Capítulo 57 — O Teatro Invisível
Se levantando da cama, Claire sentiu o frio do piso de madeira morder a pele de seus pés. O contato era quase doloroso, um choque súbito que a fez estremecer por um instante. O quarto ao seu redor estava mergulhado na penumbra, as sombras projetadas pelos móveis alongavam-se nas paredes como espectros silenciosos.
A casa estava imóvel, envolta no torpor do sono alheio, e tudo que se ouvia era o fraco suspiro do vento lá fora, roçando contra as janelas com dedos invisíveis.
“Que sede…”
O pensamento veio como um sussurro perdido em meio ao nevoeiro da madrugada. Claire esticou o braço para o celular na mesa de cabeceira, os números digitais piscavam com um brilho fraco e azul. Cinco da manhã. Ainda era cedo demais para qualquer um estar acordado.
Ela caminhou pelo corredor, onde a escuridão parecia mais espessa, mais presente.
O silêncio ali era diferente, como se algo invisível espreitasse nas frestas entre as portas fechadas, a observando passar com olhos ocultos.
Nada mais que tolice.
Era apenas sua mente brincando consigo mesma, um velho hábito de infância que nunca conseguiu domar completamente.
Ao entrar na sala de estar, Claire avistou a televisão, um retângulo negro repousando na quietude. Ligou com um toque suave no controle remoto, ajustando o volume para um nível quase imperceptível. O brilho súbito da tela iluminou seu rosto, projetando reflexos distorcidos nas paredes ao redor e principalmente atrás do sofá.
“Pelo visto, não vou conseguir dormir…”
Uma resignação cansada pesou em seus ombros. O sono, que já era um visitante escasso em sua vida, havia partido cedo naquela noite, deixando para trás apenas um vazio inquieto.
Na televisão, um filme desconhecido se desenrolava. As cores lavadas da cena, os enquadramentos calculados, tudo indicava uma obra antiga, daquelas que exigiam atenção e paciência para serem compreendidas. Um homem de cabelos castanhos-escuros e sorridente caminhava em meio a uma cidade que parecia… excessivamente perfeita. Truman. Esse era o nome do personagem.
Claire se afundou no sofá, puxando os joelhos contra o peito, e ficou assistindo em silêncio.
A história logo capturou sua atenção de um jeito estranho, como um fio invisível que a puxava para dentro daquela farsa cuidadosamente construída. Havia algo de profundamente perturbador na ideia de uma vida inteira orquestrada, um palco disfarçado de realidade, um mundo fabricado onde cada passo já havia sido ensaiado antes mesmo de ser dado.
“Que ironia.”
A crítica era clara, quase brutal. O filme expunha, sem piedade, a maneira como o prazer de assistir algo retirava até mesmo a liberdade de um homem. Truman não era apenas o protagonista de um programa de TV; era a vítima perfeita, um símbolo do que acontece quando se vive sob os olhos famintos de uma sociedade que transforma tudo em espetáculo.
Claire apertou os dedos contra os braços, sentiu um calafrio diferente percorrer sua pele. Talvez fosse a hora da manhã, ou talvez fosse a familiaridade incômoda daquilo tudo. Quantas pessoas vivem em uma gaiola invisível, sem jamais notar as grades?
Ela desviou os olhos da tela por um momento e olhou para a janela. Lá fora, o céu permanecia vasto e indiferente, pontilhado por estrelas que brilhavam sem a menor das preocupações. O mundo real é mesmo tão diferente?
Um único pensamento a atravessava:
“E se, no fim, todos nós sermos iguais a Truman?”
Se erguendo do sofá, Claire sentiu os músculos protestarem contra o frio que agora parecia ter se infiltrado em sua pele.
Os devaneios se dissiparam como névoa ao vento, mas deixaram um gosto amargo, um resquício de algo não resolvido que se agarrava à sua consciência.
Ela seguiu até a cozinha em passos lentos, cruzando o piso de madeira desgastado que rangia sob seus pés. Abriu a geladeira, a luz fraca do interior projetava sombras pálidas em seu rosto. Pegou uma garrafa de água e fechou a porta com um movimento sem pressa.
Puxou uma cadeira e se sentou, seu olhar era perdido na janela. Lá fora, a madrugada resistia, teimosa, ao amanhecer que se aproximava. A neve caía em silêncio, cobrindo o mundo com um véu branco que escondia tanto a beleza quanto o perigo.
“Tantas coisas… tantas merdas…”
Ultimamente, sua mente não lhe dava trégua.
Os pensamentos giravam em círculos, retornando sempre ao mesmo ponto: a relíquia. A maldita coisa que todos pareciam temer, mas que ninguém conseguia explicar direito. O que era, afinal? Uma maldição, um fardo, um segredo sujo enterrado por gerações?
Ela pressionou os dedos contra as têmporas, sentindo a pressão do pensamento incessante martelando em seu crânio. E Liam? E Leonard? Os dois pareciam ter suas próprias razões para estarem ali, razões que raramente compartilhavam. Leonard, sempre tão sério, olhava para o mundo como se enxergasse algo que ninguém mais podia ver. Liam, por outro lado, mascarava seus sentimentos atrás de palavras rápidas e um sorriso que nunca parecia inteiramente sincero.
Mas, no fundo, Claire sabia que ambos estavam presos no mesmo tormento que ela.
E ela?
Que diabos ela estava fazendo ali? Que propósito era aquele que parecia escorregar por entre seus dedos cada vez que tentava agarrá-lo?
Claire soltou um suspiro cansado, inclinando a cabeça para trás. O teto acima parecia girar por um momento, como se zombasse de sua exaustão.
“Ah… Fodase.”
Espreguiçando, os ossos estalaram em resposta, e empurrou a cadeira para trás. Seus pés descalços encontraram o frio do chão novamente quando caminhou até a porta. Os dedos trêmulos giraram a chave na fechadura.
O trinco cedeu com um estalo seco.
O ar gélido da madrugada a atingiu no instante em que cruzou a soleira. O vento cortante soprou contra seu rosto, trazendo o cheiro limpo e metálico da neve. Ela puxou o casaco mais para perto do corpo, os olhos fixos na vastidão branca que se estendia diante dela. Pequenos motins de neve dançavam pelo ar, girando como fantasmas silenciosos sob a luz pálida dos postes.
“Wendigo…”
A palavra ressoou em sua mente como um sussurro distante, carregado pelo vento.
Quem ele está de olho?
A resposta parecia estar ali, escondida entre as sombras alongadas que se misturavam ao branco infinito da paisagem. Mas o que Claire sabia era que ela não a encontraria agora. Não ainda.
Fechou a porta atrás de si e começou a caminhar, seus passos afundando suavemente no tapete de neve recém-caída. O silêncio da madrugada era absoluto, quebrado apenas pelo som de sua própria respiração.
A manhã estava próxima.
E, com ela, as respostas que tanto procurava. Ou, talvez, mais perguntas.
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