Capítulo 38 — Rastros de Sangue
Decidido a sair de seu esconderijo, Calli demorou alguns instantes para ajustar a visão à iluminação precária do ambiente. Seu peito ainda arfava violentamente, cada respiração ecoando em seus ouvidos como um lembrete constante de sua vulnerabilidade. Ele repetia para si como se sua vida dependesse disso:
“Nada disso é real, nada disso é real, nada disso é real…”
Mas ao contrário do que pensava, o sussurro rouco de sua mente não o tranquilizava, apenas o deixava ainda mais confuso com toda a situação.
“Sim, claro, é só uma grande pegadinha, né?!”
Olhando em volta, Calli começou a notar os detalhes do cômodo em que havia entrado. Diferente dos corredores anteriores, este lugar parecia mais antigo, como se tivesse sido abandonado por décadas, e ainda assim, algo nele parecia… ativo.
As paredes estavam cobertas por símbolos grotescos e intrincados, desenhados a mão, com linhas que gotejavam um líquido seco e escurecido. Sangue. Ele não podia negar, mesmo que quisesse. No centro do cômodo, como um grito visual impossível de ignorar, estava uma mensagem incrustada na parede com letras grandes e tortas:
Todos irão morrer, inclusive eu mesmo.
Calli sentiu um calafrio percorrer sua espinha, o tipo que fazia a sua pele formigar. O peso daquela frase parecia esmagá-lo, como se o próprio ambiente conspirasse contra sua sanidade.
“Que merda de lugar é esse?”
Ele balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos intrusivos. Reunindo rapidamente o que sabia até agora, começou a refletir a cena que o envolvia.
“Um culto satânico… Isso faz sentido, não é? Criaturas grotescas, símbolos de sangue, corpos arrastados… Sim, é definitivamente algo desse tipo.”
Ele respirou fundo, tentando organizar os pensamentos, mas a sensação de ser observado não o deixava. Então, outro pensamento emergiu como uma faísca na escuridão:
“E aqueles sons… As respirações que ouvi no caminho. Será que alguém continua vivo? Será que… que há sobreviventes? Ou serão outras daquelas criaturas?”
Calli olhou para a porta de onde veio. O silêncio agora era ainda mais perturbador do que os passos e grunhidos de antes. Ele não sabia dizer se a criatura havia desistido de persegui-lo ou se estava apenas espreitando enquanto aguardava o momento que ele saísse de seu esconderijo.
Mas havia algo mais urgente no ar: o cheiro. Um odor metálico, denso, como uma mistura de ferro oxidado e carne em decomposição, impregnava o lugar. Era insuportável, mas Calli sabia que precisava continuar. Precisava sair dali antes que fosse tarde demais.
Ele se aproximou lentamente de uma abertura no lado oposto do cômodo, uma espécie de corredor estreito que parecia se aprofundar ainda mais no desconhecido. Antes de entrar, ouviu algo. Não passos desta vez, mas um som baixo e constante, como um sussurro entrecortado.
— Socorro! — Uma voz ao longe reverberava pelos corredores, antes do criador daquela voz ter a sua cabeça esmagada, produzindo um som ainda mais terrível.
Seu coração quase parou. A voz era fraca, mas humana. Calli congelou por um momento, seus olhos arregalados tentando encontrar a origem do som.
O jovem respirou fundo, tentando ignorar o eco grotesco do som que ainda reverberava em seus ouvidos. O estridente som de carne e ossos sendo esmagadas parecia zombar de qualquer resquício de coragem que ele pudesse ter. Ele sabia que precisava se concentrar para achar uma saída, se quiser sair vivo.
“Certo, certo, certo, eu preciso encontrar uma saída, urgente, pense Calli pense… O que o Leonard faria nessa situação?”
Agarrando-se em seu exemplo de esperança, o garoto começou a racionalizar aquilo que deveria fazer.
“Definitivamente o tato saberia reagir melhor do que eu nessa situação, então é possível que se eu seguir sua linha de pensamento encontrarei uma resposta, não é mesmo?”
Ele cerrou os punhos, seus dedos tremiam levemente. Dando um último olhar para o lado oposto da escuridão do corredor, o mesmo lado que a voz havia sido abruptamente silenciada, e decidiu que não poderia hesitar. O medo era uma corrente pesada, mas ele sabia que, se deixasse que o paralisasse, acabaria como a pessoa que acabara de ouvir morrer.
