajudar a Emma e a Aria no atendimento.
O ar ficou pesado.
“Não me diga que…?”
Leonard respirou fundo, afastando o nó que se formava em sua garganta.
— Certo… Vou indo…
A resposta que ele temia veio com uma precisão cirúrgica. Não era um novo dia. Era o mesmo.
O mesmo dia em que encontrou aquele maldito livro.
Déjà vu? Não. Não era apenas uma sensação. Não era um truque da mente. Ele estava preso ali.
Mas preso onde? Em um ciclo? Em um lapso de tempo? Em um pesadelo?
A pergunta martelava dentro dele enquanto seus pés o levavam automaticamente para a porta dos fundos.
…
A sala mal iluminada parecia ainda menor do que antes. Ele pegou um avental, um bloco de notas e uma caneta, guardando-os no bolso sem pensar. Cada movimento era um reflexo de algo já feito.
Com as preparações terminadas, atravessou o labirinto de estantes, o cheiro familiar de papel envelhecido e poeira lhe envolvendo como uma mortalha.
Ao entrar no pequeno armazém, parou.
Os livros estavam ali.
Exatamente como antes.
Uma miríade de capas desgastadas, folhas amareladas, títulos esquecidos pelo tempo. Apenas páginas, tinta e histórias. Nada mais.
E ainda assim, seu corpo tremeu.
Ele não tivera nenhuma visão desde que acordara. Nenhuma profecia ardendo sob suas pálpebras fechadas, nenhuma distorção da realidade. Mas o peso daquilo ainda estava nele, como uma mão invisível agarrando sua espinha.
Ele sabia.
Sabia que, em algum lugar dentro daquela pilha de palavras mortas, o livro esperava por ele.
Esperava para ser encontrado.
De novo.
…
Dentre a pilha de livros que já haviam sido separados, Leonard reconheceu cada detalhe. Os mesmos títulos repousavam ali, suas lombadas envelhecidas e familiares. O Desgarrado, Brian, o Caçador Solitário. Tudo igual. O passado e o presente eram um só.
Seus dedos deslizaram sobre as capas, e por um instante sentiu o peso da repetição esmagando sua mente como uma engrenagem que nunca para de girar.
Então, viu o livro.
Na capa, um grande K vermelho, um fundo branco. A tipografia preta e cruel formava um nome que conhecia bem.
O Processo.
O livro favorito de sua mãe, Sophie.
Ele o ergueu, sentindo o cheiro da tinta velha misturada ao pó.
— A busca incessante pela liberdade em um crime que sequer cometeu… — murmurou, o olhar perdido na capa. — K. foi, sem sombra de dúvidas, um perseguidor da liberdade. Mesmo sem saber o crime, mesmo sem entender a acusação…
Sentiu um calafrio. Não era apenas o livro. Era a coincidência.
O destino cuspia ironia em seu rosto.
Terminou de avaliar os livros, seus olhos vasculhando a pilha mais uma vez. Nada.
— Aquele livro estranho não está aqui… Acabou? — sussurrou para si mesmo.
Havia esperança naquelas palavras, mas também havia uma dúvida silenciosa, sussurrando-lhe ao ouvido como um fantasma.
Não deveria ser assim.
Aquele livro deveria estar ali. Aquele livro tinha que estar ali.
E então, como uma lâmina fria pressionada contra a pele, a lembrança o golpeou:
“A semente do caos,” o príncipe louco havia dito.
Seu corpo estremeceu, como se a própria verdade se insinuasse por baixo de sua pele, rastejando como uma doença.
— Uh… semente do caos…
Não era um mero devaneio. O destino já estava escrito.
E se hoje fosse o mesmo dia, então ele veria Dante novamente.
…
O bloco de notas estava em suas mãos antes mesmo de perceber. Ele rabiscava inconscientemente, sua mente um emaranhado de pensamentos febris.
“Se Dante trará o fim do mundo, ele precisaria ter força…”
“Seria ele parte de uma organização dos Investigadores?”
