Capítulo 61 — Onde as Vozes Cantam e os Sonhos Sussurram
Sob a luz que nunca se apaga, chamamos teu nome, Awain!
Escudo dos justos, vigia eterno!
O som dos cânticos cortava o ar como lâminas enferrujadas, reverberando entre as casas velhas, deslizando por ruas de pedra onde o musgo crescia nos cantos. Cada verso entoado tinha um peso antigo, um peso de séculos, como se aquelas palavras fossem alicerces de uma cidade que jamais ruiria.
Quanto mais Leonard se aproximava, mais a melodia se enraizava em sua pele. Não era apenas o eco das vozes — era algo mais profundo, mais antigo, algo que fazia seu peito vibrar como um tambor tocado por mãos invisíveis.
“Estão realizando uma missa?”
A pergunta veio a ele como uma lâmina fria deslizando pela garganta. Seu instinto gritava que havia algo errado, algo que não se via, mas se sentia — como uma tempestade prestes a rasgar o céu antes mesmo do primeiro trovão. Desde que haviam chegado ali, cada passo era um jogo de azar, um teste de resistência sobre gelo fino. Mas o medo… O medo era pior do que tudo o que haviam enfrentado.
E então, outro pensamento emergiu, tão amargo quanto um gole de vinho azedo:
“Onde será que ela está?”
A cruz erguida sobre a igreja se destacava contra o céu, sua silhueta pálida e fantasmagórica lançando uma sombra esguia sobre o chão. Por um momento, Leonard sentiu calafrios. Não era apenas um símbolo — era uma advertência. Uma sentinela silenciosa, observando aqueles que ousavam se aproximar.
Que os ventos levem a tua voz,
Que as raízes espalhem tua força,
Que o céu ressoe teu juramento,
Awain, desperta e nos aguarda!
Estava na porta. A última barreira entre ele e o que quer que houvesse lá dentro. A madeira grossa parecia pulsar, viva com os cânticos, como se a própria estrutura da igreja respirasse junto com os devotos. Mas algo dentro dele hesitou. E se o que estivesse além daquela porta não fosse nada que ele quisesse ver?
Ele se moveu pelo lado, contornando a parede de pedra fria, e ali estavam eles. Os aldeões. Homens, mulheres e crianças, todos de pé ou ajoelhados, os rostos voltados para o altar invisível na igreja. Seus olhos eram poços sem fundo, cheios de algo que Leonard não conseguia identificar. Era fé? Era medo? Ou eram as duas coisas misturadas de um jeito que só aqueles que viveram sob um mesmo Deus e uma mesma espada poderiam entender?
E então ele a viu.
Um pouco afastada dos demais, sentada sobre um banco velho, os cabelos ruivos como uma chama que ainda resistia ao vento. O coração de Leonard deu um salto estranho, um aperto entre a euforia e a apreensão.
“Finalmente, eu te achei.”
Mas… Por que ela estava ali? Sozinha, quieta, os olhos baixos como se não quisesse ser vista?
Uma pontada de inquietação percorreu seu peito. Nada ali estava certo. E pior: talvez ele estivesse prestes a descobrir o porquê.
Quando a noite se ergue voraz,
Tua lâmina brilha, indomável!
Quando o medo sussurra traiçoeiro,
Tua presença é nossa muralha!
A melodia se espalhava como uma neblina pesada, impregnando as paredes de pedra, os rostos cansados, o ar denso com cheiro de cera derretida e madeira antiga.
Leonard caminhava entre as vozes, cada passo ecoando com um peso estranho, como se a igreja respirasse com ele. O fervor dos fiéis era palpável, uma corrente invisível que o puxava para dentro daquela devoção, para dentro da loucura sagrada que incendiava aqueles olhos.
Então, em meio às sombras dançantes da luz trêmula das velas, ele os viu.
A silhueta de Chloe, com seus olhos atentos, a expressão entre o medo e a entrega. O garoto que gostava de Morgan, cujo nome Leonard não conseguia lembrar naquele momento, ajoelhado com os punhos cerrados em oração. A própria Morgan, a postura rígida, os lábios se movendo em preces murmuradas. Luke, imóvel como uma estátua, como se tivesse sido esculpido diretamente daquela igreja.
E, no entanto…
“Ela não está aqui…”
Que os ventos levem a tua voz,
Que as raízes espalhem tua força,
Que o céu ressoe teu juramento,
Awain, desperta e nos aguarda!
Sentou-se ao lado de Claire, forçando a si mesmo a se misturar, a imitar os gestos, a sussurrar as palavras que preenchiam aquele lugar como um véu sagrado. Mas mesmo enquanto repetia os versos, sua mente estava longe. As peças do tabuleiro estavam se movendo, mas a imagem ainda era nebulosa.