“Saída…. Eu preciso encontrar a saída…”
Na escuridão adentro do corredor, as sombras oscilavam de forma quase hipnótica, como se o próprio ambiente estivesse consciente de sua presença. Ele começou a se aprofundar lentamente no corredor.
Tentava fazer seus passos parecer tão leves que não esbanjava som algum. Cada ruído de seus sapatos contra o chão fazia seu coração acelerar, como se anunciasse sua posição para qualquer coisa que pudesse estar a sua espera.
“Não faça barulho. Não olhe para trás. Apenas continue andando Calli…”
O som de algo pesado e molhado arrastando pelo chão começou a ecoar atrás de Calli, e estava cada vez mais próximo. Ele só conseguiu engolir em seco, sabendo que não poderia correr imediatamente sem atrair atenção. Ele se aproximou de outra bifurcação e decidiu arriscar: virou para a direita, onde a escuridão parecia ainda mais profunda, mas onde acreditava haver mais chances de se esconder.
O corredor se estreitava à medida que avançava, até que Calli encontrou uma porta semiaberta.
“Puta ideia de inteligente entrar em uma porta desconhecida… Puta ideia inteligente…”
O jovem olhou para o que havia com cuidado atrás da porta.
A visão que se desdobrou era, ao mesmo tempo, perturbadora e fascinante. O cômodo era mal iluminado, um candelabro antigo repousando sobre uma escrivaninha à direita era a única fonte de luz.
As chamas tremulavam, lançando sombras dançantes nas paredes cobertas de símbolos estranhos. Cada um parecia gravado com precisão obsessiva, alguns desenhados com tinta preta, outros com algo que Calli preferiu não tentar entender.
No centro da sala, imaculado, estava um caixão. Sua superfície era impecável, de madeira escura e lustrosa, como se a poeira nunca tivesse conseguido o tocar. Esse era um enorme contraste se comparado com a decadência do resto do local.
Correntes grossas cruzavam o cômodo, pendendo das paredes como teias de aranha metálicas, e suas extremidades terminavam presas no caixão. Cada elo parecia velho, mas resistente, como se fossem forjados para selar algo que jamais deveria sair dali.
Calli sentiu um calafrio percorrer sua espinha. O ar estava denso, pesado como se carregasse o peso de inúmeras vozes que já foram silenciadas ali.
Ele desviou os olhos para a escrivaninha. Ao lado do candelabro, um livro de capa preta repousava, a superfície decorada com símbolos similares aos das paredes.
“Isso seria o equivalente a um livro sagrado para essas coisas?”
O livro parecia pulsar, como se tivesse vida própria. Ao lado, uma única luva preta estava cuidadosamente posicionada, desgastada, mas ainda funcional, como se esperasse por alguém que soubesse usá-la.
Ainda com certo receio, Calli deu um passo hesitante para frente, seus olhos se fixando no livro. Havia algo nele que parecia chamar por ele, uma curiosidade que lutava contra o medo que tentava dominá-lo.
“Por que uma luva… Qual o propósito disso?”
A sala estava impregnada de um silêncio opressor, mas Calli sabia que o perigo não havia passado. O som da criatura lá fora se tornou desesperançoso, ela o havia encontrado.
Sentiu seu coração parar por meio segundo, ao ver na porta aquele mesmo rosto deformado o aguardando, seus oito pares de olhos assustadores o faziam estremecer, suas pernas fraquejaram.
Desesperado, atravessou o restante da sala, chegando a bater as costas na escrivaninha, fazendo-o pular de susto com um toque quente, mas, ao mesmo tempo, gelado em suas costas.
Inúmeras dúvidas passavam pela sua mente. O que fazer? Pegar o livro? A luva? Ignorar tudo e continuar buscando um esconderijo melhor? Mas, nessa última opção, o jovem entendia que não era uma opção viável. Ele olhou para o caixão por um instante, uma sensação de que estava sendo observado vindo dele, mesmo que não houvesse ninguém.
Respondendo ao chamado, perdurou no sorriso grotesco da criatura e segurou o livro, temendo que aquela coisa que parecia mais um demônio se aproximasse dele.
Boa tarde.
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