Capítulo 85 — O Segundo Fragmento
“Esse sentimento…”
Era como uma ressonância profunda, um chamado que ecoava não apenas em seus ouvidos, mas em seu próprio sangue. A espada diante dele não era apenas uma arma — era uma entidade, um fragmento da escuridão primordial. Sua lâmina, mais negra que o vazio entre as estrelas, absorvia a luz ao redor como se devorasse a própria realidade. Os detalhes em seu cabo e guarda contavam histórias de eras esquecidas, runas desbotadas pelo tempo ainda pulsando com um poder ancestral.
Calli sentiu o peso do ar mudar, como se o mundo estivesse prendendo a respiração.
— Eu entendo… — Sua voz saiu rouca, quase irreconhecível.
Cada inspiração doía. O ar era espesso, intoxicante, carregado com os ecos de milhares de vozes — algumas sussurrando segredos, outras gritando em agonia. Era impossível distinguir se vinham de fora ou de dentro de sua própria mente.
Então, a marca em seu braço acendeu.
Um padrão dourado, até então adormecido sob sua pele, irradiou um brilho quente, pulsando em sincronia com seu coração. Sua mão, quase por vontade própria, moveu-se em direção à espada. Da lâmina, uma névoa escura escoava, serpenteando em torno de seus dedos como uma coisa viva, testando-o.
O tempo perdeu o sentido.
Calli viu flashes — fragmentos de batalhas nunca travadas, de reinos que ainda não existiam, de um futuro que poderia ser ou não ser seu. O universo parecia dobrar-se sobre si mesmo, todos os possíveis futuros se convergiam para aquele exato instante.
E então — contato.
Seus dedos se fecharam em torno do cabo, e o universo parou de respirar. Um silêncio primordial engoliu todas as coisas, um vácuo tão absoluto que parecia esmagar a própria ideia de som. A escuridão que se seguiu não era simples ausência de luz — era uma presença ativa, um tecido vivo de negritude que se enrolava em torno de sua consciência como serpentes antigas.
A marca em seu braço começou a sangrar luz — uma luminescência viscosa que escorria como mel envenenado. Não era o dourado reconfortante do sol ou o brilho nobre do ouro, mas uma claridade cadavérica, o brilho fosforescente de criaturas abissais que nunca conheceram a luz solar. Era a cor de estrelas agonizantes, de nebulosas que guardavam segredos melhor deixados esquecidos.
Sua pele se abriu sem dor, sem sangue — apenas essa substância luminosa que não iluminava, mas sim devorava a escuridão ao redor. Dos sulcos abertos em sua carne emergiram símbolos que se contorciam como vermes sob um microscópio. Glifos impossíveis brotavam de seus poros, cada um deles pulsando com uma vida própria, formando sentenças em uma língua que fazia os olhos sangrarem só de tentar decifrá-la.
— O-o que é isso? — Suas palavras saíram rasgadas, como se cada sílaba tivesse que lutar contra uma membrana invisível antes de alcançar o ar. A língua em sua boca parecia estranha, pesada, como se estivesse tentando formar sons para os quais não fora projetada.
Quando seus olhos desceram para contemplar o próprio corpo, uma vertigem cósmica o atingiu. Cada centímetro de sua pele havia se tornado um pergaminho vivo, coberto por inscrições que se rearranjavam constantemente. Suas veias não transportavam mais sangue, mas sim tinta escura que formava diagramas obscenos sob sua pele translúcida. Seus músculos se contraíam sob a epiderme, revelando padrões geométricos que desafiavam as leis da perspectiva.
Ele não era mais um homem — havia se tornado um tomo ambulante, uma enciclopédia de conhecimento proibido encadernada em carne humana. Cada respiração fazia novas páginas se formarem em seus pulmões, cada batida cardíaca imprimia novos capítulos em seu peito. Podia sentir o peso das palavras gravadas em seus ossos, sentia as margens de texto se encurvando em suas costelas como um livro antigo mal tratado.
Os símbolos não apenas cobriam seu corpo — eles o reescreviam. Cada glifo queimava sua identidade anterior, substituindo memórias pessoais por registros arcanos de eras perdidas. Sabia, sem saber como sabia, que aquelas inscrições contavam histórias de civilizações que existiram antes do tempo, de deuses que se devoravam em ciclos infinitos, do verdadeiro propósito desse outro fragmento de Asharoth.
E o pior — parte dele ansiava por ler. Parte dele se deleitava com essa profanação de seu próprio ser. Uma voz sussurrava em seu crânio que se ele apenas se concentrasse o suficiente, poderia entender. Poderia conhecer. Poderia ascender.
Diante dele, a espada negra se reformava. Não como um objeto sendo forjado, mas como uma criatura despertando de um sono milenar. A dor que explodiu no crânio de Calli não vinha de nervos ou músculos – era mais profunda, mais íntima. Era como se cada memória, cada pensamento em sua mente estivesse sendo desenrolado e inspecionado por dedos frios e curiosos. Sua alma se contorcia, não por medo, mas pelo peso insuportável de verdades antigas sendo gravadas em seu ser.
O mundo negro começou a se decompor em tonalidades amareladas, como pergaminhos envelhecidos por eras incontáveis. Os símbolos que agora cobriam seu corpo não simplesmente brilhavam – eles se moviam, fluíam como rios de conhecimento proibido em direção à lâmina.
A espada crescia, não em tamanho físico, mas em presença, sua forma oscilando entre dimensões. Em um momento parecia uma arma comum, no seguinte se estendia como uma sombra alongada, sua ponta perdendo-se em realidades paralelas.
A palavra “tachi” formou-se em sua mente não como um pensamento, mas como um osso crescendo em seu cérebro. Ele não a aprendera – sempre estivera lá, adormecida, esperando o momento certo para despertar. E com ela veio o verdadeiro nome, não em sons, mas em sensações — Fragmento de Asharoth. O nome queimou em sua consciência como ferro em brasa, deixando cicatrizes que nunca se fechariam.
Calli percebeu então a verdade horrível e sublime — ele e a espada nunca haviam sido entidades separadas. O Fragmento de Asharoth existia simultaneamente dentro de sua carne e na forma da lâmina, duas manifestações de um mesmo princípio antigo. A conexão que sentia não era posse ou domínio, mas o reconhecimento de partes separadas de um todo maior se encontrando após eras de separação.
Sua respiração sincronizou-se com as pulsações sutis da lâmina. Seus músculos tensionavam-se em perfeita harmonia com as vibrações quase imperceptíveis do metal negro. A espada não era um instrumento em suas mãos — era uma extensão de seu ser, tão íntima e natural quanto seus próprios membros. Ele podia sentir o peso dela não apenas em suas mãos, mas em sua alma, como se uma parte de seu próprio corpo tivesse estado ausente por toda sua vida e agora finalmente retornasse.
O ar ao seu redor tornara-se pesado com o cheiro de pergaminhos queimados e de chuva em pedras antigas. Sussurros ecoavam à beira de sua audição, vozes de incontáveis gerações de portadores que vieram antes dele, todos falhando, todos sucumbindo ao chamado do agora fragmento. Seus olhos, agora adaptados à escuridão, podiam ver além do véu — formas se movendo nas sombras, coisas que se arrastavam nos cantos onde a luz nunca tocava, observando, esperando.
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