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    Dentro do quarto, Claire afundava-se nos sonhos com a mesma lentidão de um corpo submergindo num lago profundo. Havia algo de aquecido, reconfortante, quase maternal no peso do esquecimento temporário que o sono proporcionava. Mas a mente dela, teimosa, não se deixava levar por completo.

    Sonhava, mas sabia que sonhava.

    E o sonho não era gentil.

    Era um eco distante de sua infância. Do tempo em que seus dias eram mais simples, quando corria por ruas poeirentas ao lado de Teresa, a menina de cabelos tão claros que quase se confundiam com a luz da manhã.

    Teresa.

    O nome veio como um sussurro através do tempo. O nome da única amiga que realmente teve. O nome da sombra que ainda caminhava ao seu lado, invisível, mas sempre presente.

    Nos dias bons, Teresa era uma lembrança cálida, um sorriso esquecido na ponta dos lábios de Claire. Nos dias ruins, ela era um peso no peito, um espectro amargo que sussurrava segredos ao pé do ouvido.

    A garota sonhou com uma tarde específica. Onde elas estavam sentadas no degrau da velha mercearia da rua principal, Teresa mordiscando um pedaço de pão seco que haviam roubado na manhã anterior.

    — O que você quer ser quando crescer? — perguntou Claire, com a boca cheia.

    Teresa se lembrava da pergunta porque, na época, aquilo lhe parecera importante. Como se a resposta pudesse mudar tudo.

    — Investigadora Paranormal — respondeu, sem hesitação.

    Claire riu, um som leve, despreocupado.

    — Você só quer ser detetive porque gosta de fuçar na vida dos outros.

    — Isso é meio que o trabalho deles — retrucou Teresa, com um sorriso no rosto

    — Você não tem medo do que pode encontrar?

    Teresa pensou por um instante, olhando para a rua vazia à frente.

    — O que quer que seja, já está lá. Fingir que não existe não vai mudar nada.

    Teresa sorriu, mas havia algo nos olhos dela, algo que Claire não entendeu na época. Algo que só entenderia anos depois.

    Naquela mesma noite, Teresa desapareceu.

    E no mesmo instante em que Claire percebeu isso no sonho, o cenário ao redor dela mudou.

    As ruas ensolaradas da infância se dissiparam como névoa, e de repente tudo era escuridão e cheiro de fumaça. Ela estava de volta àquela noite. A noite em que sua vida foi ceifada e moldada ao mesmo tempo.

    O som das sirenes ecoava ao longe, intercalado os gritos. O cheiro de sangue e cinzas se misturava com o vento frio que cortava sua pele.

    Ela se viu parada ali, mais jovem, os olhos arregalados diante do horror. Os corpos carbonizados, o vermelho que manchava as calçadas, o vazio onde sua casa deveria estar.

    A garota acordou com um suspiro, o coração martelando forte no peito.

    Por um momento, Claire não soube onde estava. O teto manchado acima dela parecia estranho, como se pertencesse a um lugar que não era o seu. O calor das cobertas parecia errado, como se algo invisível ainda tentasse puxá-la de volta ao pesadelo.

    Ela fechou os olhos e respirou fundo.

    Foi apenas um sonho.

    Mas sabia, em algum canto de sua mente, que aquilo nunca foi apenas um sonho.

    “Que saudade de vocês…”

    Claire apertou o próprio peito, como se tentasse conter algo que insistia em escapar. A dor era antiga, familiar, um espectro que se escondia entre os batimentos do seu coração. Memórias como aquelas eram sua força e seu fardo, a chama que a mantinha de pé e o peso que às vezes ameaçava esmagá-la.

    Mas havia algo mais agora. Algo mais urgente.

    O Wendigo.

    Ela ergueu os olhos para a janela. Lá fora, a noite se estendia como um oceano sem fim, negra e insondável, pontilhada por estrelas que tremeluziam como candelabros distantes. Não havia luar naquela noite, apenas a escuridão infinita e a promessa silenciosa do universo.