As palavras se formavam sozinhas, como se escritas por outra pessoa.
“O que eu posso fazer nisso tudo?”
Leonard sentiu um nó apertar-se em sua garganta.
Passara tanto tempo tentando entender o desfecho do mundo que esquecera a verdadeira questão.
Ele não era um jogador nesse tabuleiro. Ele era apenas um observador.
— Hum…
Seus olhos pousaram sobre as palavras, sua própria caligrafia parecendo estranha, alienígena.
“Acredito não haver nada que eu possa fazer.”
“Investigadores são ditos capazes de alcançar o inimaginável.”
“Isso me faria cair na mesma desgraça da insuficiência que Calius teve?”
“Amaldiçoados pelo destino, somos nós que apenas podemos assistir ao fim dos tempos, quietos?”
A pergunta pesava como chumbo.
E então, uma voz o trouxe de volta.
— Você não vai almoçar? Já passou das uma da tarde.
Leonard ergueu os olhos, piscando, como se voltasse de um transe.
Liam o observava com uma expressão levemente preocupada.
— Ah… desculpe. Me distraí.
— Vai logo, cara. Só falta você almoçar.
Leonard empurrou a cadeira para trás, guardou o bloco de notas no bolso e saiu do cômodo.
…
O vapor subia da sopa, rodopiando no ar como espectros invisíveis.
Leonard sentiu náuseas assim que a viu.
O cheiro, o calor, o reflexo amarelado do caldo no fundo do prato… Algo estava errado.
As bordas da visão escureceram por um instante. O enjoo cresceu em sua garganta.
“Aquelas poças de água…”
O pensamento foi seguido de um movimento. Primeiro, sutil. Depois, inegável. Algo se mexia na sopa.
Leonard inclinou-se para olhar melhor.
Seu estômago se revirou ao perceber o que era.
Uma centopeia.
Depois outra.
E mais outra.
Quatro ao todo.
Os corpos segmentados rastejavam na sopa, torcendo-se e contorcendo-se como pequenos horrores vivos.
Leonard arregalou os olhos, e antes que pudesse conter, o vômito subiu em cascata de sua boca, respingando no prato.
A cadeira tombou para trás quando tentou se levantar. Suas pernas falharam.
Cambaleou, caiu no chão.
O mundo girava.
Seu pulmão gritava por ar enquanto tossia violentamente, tentando expulsar o nada de dentro de si.
“Até quando essa merda vai me atormentar?! Eu só queria ter uma vida normal…”
Demorou cinco minutos até que sua pele voltasse a uma cor mais natural.
Levantou-se, ainda trêmulo. O prato jazia sobre a mesa, a sopa contaminada pelo vômito. O cheiro o fez recuar.
Pegou a tampa do pote e despejou tudo na lixeira.
Fora-se o almoço. A fome também.
Agarrou uma garrafa de água e bebeu em grandes goles.
“Não, para começar, esse mundo não é normal. Nunca foi, e eu sei bem disso.”
E então, aconteceu. Uma fina linha dourada. Sutil, quase invisível, mas ali. Tecendo-se no ar, como um fio de luz que não pertencia àquele mundo.
Leonard piscou.
Estava realmente vendo isso? Seu coração bateu mais forte. Uma chance. Mas uma chance para quê? Estendeu a mão, hesitante. Tocou o fio com o dedo indicador. Nada aconteceu. Era real, mas também não era. Faltava algo.
— Huh… Depois eu vejo isso.
Engoliu em seco, pegou os utensílios, lavou-os mecanicamente e guardou-os na mochila.
E então, voltou ao salão da biblioteca.
Mas o fio dourado permaneceu.
E ele seguia um caminho.
Durante toda a tarde, Leonard notou que o fio não tinha fim. Estendia-se além do que podia ver, dissolvendo-se no horizonte como um segredo não revelado.
Até que o sino da porta tocou.
E o fio ganhou cor.
O fio vinha do Dante.
