Índice de Capítulo

    O velho prédio engoliu Calli e Thalya como uma boca escura e úmida. O ar dentro era espesso, carregado com o cheiro de mofo antigo misturado com algo mais pungente – uma mistura de carne estragada e produtos químicos envelhecidos que faziam os olhos de Calli lacrimejarem involuntariamente. Seu estômago, já sensível da viagem infernal, deu mais um giro nauseante.

    “Merda… Que ambiente ruim…” pensou, cobrindo o nariz com a manga da jaqueta. O tecido não ajudava muito, só acrescentando um leve aroma de suor e lavanda barata à mistura já desagradável.

    Thalya, ao contrário, parecia completamente imune ao fedor. Ela farejava o ar como um cão de caça, narinas dilatadas.

    — Hmm, cheiro de infecção, decomposição e… é bacon frito? — murmurou, confusa. Calli quase engasgou com a própria saliva.

    — Como diabos você cheirou BACON nisso tudo? — sussurrou indignado, os pés esmagando cacos de vidros quebrados que estalavam como ossos minúsculos sob seus tênis.

    Thalya apenas ergueu os ombros com um sorriso despreocupado antes que sua expressão endurecesse de repente. 

    — Calli, fique próximo de mim… — Sua voz estava estranhamente séria, sem o tom brincalhão de sempre — Não vai se perder, viu.

    Ele se aproximou rapidamente, quase tropeçando em um pedaço de madeira apodrecida. Ao olhar para o rosto dela, viu que o sorriso habitual havia sido substituído por uma carranca profunda. Seus olhos, normalmente brincalhões, agora varriam cada canto do corredor escuro com intensidade quase predatória.

    “Certo, precisamos encontrar a vesu… vesu?… Ah, claro, é a Vesúvia, isso…” Calli tentou se concentrar, mas um barulho úmido vindo de uma sala adjacente fez seus pensamentos se dispersarem. Parecia algo entre um suspiro e um estalo de carne crua.

    Thalya ouviu também, mas em vez de se assustar, seus olhos brilharam com interesse.

    — Olha só, parece que alguém já começou a festa sem a gente! — sussurrou, começando a se mover na direção do som.

    Calli agarrou seu braço com força. 

    — Espere! Isso não parece ser uma boa ideia! — Sua voz saiu mais aguda do que gostaria.

    Ela olhou para sua mão tremulando em seu braço, depois para seu rosto pálido, e soltou uma risadinha.

    — Tá com medo, bebê chorão? — O apelido voltou, mas desta vez sem a energia de sempre. Era mais um hábito do que uma provocação genuína.

    Antes que Calli pudesse responder, um novo som ecoou — algo arrastando pelo chão de concreto, molhado e pesado. Desta vez vinha do final do corredor, onde as sombras pareciam mais espessas, quase sólidas.

    Thalya empurrou Calli para trás de si com um braço, enquanto o outro puxava algo de dentro da jaqueta — uma adaga curta que refletia mesmo na penumbra.

    — Vamos brincar de esconde-esconde, Calli — murmurou, e pela primeira vez desde que se conheciam, ele ouviu um fio de tensão em sua voz. — Mas eu acho que nós somos os que estão escondendo…

    O cheiro no ar se intensificou subitamente, tornando-se mais doce, mais enjoativo. Calli sentiu algo quente e úmido escorrer de seu nariz. Quando passou os dedos, viu que estava sangrando.

    Enquanto isso, nas profundezas mais escuras do prédio, algo respondeu ao cheiro do sangue com um gemido baixo e faminto.

    O corredor parecia se estreitar à medida que avançavam, as paredes sujas de umidade e algo mais — manchas escuras que Calli preferia não identificar. Seus passos ecoavam de forma estranha, como se o próprio prédio estivesse absorvendo o som, engolindo seus movimentos. A lanterna de Thalya balançava à frente, criando sombras dançantes que se contorciam nas paredes como criaturas vivas.

    — Você acha que… — Calli começou em voz baixa, mas Thalya ergueu um dedo rápido para os lábios, silenciando-o. Seus ouvidos aguçados tinham captado algo que ele ainda não conseguia discernir.