    Era um desejo de infância, olhar para as estrelas. Quando era pequena, acreditava que poderia alcançá-las, que bastaria um esforço suficiente para romper a distância entre a terra e o céu.

    Agora, sabia que esse tipo de esperança era coisa de criança. Mas ainda assim…

    Ela se sentia destinada a isso.

    Havia um dia, muitos anos atrás, em que Teresa dissera algo semelhante. Estavam deitadas sobre um telhado, olhando para o céu noturno. O vento soprava leve, os sons distantes da cidade pareciam insignificantes sob a vastidão do cosmos.

    — Um dia — murmurou Teresa —, eu vou brilhar mais forte do que qualquer estrela.

    Claire riu.

    — Você não pode ser uma estrela.

    — Quem disse?

    — O universo.

    Teresa virou a cabeça para encará-la, os olhos claros brilhando na escuridão.

    — Então, eu vou provar que o universo está errado.

    O silêncio da noite era um véu espesso que cobria tudo, pesado como uma mortalha, apenas quebrado pelo farfalhar esporádico das árvores ao vento. O ar estava frio, carregado de umidade, e Claire podia sentir cada partícula de névoa se acumulando em sua pele, como se o próprio tempo hesitasse em seguir adiante. O vidro da janela, embaçava levemente com sua respiração ritmada. Mas seus olhos, duros como pedra, permaneciam fixos no céu negro, onde as estrelas tremeluziam, distantes e impassíveis, alheias ao que se passava abaixo.

    Agora, anos depois, ela sentia o mesmo. Um dia, ascenderia ao topo. Um dia, seu nome brilharia tão forte que nenhum esquecimento poderia apagá-lo, nenhuma sombra poderia devorá-lo. Um dia, não haveria dúvidas, nem temores, nem memórias partidas pelo tempo.

    Pelas duas.

    O pensamento de Teresa bateu contra sua mente como uma onda fria. Era quase uma dor física. Os anos não a apagaram, tampouco suavizaram a laceração que sua ausência deixara. Ela não sabia se Teresa ainda estava em algum lugar do mundo, perdida em alguma cidade sem nome, vivendo sob um novo céu, com um novo nome e um passado enterrado. Ou se estava morta — enterrada sob a terra dura, com os ossos branqueando no esquecimento, devorada pelo silêncio que um dia alcança todos.

    Mas nada disso importava.

    O sonho ainda existia. A promessa ainda existia.

    E Claire não romperia essa promessa, não importava quantos anos se passassem, quantos obstáculos surgissem, quantos monstros rastejassem na escuridão tentando arrastá-la para as mesmas sombras que engoliram Teresa.

    O Wendigo.

    O pensamento da criatura deveria ser aterrorizante. Ela sabia o que ele era, o que ele fazia. Sabia o que acontecia com aqueles que encontravam seu olhar e escutavam seu chamado. Mas Claire não sentia medo. Não mais. O medo era uma corrente que ela já havia quebrado há muito tempo.

    Apenas a determinação restava.

    Seja o Wendigo ou qualquer outro monstro que o destino colocasse à sua frente, nenhum deles arrancaria dela aquilo que queimava tão intensamente dentro de si. Nenhum deles silenciaria sua vontade de ascender.

    Ela cerrou os punhos, os músculos tensionando até os nós dos dedos ficarem brancos.

    Se o universo quisesse engolir sua luz, que tentasse.

    Se os deuses quisessem apagá-la, que viessem.

    Se o destino quisesse dobrá-la, que trouxesse a sua pior tempestade.

    Ela queimaria mais forte.

    Mais quente.

    Mais incandescente do que as próprias chamas que um dia destruíram tudo.

    E, quando o mundo finalmente olhasse para ela, não haveria mais silêncio.

    Haveria apenas fogo.

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