Olá, segue a Central de Ajuda ao Leitor Lendário, também conhecida como C.A.L.L! Aqui, deixarei registradas dicas para melhor entendimento da leitura:
Travessão ( — ), é a indicação de diálogos entre os personagens ou eles mesmos;
Aspas com itálico ( “” ), indicam pensamentos do personagem central em seu POV;
Aspas finas ( ‘’ ), servem para o entendimento de falas internas dentro da mente do personagem central do POV, mas não significa que é um pensamento dele mesmo;
Itálico no texto, indica onomatopeias, palavras-chave para subverter um conceito, dentre outras possíveis utilidades;
Colchetes ( [] ), serão utilizados para as mais diversas finalidades, seja no telefone, televisão, etc;
Por fim, não esqueça, se divirta, seja feliz e que os mistérios lhe acompanhem!
Capítulo 86 — Sangue Dourado, Tinta Negra
Um segundo dentro daquele espaço distorcido não seguia as leis do tempo conhecido. Poderia ser uma fração ínfima de instante ou uma eternidade diluída em névoa dourada — Calli não sabia dizer. O ar pesava como chumbo em seus pulmões, e cada respiração vinha carregada de um cheiro metálico, como cobre enferrujado e incenso queimado. A quietude ao seu redor era falsa, uma ilusão de normalidade que se esfarelava aos poucos, revelando camadas de algo mais profundo, mais antigo.
Algo dentro dele havia sido rearranjado. Não era como as outras vezes, quando mudanças ocorriam à sua revelia, sutilmente, como um rio subterrâneo escavando seu caminho. Dessa vez, a transformação era consciente, deliberada. Uma presença estranha — ou talvez algo que sempre estivera lá, adormecido — agora se mexia, despertando com um sussurro que ecoava nas paredes de seu crânio.
“Tudo… se resume ao conhecimento.”
A frase não era sua. Ou era? Ele não conseguia discernir. As palavras pareciam ter surgido de um lugar além dele, como se fossem um lembrete ancestral, uma verdade gravada no próprio tecido da existência. E, de repente, como uma enxurrada rompendo uma barragem, um novo entendimento inundou sua mente.
Memórias que não eram suas se agitaram. Fragmentos de vidas passadas, frases em línguas mortas, entalhes em pedras que o tempo já deveria ter reduzido a pó. O mundo à sua frente — dourado, pútrido, belo — revelava sua verdadeira natureza: um lugar que existia entre a realidade e o delírio, um repositório de coisas que não deveriam ser lembradas.
E então, ele sentiu.
A espada em sua mão não era mais apenas metal e fio. Era uma extensão de seu próprio ser, uma segunda pele que pulsava em sintonia com seu coração. Os símbolos que adornavam a lâmina não eram meras decorações; eles respiravam, contorciam-se como serpentes sob a luz fantasmagórica. Havia algo mais ali, algo que ele já havia sentido antes, mas que, por instinto ou medo, mantivera oculto até mesmo de si mesmo.
Seus olhos foram atraídos para um símbolo específico: uma borboleta dourada, suas asas finamente detalhadas como se tivessem sido gravadas por mãos divinas. E, como um raio cortando a escuridão, uma lembrança irrompeu em sua mente.
“Lytharoth, o espírito que residia em Thalya.”
Por que ele se lembrava disso agora? A imagem da tatuagem que ela carregava — idêntica ao símbolo na lâmina — surgiu nítida em seus pensamentos, como se tivesse sido arrancada de um sonho esquecido.
Antes que pudesse processar, um segundo símbolo começou a se formar no fio da espada, desenhando-se em linhas de um líquido brilhante que escorria de seu próprio pulso. O sangue — ou seria outra coisa? — não pingava no chão. Em vez disso, fluía em filetes dourados, entrelaçando-se na lâmina como tinta em pergaminho, gravando runas que ele não conseguia decifrar.
A urgência chegou.
Não era um aviso, não era um pressentimento. Era um grito primal, uma ordem inscrita em cada fibra de seu ser. Seus músculos se contraíram, seus nervos incendiaram-se como pavios acesos. O dourado ao seu redor começou a se fragmentar, lascas de luz desprendendo-se como vidro estilhaçado, criando uma cacofonia de sons dissonantes que ecoavam como gritos sufocados.
‘Abra os olhos.’