    O silêncio que se seguiu foi pior que qualquer barulho. Espesso, pesado, como um cobertor úmido os cobrindo. Ele podia ouvir o sangue pulsando em seus ouvidos, o ranger quase imperceptível de seus dentes apertados. Até sua respiração parecia alta demais nesse vácuo de som.

    Então veio o arrastar novamente. Mais perto agora. E algo novo — um estalido úmido, regular, como se… como se alguém estivesse mastigando.

    Thalya fez um gesto rápido com a mão, indicando que deveriam seguir em frente. Seus olhos brilhavam na penumbra, refletindo a luz fraca da lanterna de maneira quase sobrenatural. Calli engoliu em seco, seus dedos encontrando por acaso o contorno do bloco de notas no bolso. O objeto familiar lhe deu um mínimo de conforto.

    Eles viraram uma esquina e o corredor terminava abruptamente em uma porta enferrujada, entreaberta. Um filete de luz vermelha e pulsante escapava pela fresta, projetando padrões estranhos no chão. O cheiro aqui era insuportável – doce e pútrido ao mesmo tempo, como carne deixada ao sol por semanas.

    Thalya se aproximou da porta com passos felinos, cada músculo tenso como uma mola comprimida. Calli podia ver gotas de suor escorrendo por sua nuca agora, apesar do ar gelado. Ela olhou para trás, encontrando seus olhos, e pela primeira vez ele viu algo genuíno em sua expressão — não medo, mas um alerta intenso, quase protetor.

    — Quando eu abrir… — começou a garota em um sussurro quase inaudível, mas foi interrompida.

    A porta se abriu sozinha com um rangido prolongado.

    Dentro, a sala estava banhada naquela luz vermelha, vindo de… algo no centro. Algo que pulsava rítmico, como um coração gigante. As paredes estavam cobertas por uma substância negra e brilhante que se mexia, contraía, como se respirasse.

    E então Calli viu.

    Viu as figuras ao redor do… do coração. Ou o que restava delas. Formas humanoides, mas esticadas, distorcidas, como se tivessem sido derretidas e moldadas por mãos inábeis. Seus rostos — se é que podiam ser chamados assim — eram apenas buracos distorcidos onde deveria haver feições.

    Uma delas se virou. Lentamente. Com aquele estalido úmido de carne se rearranjando.

    Thalya soltou um suspiro que poderia ter sido um riso abafado.

    — Bem… — murmurou, os dedos apertando o cabo da lâmina até os nós dos dedos ficarem brancos. — Acho que encontramos nossa Vesúvia.

    “Isso… isso, foi rápido… Muito rápido…”

    Calli não conseguiu responder. Sua boca estava seca, sua língua pesada como chumbo. Mas uma parte distante de sua mente, aquela parte que ainda conseguia pensar através do terror, registrou algo estranho.

    As criaturas… elas não estavam se movendo em direção a eles. Não ainda.

    Elas estavam dançando, como um ritual em prol da Vesúvia.

    Um lento, horrível balé ao redor do coração pulsante, seus corpos se contorciam em movimentos que desafiavam a anatomia humana. E pior — Calli podia jurar que ouvia música. Uma melodia distante e dissonante, como um rádio mal sintonizado tocando uma canção ancestral.

    Thalya pareceu perceber ao mesmo tempo. Seus lábios se curvaram em algo que não era exatamente um sorriso.

    — Olha só… — sussurrou, a voz estranhamente maravilhada. — Eles estão dando uma festa. Que falta de educação não nos convidarem.

    Calli olhou para ela, incrédulo. Mesmo agora? Mesmo aqui?

    Mas antes que pudesse responder, a maior das criaturas parou sua dança. Seu pescoço — longo demais, fino demais — girou em um ângulo impossível. E então Calli viu que ela não tinha olhos. Só buracos escuros que pareciam ir até algum lugar muito, muito profundo.

    A música parou.

    O coração pulsou uma vez, violentamente.

    E então as criaturas começaram a se mover em sua direção, não mais dançando, mas rastejando, se arrastando, com uma fome que Calli podia sentir no ar como eletricidade estática.

    Thalya soltou um suspiro dramático.

    — Tá vendo, Calli? — disse, se posicionando à frente dele, a lâmina brilhando na luz vermelha. — É por isso que eu nunca danço em festas. Sempre acaba assim.

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