Capítulo 62 — Entre a Chuva e o Silêncio
…
Ao final da missa, os fiéis se dispersaram em um silêncio resignado, no qual rumavam para suas obrigações matinais. As portas pesadas da igreja rangiam em despedida, deixando para trás apenas os últimos resquícios de um incenso queimado.
Este foi o primeiro momento… em que Leonard pôde falar com Claire desde que a encontrou.
A arquitetura da igreja o envolvia como um casulo. Cada centímetro parecia meticulosamente entrelaçado ao outro, do chão frio sob os pés à grandiosa pintura próxima ao altar: um homem severo segurando um bebê com uma única mão, como se sustentasse o próprio destino do mundo. As sombras das colunas alongavam-se no piso, ondulando conforme a luz filtrada pelos vitrais tingia tudo de um azul sagrado.
“Isso é… incrível.”
No fundo da nave, Chloe permanecia estática, envolta em sua túnica branca, olhos absortos em algo que apenas ela via. Talvez sentisse o mesmo peso, o mesmo magnetismo da cena. Ou talvez estivesse apenas escutando o que ele não conseguia ouvir.
Mas junto a toda essa reverência, veio o golpe mais cruel: a lembrança de seus irmãos. A falta deles roía suas entranhas de dentro para fora.
Tuck!
Uma cotovelada seca acertou seu braço. Leonard piscou, arrancado de seu devaneio.
— O que foi? — Claire o encarava, sobrancelha arqueada.
Ele demorou um instante para responder. A garganta seca, a saliva descendo como areia.
— Esse lugar é muito lindo…
O olhar dela não mudou.
“Mas…”
— Onde você esteve? — murmurou.
Claire enrolou uma mecha de seu cabelo carmesim entre os dedos, um possível tique nervoso que Leonard viu anteriormente.
— Saí para andar, nada de mais.
A resposta veio com um encolher de ombros, evasiva demais para ser verdadeira. Mas ela não lhe deu tempo para insistir. Ajeitou os cabelos e virou-se.
— Vamos.
— Ah… certo.
Ele demorou um passo a mais para segui-la, e quando cruzaram as portas da igreja, o ar lá fora já estava denso, úmido. Acima deles, as nuvens negras pendiam baixas, pesadas, carregadas com a promessa inevitável de uma tempestade.
O vento soprou gélido, carregando consigo o cheiro metálico da terra molhada. A neve que antes se empilhava nas calçadas agora se dissolvia sob a fina garoa que começava a engrossar. Leonard sentia o frio subir pelas botas, penetrando até os ossos.
— Para onde vamos? — perguntou, sem tirar os olhos de Claire.
— Vamos andar por aí. Precisamos descobrir algo, certo? — respondeu ela, o olhar varreu os arredores como se esperasse encontrar alguma pista escondida entre as casas de madeira e pedra.
O caminho à frente parecia mais difícil agora, como se cada passo na neve exigisse o dobro do esforço. Talvez fosse apenas o cansaço. Ou talvez fosse o silêncio entre os dois, tão pesado quanto o céu nublado acima deles.
Tortuoso.
A chuva começou tímida, gotas esparsas que sumiam no tecido de suas roupas. Mas não demorou a ganhar força.
“Não tive experiências tão boas com a chuva…”
Os pingos se multiplicaram, insistentes, impossibilitando ignorá-los. Não chegariam em casa antes da tempestade. O comércio parecia a melhor opção.
No centro do vilarejo, a rotina seguia como sempre, ainda que os comerciantes começassem a fechar as tendas e recolher mercadorias para evitar o aguaceiro iminente. O cheiro de pão assado misturava-se ao da lenha queimada, uma promessa de calor que contrastava com a umidade cortante do lado de fora.
— Por que deixou a televisão ligada naquela hora? — Leonard quebrou o silêncio.
Claire manteve o olhar à frente, como se a pergunta fosse insignificante.
— Vi um monte de merda. Não aguentei e saí antes de tomar um ar.
A resposta veio sem emoção, mas ele conhecia aquele tom. Era o mesmo que alguém usaria para fechar um livro antes do fim, recusando-se a encarar o desfecho.
“Entendi…”
Pinga. Pinga.
Uma gota gélida tocou seus cabelos, e algo dentro dele despertou. Havia algo que precisava perguntar. Algo que não podia mais ignorar.
— Ei.
Segurou levemente a manga da camisa dela. Os contornos do comércio tomavam forma ao redor, sombras se movendo atrás dos panos.
E, no entanto…
Ele sentia os olhos. Invisíveis, mas presentes. Não de pessoas, não de figuras definidas, mas de algo impessoal, distante, como uma plateia assistindo a um programa sem interagir.
— O que foi? — Claire se virou para ele.
Gole.
Leonard engoliu seco, o desconforto formando um nó em sua garganta.
— Você não está sendo controlada também?
Os olhos dela encontraram os dele. Castanhos, profundos, intensos. Mas o que viu ali não era o mesmo brilho que antes reconhecia. Algo estava diferente.
— Que merda você está falando?
A resposta foi um sussurro carregado de irritação. Ela não desviou o olhar. Nem ele.
Não…
Ela não estava sendo controlada.
— Nada, não, deixa para lá.
Suspirou e virou-se para frente, os pingos da chuva tornando-se mais insistentes. Esticou a mão, sentindo a umidade engrossar.
Gotejo.
Não havia mais tempo para hesitar. Leonard tomou a dianteira e puxou Claire pela manga. O pano molhado deslizou entre seus dedos, mas ela não resistiu. Entraram apressados em uma das tendas mais próximas.
O cheiro de carne assada e caldo quente pairava no ar, misturando-se ao odor persistente de madeira úmida e fumaça. As mesas de madeira estavam desalinhadas, os bancos gastos, algumas velas tremeluzentes presas em castiçais de ferro enferrujado davam ao ambiente uma luz irregular, que dançava nas sombras das paredes. O lugar lembrava mais um refúgio improvisado do que um comércio de verdade — embora, para um vilarejo como aquele, talvez fosse exatamente isso.
— E agora? — perguntou ela.
Leonard virou-se para ela.
— O quê?
— O que vamos fazer?
“Hummm…”
A pergunta deveria ser simples, mas ele não tinha resposta. E isso o incomodava mais do que gostaria de admitir.
“Por que não sei? Isso nunca aconteceu antes. Sempre há um próximo passo… sempre houve.”
Mas agora?
Era como se um vazio tivesse se aberto no meio da estrada e os impedisse de seguir.
— Não sei. — Finalmente quebrou o silêncio. — Talvez aguardar?
O instinto o preparou para um tapa, um olhar furioso, uma resposta cortante.
Entretanto.
Nada.
Claire apenas suspirou e desviou o olhar, voltando a encarar a chuva do lado de fora.
“É uma evolução pelo menos… Né?”
O silêncio se acomodou entre eles, tão natural quanto a garoa que engrossava do lado de fora. As gotas batiam no telhado improvisado da tenda com um ritmo monótono, formando pequenas poças no chão de terra batida.
Leonard apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos. O calor da pequena lanchonete contrastava com o frio que ainda grudava em suas roupas.
Sem mais palavras, apenas ficaram ali, observando a chuva deslizar pela lona gasta da cobertura, esperando algo que nem sabiam o que era.
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