Capítulo 39 — Entre o Inferno e a Terra
Ao tocar o livro estranho, o mundo se despedaçou como um espelho caindo do alto. Linhas tortuosas e rachaduras invisíveis serpentearam pela realidade, deformava tudo ao redor. Calli não sentia mais o chão, nem o peso do próprio corpo; era como se ele estivesse a flutuar em um sonho febril.
“O que eu fiz?”
Tentou dizer junto ao pensamento, mas sua voz se perdeu em um eco abafado, como um grito sufocado no vazio.
As pernas do jovem cederam, incapazes de suportar um peso que vinha de fora, algo imensurável, algo que o esmagava. Um som ensurdecedor invadiu a sala. Não era apenas o arrastar das correntes, mas uma força puxava Calli para as profundezas das sombras líquidas.
E ali, naquele mar de trevas, o sorriso da criatura surgiu novamente, mas agora desprovido de obscuridade, exposto e ainda mais aterrorizante. A carne retorcida e o breu intermitente formavam algo além da compreensão, um convite e uma sentença.
— Conheça… o… seu… tormento… — uma voz sibilava, não vinha de um lugar físico, mas do fundo de uma consciência na qual já não parecia a de Calli.
A visão de Calli fragmentou. Ele enxergava o mundo através de cacos de vidro, cada um mostrava um fragmento de algo diferente: o normal, o sobrenatural, o belo e o grotesco, todos costurados em uma trama envolto de caos.
O jovem caía. Ou subia. Ou permanecia imóvel enquanto tudo ao redor se movia em direções irreconhecíveis.
Abaixo de si, surgiu um céu distorcido. Era negro e profundo, como um abismo sem fim, e o próprio corpo de Calli se tornava translúcido, perdia sua consciência a cada instante. Ele tentou falar, gritar, mas sua garganta era um vazio onde as palavras se dissolviam antes de nascer.
Uma dor latejava em sua cabeça, como se ela se abrisse para expor pensamentos que não lhe pertenciam. Estava em dois lugares ao mesmo tempo: perdido entre estrelas mortas que o observavam com olhos invisíveis, e submerso em um oceano vasto, cuja pressão o esmagava sem piedade.
Cada sensação cortava-o como uma lâmina. Trazia uma eternidade comprimida em um único instante.
Então ele viu.
O castelo, colossal, ergueu-se diante dele, rasgando os céus como uma lança apontada para o infinito. Suas paredes pulsavam com uma energia indescritível, viva e antiga.
A estrela negra pairava acima, uma ferida aberta no firmamento. Não apenas queimava, mas vigiava, um olho que tudo via.
Viu o desastre. Viu a calamidade que havia devorado aquelas terras. E viu os rostos das vítimas, seus gritos ainda ecoando em um silêncio insuportável.
E se viu.
Mas quem era ele? Calli não sabia mais. Calius Von Gervain, Calli Dantès… os nomes giravam dentro de sua consciência, confundia-o, fundia-se, tornava-o algo maior e mais assustador. Ele não era apenas um, mas vários. Uma chave invisível parecia girar uma tranca dentro dele, abrindo portas que deveriam permanecer fechadas.
“Um legado”, sussurrou algo em sua mente, como um eco vindo de um sonho esquecido.
A risada veio novamente, começando como um sussurro rouco, quase amigável, mas crescendo em intensidade. Transformou-se em algo disforme, monstruoso, que reverberava nas profundezas de sua mente como um coro de vozes além do humano.
Não era apenas uma risada. Era um chamado. Um convite irresistível para mergulhar naquilo que o mundo rejeitava, uma valsa vertiginosa na beira do abismo.
E logo, ele viu.
Uma figura emergiu das sombras como se sempre estivesse ali, esperava, paciente por algo. Alto e imponente, sua presença parecia dobrar o espaço ao redor.
A barba que lhe cobria o rosto não era apenas longa; era um emaranhado de eras, acumulando poeira, sabedoria e talvez até segredos esquecidos. Os olhos, porém, eram ainda mais perturbadores: profundos como abismos insondáveis coloridos em um tom esverdeado, pareciam conter o peso de mil vidas e, ao mesmo tempo, refletiam um vazio que não deveria existir.
O nome emergiu na mente de Calli como o estrondo de um trovão: Cedric Greyfull, o Oráculo Perdido. A lembrança do nome trouxe consigo imagens fragmentadas, fragmentos de memórias que não eram suas, mas pareciam incrivelmente familiares.
Ele sabia quem era aquele homem, mas não sabia como. Cedric estava ali, mas também em outro lugar, distante, inalcançável, como um reflexo numa superfície líquida, que nunca se deixa tocar.
Calli sentiu o peso da revelação antes mesmo dela se formar por completo em sua mente.
Calius. Calli. Cedric. Três nomes, três destinos entrelaçados, um nó impossível de desatar. As identidades se sobrepunham e se dissolviam, cada uma alimentando a outra, até que já não havia distinção.
O ciclo estava ali, diante dele, nítido como o brilho de uma lâmina sob a luz de um sol estranho. Era um ciclo eterno, inescapável, como uma sentença esculpida nas estrelas antes mesmo do início dos tempos.
E então, ele ouviu as palavras. Não como um som externo, mas como algo entalhado diretamente em sua alma:
Nasceste Calius. Tornaste Calli. Retornarás Cedric.
O som dessas palavras reverberou por tudo aquilo que considerava a si mesmo, como sinos ecoando em uma catedral esquecida. Compreensão, fria e inevitável, tomou conta de Calli.
Ele não era apenas ele mesmo. Era um receptáculo, um portador de um legado mais antigo do que o próprio tempo.
O peso desse fardo não era escolha. Era destino. Uma linha reta que se estendia até o infinito, levando-o inexoravelmente ao mesmo lugar: à consumação de algo maior do que ele próprio, maior do que tudo que conhecia.
E Calli, ou Calius, ou Cedric, deixou-se consumir por essa verdade. Pois, no final, nunca houve alternativa.
…
Quando Calli acordou, percebeu um teto familiar, o mesmo teto que via diariamente desde que se mudou para Ottawa.
Sua memória parecia falhar, já era tarde, ele não sabia se havia dormido todo esse momento, mas também entendia que faltava algo, mesmo sem saber o que era.
“Que preguiça…”
Olhando pela janela do quarto, via o pôr do sol chegando, curiosamente, parecia mais belo do que antes, sentia vontade de chorar, mas não conseguia.
“Estou em casa…”
De repente, ele escutou a porta abrindo e seu querido irmão mais novo chegando. James havia retornado das aulas finalmente.
“Até o Leo voltar, sou eu que tenho que tomar responsabilidade pelo pirralho.”
Provavelmente, aquele seria um longo fim de tarde e noite, para os dois irmãos Dantès.
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