Portava-se bem-vestido, com um meio fraque cinza de tons esverdeados, um cinto ajustado ao meio da barriga, uma gravata bem-feita e um fedora preto repousando sobre os cabelos longos e loiros. Seus olhos azuis faiscavam sob a luz fraca do ambiente, observando Leonard com atenção. Era como se cada detalhe estivesse sendo analisado, pesado e medido.
Leonard sentiu um frio na espinha. “Espera… ele havia chegado tão rápido antes?”
— Ei… Você? — Dante inclinou a cabeça ligeiramente, então leu o crachá sobre o peito de Leonard. — Leonard?
O baque foi imediato. Algo estava errado. A linha dourada que havia dançado no ar o levara a esse momento, mas o significado ainda lhe escapava. O tempo não lhe deu margem para questionar.
— Está tudo bem com você? Sua alma… parece estar esgotada. Hum…
Leonard congelou. “Que merda é essa?”
— Você… quando despertou um estigma?
A voz de Dante não era acusadora, mas preocupada. Havia um peso ali, um conhecimento que Leonard não possuía. No entanto, mesmo sem compreender completamente, ele soube que Dante havia descoberto algo essencial. Algo que sequer o Príncipe Louco havia lhe contado.
— Despertou? Do que você está falando? — As palavras saíram fracas, em meio ao caos de pensamentos.
“Não era para isso estar acontecendo. Nada disso deveria estar se desenrolando desse jeito.”
— Alma? — Ele insistiu, fingindo ignorância. Talvez Dante soltasse mais informações sem perceber.
— Uh, certo… provavelmente você não saiba disso direito. Se importa de vir comigo amanhã para Ottawa? Não, espera, pode soar estranho… — Ele procurou algo em seu fraque, então ergueu um documento. — Investigador Paranormal 1, Dante. É um prazer conhecer você.
Leonard sentiu a garganta secar. “Investigador Paranormal 1…”
Repetiu as palavras quase sem perceber, como se pronunciá-las ajudasse a torná-las reais.
O fio dourado que se entrelaçava em torno de Dante pulsava, como se sussurrasse para aceitar o convite. Mas, em algum lugar no fundo de sua mente, a imagem do mundo chegando ao fim o deteve.
“O que eu faço?”
Mesmo sabendo que essa decisão poderia levá-lo a um caminho sem volta, Leonard suspirou.
— Irei com você… — Sua voz quase falhou, mas as palavras estavam ditas. O destino, selado.
Dante sorriu levemente, satisfeito.
— Certo. Neste sábado, me espere na frente do Place St-Bernard, ainda no início da manhã. — Ele se virou, prestes a ir embora, mas hesitou por um instante.
Leonard o observou franzindo a testa.
“Acabou? Mas ele não veio comprar um livro naquele dia?”
— Ah, certo, já ia me esquecendo. — Dante voltou-se para ele mais uma vez. — Você tem “Os Irmãos Karamazov”, do Dostoiévski?
Aí estava.
— Apenas usado. Teria algum problema?
— Nenhum.
— Tudo bem, vou pegar.
O localizá-lo foi fácil. Leonard sabia exatamente onde estava. As mãos fecharam-se sobre a cópia com naturalidade, como se o passado e o presente dançassem na mesma sintonia. Ele retornou rapidamente.
— Aqui está. “Os Irmãos Karamazov” para o senhor. Precisa de mais alguma coisa?
— Não… apenas esse.
— Então é só passar pelo caixa com o Liam, ele finaliza a compra.
Dante assentiu e caminhou até o caixa. Leonard o observou desaparecer, sentindo o peso do dia sobre os ombros.
O ciclo havia se repetido.
Assim como da primeira vez, nada de extraordinário aconteceu. Nenhum grande segredo revelado. Nenhuma resposta definitiva. Apenas um livro, uma promessa, e um destino costurado por fios dourados.
Quando terminou seu expediente, já pronto para ir embora, notou algo estranho. Liam não estava mais ali. Mas… o que isso significava? Nada.
Nos vemos novamente na terça!
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