A voz não veio de fora. Veio de dentro, mas não era dele. Era a personificação do conhecimento proibido, do que havia sido trancado a sete chaves no fundo, de sua mente. E, antes que pudesse resistir, seu corpo reagiu por conta própria.
Seus olhos se abriram à força, como se mãos invisíveis arrancassem suas pálpebras para cima.
O dourado o engoliu.
Não havia transição. Não havia queda. Era como se o universo tivesse virado uma página, fechando um livro com um baque surdo. O barulho cessou. A luz se dissolveu. Tudo desapareceu em um vácuo silencioso, deixando apenas um vazio impenetrável.
— Ahhh.
O ar entrou em seus pulmões como uma faca gelada. Seu corpo curvou-se para frente, os dedos contraindo-se em torno da empunhadura da espada como se fosse a única âncora em um mar de escuridão. Quando ergueu o olhar, o mundo havia mudado novamente.
Ele estava de volta.
Víctor estava diante dele, imóvel como uma estátua esculpida na penumbra. Seus olhos escuros, profundos como abismos, refletiam uma luz estranha — não uma chama, não um brilho, mas algo mais sutil, quase imperceptível, como o último vestígio de um farol distante em uma noite sem estrelas. Havia fome naquele olhar, não, a fome física de um homem por alimento, mas a fome antiga de algo que sempre esperou, sempre observou, sempre soube que esse momento chegaria.
E então Calli percebeu.
A espada negra em sua mão não estava imaculada. Não era mais apenas um instrumento de metal e sombra. Gotas de sangue — ou algo que se assemelhava a sangue — escorriam de seu próprio pulso, um líquido resplandecente que cintilava com tons dourados sob a luz fraca. Não era completamente humano. Talvez nunca tivesse sido. Os filetes dourados desciam em ritmo lento, quase reverente, pela lâmina negra, serpenteando como raízes vivas antes de se entranharem no metal. E então, símbolos emergiram.
Eles não foram gravados. Não foram inscritos. Eles simplesmente apareceram, como se sempre tivessem estado ali, ocultos sob a superfície, esperando o momento certo para se revelar. Cada linha, cada curva, cada marca pulsava por um instante, brilhando com uma luz própria, antes de se fundir ao aço de maneira permanente. Era como testemunhar a escrita de uma lei cósmica, algo tão antigo que precedia a própria ideia de linguagem.
— Acabou?
A voz de Víctor cortou o silêncio como uma faca, mas as palavras soaram distantes, como se tivessem atravessado camadas de névoa antes de alcançarem Calli. Ele demorou a responder. Seu corpo ainda tremia, não de medo, não de fraqueza, mas de algo mais profundo — uma reconfiguração interna, como se cada músculo, cada nervo, cada gota de seu sangue tivesse sido desmontado e remontado em uma ordem diferente.
Sentia-se novo. Não no sentido de renovado, mas no sentido de diferente. Como um brinquedo recém-montado, sim, mas também como um livro cujas páginas haviam sido reescritas por uma mão desconhecida. O mundo ao seu redor não mudara. As paredes ainda estavam rachadas, o ar ainda carregava o mesmo cheiro de poeira e umidade, a escuridão ainda se enrolava nos cantos como um animal adormecido. Mas ele mudara.
Novas sensações inundavam seus sentidos. O ar não era mais apenas o ar — era uma tapeçaria de cheiros, de histórias, de vestígios. Ele conseguia sentir a umidade presa nas pedras, o traço metálico do sangue seco em algum lugar distante, o eco de passos que haviam cruzado aqueles corredores há séculos. E mais do que isso, ele ouvia.
Não com os ouvidos.
Era como se o próprio mundo sussurrasse para ele. Murmúrios sem origem, vozes sem rosto, informações que chegavam em fragmentos — algumas úteis, outras incompreensíveis, todas girando em torno de um único eixo, uma única palavra que agora parecia definir tudo: conhecimento.
Ele não era mais apenas Calli. Era uma amálgama, um arquivo vivo, um receptáculo de vivências que não eram suas, mas que agora habitavam dentro dele, atualizando-se a cada instante, como um rio que nunca para de fluir.
— Eu acho que sim…
A resposta saiu em um sopro, mais uma confirmação para si mesmo do que para Víctor. O mundo de possibilidades que se abrira diante dele era avassalador, como estar diante de um oceano e ser incapaz de decidir por onde começar a navegar.
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