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    … 

    Na penumbra da sala, os pequenos detalhes eram tudo. A luz fria da manhã se infiltrava através das cortinas semi abertas, lançando longas sombras sobre o chão de madeira gasto da cozinha. O vento lá fora uivava suavemente, como se murmurava algo aos ouvidos de quem estivesse disposto a ouvir. A televisão, com seu brilho azul intermitente, lançava reflexos vacilantes nas paredes, transformando o ambiente em um cenário quase irreal.

    Leonard sentia um enorme peso nos olhos, como se cada pensamento estivesse coberto por uma névoa cinzenta e espessa. O cansaço era como uma sombra constante, acompanhando cada movimento, cada tentativa de raciocínio claro. Ele olhou para o lado e viu Katherine, que, sem nenhuma pressa, quase mastigava mecanicamente um pedaço de pão. O café esfriava em sua caneca esquecida na mesa.

    No fundo, de sua mente, um sussurro continuava a chamá-lo, distante, como uma voz ouvida através de uma porta fechada. Ininteligível, mas insistente. Era como se o próprio inverno, com sua vastidão branca e interminável, estivesse tentando penetrar em seus pensamentos.

    “Eu deveria voltar para a cama…”

    Leonard piscou, tentando se livrar do cansaço, quando Liam, que estava apoiado em uma cadeira perto da janela, falou sem tirar os olhos do horizonte.

    — Quem vocês acham que o Wendigo está observando?

    A pergunta veio como uma pedra arremessada em um lago congelado na sala. O silêncio que se seguiu foi carregado de tensão, preenchido apenas pelo leve som da televisão e do vento batendo contra as janelas. O programa matinal transmitia notícias locais sobre desaparecimentos recentes e mudanças climáticas atípicas para a região.

    Leonard coçou a nuca, sem tirar os olhos de Katherine. Era um olhar hesitante, misturado a algo que não queria admitir, uma espécie de medo.

    — Sei lá… talvez a Claire ou o Cassiano — respondeu Leonard, sua voz saindo rouca e arrastada.

    Katherine parou de mastigar por um instante. Sua expressão, por um breve momento, perdeu a luz. Havia algo obscuro em seus olhos, como se ela estivesse escondendo algo sob camadas de palavras não ditas. Ela tomou um último gole de café antes de colocar a caneca com firmeza sobre a mesa. Quando finalmente falou, sua voz parecia carregada por mais do que simples exaustão.

    — Já falei para vocês… não é hora de falar sobre isso.

    Foi mais uma advertência do que uma sugestão.

    Leonard sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Não foi causado pelo vento lá fora, mas pelo tom de Katherine.

    O murmúrio em sua mente agora parecia ganhar forma, mas ainda não era compreensível. Era como uma canção antiga, esquecida nas profundezas de uma memória coletiva que não deveria ser revivida. Leonard esfregou os olhos, mas o desconforto não passou.

    “Esse inverno é tão rigoroso…”

    De repente, sem que ninguém percebesse, Cassiano surgiu ao lado deles. O som de sua mochila sendo aberta quebrou o breve transe em que todos pareciam estar presos. Ele retirou algumas coisas para se alimentar, higienizar e vestir.

    — Cassiano, sempre agindo como se estivéssemos em uma excursão da escola — resmungou Liam, soltando uma risada sem humor. — Parece até férias entre amigos, né?

    Cassiano deu de ombros e se sentou ao lado deles. Ele sempre foi o mais prático do grupo, o que via soluções antes de enxergar os problemas. Mas, dessa vez, até ele parecia cansado e sombrio.

    O programa matinal continuava ao fundo, mencionando algo sobre uma tempestade de neve iminente e um aviso para os moradores não saírem de casa.

    Katherine olhou em volta, como se percebesse a ausência de algo, ou alguém.

    — Cadê a Claire? — perguntou, o tom dela misturando preocupação e impaciência.

    Cassiano ergueu os olhos do caderno, o rosto marcado por uma exaustão contida.

    — Está dormindo — respondeu ele, com um suspiro curto.

    Mas algo na maneira como ele disse isso não soava natural.

    O silêncio que se seguiu foi mais opressivo do que o anterior. Cada um deles sabia que Claire não era o tipo de pessoa que conseguia dormir pacificamente. E, se ela estava realmente dormindo, isso significava que os pesadelos — ou algo pior — ainda não haviam terminado.

    — Ah, chega. Vou acordar ela. — Leonard se levantou da cadeira de maneira abrupta, a madeira rangendo sob o peso do movimento. Não esperou que os outros respondessem. 

    Havia uma espécie de energia que o impulsionava, mas não era determinação, era inquietação disfarçada. Olhou para Katherine e Cassiano, que permaneciam imóveis, como estátuas esculpidas pela exaustão.

    Ao entrar no corredor estreito, o frio o envolveu como um abraço amargo. Não era o frio comum de uma casa mal aquecida no inverno; era um frio que parecia emergir de dentro das paredes, das sombras e do chão de madeira gasta.

    “Inverno.” 

    A palavra surgiu em sua mente sem ser convidada, como um eco distante de algo esquecido ou reprimido.

    O corredor parecia mais longo do que deveria ser. As tábuas sob seus pés rangiam a cada passo, produzindo um som que se misturava ao silêncio opressivo da casa. À medida que avançava, Leonard sentiu um calafrio subir pela espinha, mas continuou em frente, teimoso.

    Ao passar pela porta do banheiro, percebeu que ela estava aberta. O vapor que outrora cobria o espelho havia desaparecido, deixando para trás apenas uma superfície límpida, mas fria. O vazio do banheiro parecia ressoar algo sombrio, uma ausência que não deveria estar ali. Leonard não parou. Se Claire não estivesse acordada, ele mesmo deitaria e mergulharia de volta nos sonhos. Ou pelo menos tentaria.

    Finalmente, ele parou em frente ao quarto da garota. Havia algo de errado. A intuição, aquele sussurro no fundo da consciência que ninguém ousaria escutar, gritava em seu ouvido. Não abra. Mas Leonard nunca foi o tipo de pessoa que seguia instintos de medo.

    Deu três toques na porta.

    O som ecoou de maneira estranha, oco e vazio, como se a sala atrás da porta não existisse ou estivesse sugada para outra dimensão. Ele esperou alguns segundos. Nada. Nem o estalo de móveis antigos, nem mesmo o sussurro do vento.

    A impaciência tomou conta. Ele empurrou a porta.

    O quarto estava vazio. A cama, com os lençóis perfeitamente esticados, não mostrava sinais de ter sido usada. O ar tinha um cheiro metálico e seco, como o aroma que precede uma nevasca violenta. As sombras pareciam mais profundas dentro daquele espaço pequeno e quase opressivo. Nenhum sinal de Claire.

    E então, os murmúrios começaram a crescer novamente. Antes, eram apenas um ruído distante, mas agora estavam tomando forma. Não eram palavras, mas vinham carregadas de uma intenção, como se algo antigo estivesse tentando emergir de um sono forçado.

    Seus olhos, quase sem querer, foram atraídos para a janela. O vidro estava congelado, pequenas rachaduras nas bordas se assemelhando a raízes finas. E foi ali que viu.

    Um reflexo.

    Por um instante, Leonard encarou seu próprio rosto. Mas algo estava errado. Seus olhos não combinavam. O olho esquerdo estava idêntico ao direito, mas isso o deixava por algum motivo desconfortável. Um tremor percorreu seu corpo.

    E então, no meio do silêncio sufocante, uma voz ecoou em sua mente.

    Acorde.

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