“Grande Ceia… Awain… Onde tudo isso se encaixa?”
O nome de Awain pulsava nas preces, um mantra que parecia prender os aldeões em um transe coletivo. Mas Claire… Claire parecia indiferente. Leonard a observou de relance, tomando cuidado para não chamar atenção. Seus olhos não tinham aquele brilho distante, aquela obediência cega que ele via nos outros. Ela não estava sobre o mesmo domínio.
Mas então…
Oh, Awain, farol da aurora,
Que ergues os justos e guias os perdidos!
Tua vitória floresce nos campos,
Tua mão sustenta os humildes!
O alívio momentâneo foi um erro.
Porque, no instante seguinte, um pensamento frio e cortante o atingiu como um balde de água gelada.
Se não era Claire…
Se Claire não era a peça que faltava…
Então, quem estava chamando a atenção do Wendigo?
O sussurro de vozes e cânticos pareceu se distorcer, ganhar um tom ameaçador sob a superfície de sua mente inquieta. Seus olhos se estreitaram.
“Seria o Cassiano?”
O nome ecoou em sua mente como um trovão distante, um presságio de algo terrível. Se estivesse certo… então talvez já fosse tarde demais.
Que as águas cantem tua graça,
O canto se espalhava pelo ar como uma onda morna, sussurrando promessas que Leonard não conseguia compreender por inteiro. Havia algo de hipnótico naquilo, um ritmo ancestral, um fluxo invisível que percorria cada palavra.
“Mas o que me deixaria fora dessa equação?”
A pergunta lhe veio como uma lâmina fria. Ele não gostava de perguntas assim, das que ficavam presas na garganta como um espinho impossível de engolir.
Que a terra pulse em teu ritmo,
Embora não conhecesse as capacidades de seus aliados, conhecia bem as suas próprias — ou ao menos gostava de acreditar nisso. Mas o que ele via como um dom, os outros poderiam chamar de maldição. Seu corpo carregava um fardo estranho, um peso que ninguém poderia aliviar.
Seus sonhos.
Sonhos que lhe mostravam fragmentos do futuro, vislumbres de algo que ainda não havia acontecido, mas que, de alguma forma, já existia. Ele sempre pensou neles como ecos de um tempo distorcido, sombras projetadas antes mesmo da luz surgir. Mas aquele sonho…
Aquela porta…
Awain, luz que jamais apaga!
Por que, mesmo antes de herdar a “Visão Divina” ele já tivera um desses vislumbres? Seria um erro supor que aquilo era apenas mais um traço de sua maldição? As peças estavam ali, espalhadas diante dele, mas a conexão entre elas permanecia um mistério.
É o escudo contra a fome e o medo,
É o abrigo na tempestade cruel!
Ele inspirou lentamente, sentindo o peso da atmosfera ao seu redor. O cântico não parava. As vozes se misturavam, criando algo que não era apenas som, mas um sentimento, um torpor que se infiltrava sob a pele e nos ossos.
“A porta teria ligação direta a ele?”
Se havia algo que aprendera ao longo da vida, era que nada surgia sem um propósito. Nenhuma visão era gratuita, nenhuma peça estava solta no tabuleiro por acaso. Mas quem estava movendo essas peças?
“Sonhos…”
Eles o assombravam. Sempre haviam assombrado.
Desde a infância, ele os via como mensagens fragmentadas, imagens sem contexto que vinham e iam como marés imprevisíveis. No começo, pensava ser apenas imaginação febril, delírios de uma mente inquieta. Mas então, os sonhos começaram a se tornar reais.
E agora, essa porta.
Esse presságio.
Nas tuas mãos, colhemos o trigo,
Nos teus passos, seguimos fiéis!
Ele apertou os olhos, tentando afastar o peso da revelação. Não era o momento para isso. O presente exigia sua atenção. Mas era difícil ignorar aquela sensação estranha, aquele eco reverberando dentro de si.
Que os ventos sussurrem teu nome,
Que as águas cantem tua graça,
Que a terra pulse em teu ritmo,
Awain, luz que jamais se apaga!
As palavras flutuavam ao redor dele e, por um breve instante, Leonard sentiu algo que não sentia há muito tempo: pertencimento.
Havia algo de terrível e, ao mesmo tempo, magnífico naquela sensação.
Finalmente, estava conectado a um lugar. Finalmente, havia encontrado algo que o ancorava. Mas, no mesmo instante em que esse pensamento floresceu, veio a dor.
A falta de seus irmãos.
A lembrança deles foi como um punho se fechando ao redor de sua garganta. O passado se estendia como uma estrada perdida na névoa, chamando-o de volta, sussurrando que aquele não era seu lar. Não importava o que sentisse agora, não importava a euforia passageira que pulsava em suas veias.
O caminho para casa ainda o aguardava.
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